sábado, outubro 29, 2022

CONVITE MALDITO (The Invitation)



Certamente CONVITE MALDITO (2022) não é um desses filmes que a gente sai indicando aos amigos mais exigentes, mas tanto pode ser divertido para os fãs do gênero horror, quanto pode ser um ótimo exercício de crítica, de verificação dos momentos em que a obra funciona, quais suas fragilidades e seus pontos positivos. Como fui vê-lo sem saber nada a respeito, acredito que fui beneficiado com a maior surpresa, com o que até podemos chamar de plot twist. Portanto, recomendo a quem quiser conferi-lo que o veja sem nem mesmo ver algumas imagens a respeito do filme, disponíveis na internet.

Um fenômeno recente e que pode representar a materialização de um título como este é o sucesso dos filmes de horror no circuito. Em geral eles custam muito pouco, em relação a outros gêneros mais populares, como thrillers de ação, e rendem o suficiente para não dar prejuízo. E como estamos vivendo uma espécie de novo momento de popularização do horror, com direito a filmes que procuram caminhos diferentes para fugir dos clichês mais manjados, certas obras não conseguem e até não intencionam fazer algo muito diferente, preferindo reciclar ou aproveitar o que já tem sido visto tantas vezes.

É o caso deste CONVITE MALDITO, segundo longa-metragem de Jessica M. Thompson. O primeiro longa da diretora foi um drama chamado THE LIGHT OF THE MOON (2017), sobre uma mulher que é agredida enquanto voltava para casa e, traumatizada e sem verbalizar a agressão sofrida, passa a ter dificuldade de ter novamente intimidade com seu namorado. Não vi o filme, apenas li a respeito, mas é possível imaginar que até possa ser um trabalho mais bem-sucedido do ponto de vista do drama da protagonista, levando em consideração justamente os prós e os contras de CONVITE MALDITO.

Na trama do novo filme, Nathalie Emmanuel (GAME OF THRONES) é uma jovem mulher nova-iorquina que, depois da morte da mãe, procura, através de um programa na internet, possíveis parentes sanguíneos, através de seu DNA. Descobre que existem parentes na Inglaterra. Ela encontra um rapaz que se diz ser um primo e que lhe conta sobre suas origens, que têm a ver com o preconceito e a rejeição por causa da cor e da classe social em um espaço aristocrático. De certa maneira, este primeiro momento de CONVITE MALDITO guarda semelhanças com CORRA!, de Jordan Peele, já que há a questão racial, o convite para conhecer um grupo de pessoas de família branca e muito rica e há também a figura da melhor amiga, que estaria disposta a ajudar em caso de perigo. Em determinado momento, há até mesmo a imagem de uma xícara de chá, com a câmera apontada de cima para baixo.

O que funciona neste primeiro momento do filme é a adaptação da protagonista àquele ambiente estranho mas que parece colocá-la como centro das atenções. Além do mais, ela se sente atraída pelo anfitrião, que se mostra interessado nela. De cara, já percebemos que esse sujeito (Thomas Doherty) é um vilão, mas é possível acompanhar os momentos em que os dois estão sozinhos como cenas de um romance gótico, já que a maioria das ações acontece à noite e abre espaço para algum tipo de romantismo. Porém, entre um momento e outro dessa situação mais realista, entram os clichês do horror, como figuras escuras ameaçadoras e alguém puxando a heroína debaixo da cama, numa imagem tão recorrente quanto vulgar.

Mas eis que o filme que é salvo pelo gongo. Quando tudo parecia perdido, acontece uma interessante surpresa, com direito a um senso de humor muito próprio (destaque para a presença de uma velhinha chamada Mina Harker, uma espécie de Easter egg). Não vale dizer em que o filme se transforma (ou no que ele sempre foi), mas é em algo que me ajudou a trazer um sorriso de satisfação, principalmente a partir da cena do banquete de casamento. Não dá para contar mais, sob o risco de estragar as surpresas (ao que parece o trailer já entrega essas surpresas), mas também incluiria o bom uso do gore e do vermelho nas vestimentas da protagonista como bons pontos positivos, não por serem algo fresco ou inédito, mas pela força das imagens.

CONVITE MALDITO teve apenas 25% de aprovação no Rotten Tomatoes e nota 45 no Metacritic. Certamente não é um filme memorável, mas é bem possível encará-lo como uma diversão despretensiosa que pode fazer uma boa sessão dupla com CASAMENTO SANGRENTO, de Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillet.

+ DOIS FILMES

SOCIEDADE DO MEDO

Vendo SOCIEDADE DO MEDO (2022), de Adriana L. Dutra, numa sala com apenas mais dois amigos que já costumeiramente me acompanham nas sessões, principalmente as do Cinema do Dragão, já ficou muito claro que o filme prega para convertidos. De todo modo, não chega a tirar a importância de mais esse convite à reflexão sobre o momento amedrontador em que estamos vivendo, com uma ameaça de implementação de regimes de extrema direita em todo o mundo, sendo alimentados a partir da mentira e da manipulação política da religião. O documentário tem uma estrutura bem convencional, mas gosto bastante dos convidados. Destaque para a vereadora Benny Briolly, a jornalista Flávia Oliveira e o professor Jason Stanley. O filme fecha a chamada trilogia da catarse da diretora, formada também por FUMANDO ESPERO (2009) e QUANTO TEMPO O TEMPO TEM (2015). Foi feito antes e durante a pandemia, que modificou os caminhos propostos inicialmente pela diretora. 

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE GOLPES

Bem que este documentário podia ter começado a ser exibido no Brasil no ano passado, já que os eventos da política nacional acontecem num ritmo vertiginoso e alguns eventos ficam datados. De todo modo, A FANTÁSTICA FÁBRICA DE GOLPES (2021), de Victor Fraga e Valnei Nunes, funciona muito bem, e ainda conta com depoimentos muito bem-vindos de Dilma Rousseff, Chico Buarque, Benedita da Silva, Jean Wyllys, entre outros, que ajudam a compor a "trama", que trata principalmente do apoio forte da Globo na história dos golpes, seja o de 1964, seja o golpe de 2016. É bom perceber, por exemplo, o quanto a emissora agora, depois que entendeu que não é possível domar o monstro que foi eleito presidente, trata de agir contra ele. Um exemplo muito gritante de antipetismo da emissora é o da entrevista de Fernando Haddad no Jornal Nacional em 2018. E outro é o do desfile da vice-campeã do Carnaval 2018, Paraíso do Tuiuti, que não contou com nenhum comentarista, justamente por contar a história do golpe sofrido pela presidente. A montagem do documentário é bem eficiente e quase sempre funciona muito bem para dar dinamismo à história. No fim das contas, apesar das tristezas, bate um pouco de orgulho de se sentir do lado certo da história.

quinta-feira, outubro 27, 2022

CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO



Acho que quem costuma ler meus textos por aqui sabe o quanto eu amo cinema, certo? E deve saber também de meu amor pelos livros, pela música, pelos quadrinhos, pelas séries. E por isso, com muita frequência, eu me vejo frustrado ao chegar em casa e nem sequer conseguir ver um filme completo devido ao cansaço – a vida de professor, mesmo quando o dia não parece tão puxado, é bem desgastante. Quando saio para ver um filme no cinema até que consigo, com a ajuda da imersão e de uma dose de um bom expresso, mas em casa raramente isso é possível.

Atualmente, com o retorno da prática da atividade física, de modo a melhorar minha saúde e também minha aparência (pois também sou um pouco vaidoso), o cansaço tem aumentado ainda mais. Sei que isso é um misto de falta de hábito de minha parte com um dos propósitos desses exercícios: o de trazer também um sono mais rápido. Mas isso acaba batendo de frente com a referida frustração. Ontem mesmo, para poder ver um filme de pouco mais de uma hora tive que recorrer a uma soneca na metade do filme e, ainda assim, terminei de vê-lo com sono e com pouca capacidade de percepção de suas ideias e de me sintonizar com os sentimentos que a obra poderia me proporcionar.

Por que falo isso? Falo, claro, como forma de desabafo, mas também para fazer um link com CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO (2021), de Thiago B. Mendonça, que me causou identificação em certos aspectos. Na trama, temos homens e mulheres que fazem parte de um grupo de sambistas pobres (há apenas uma moça burguesa na turma) que passam o dia trabalhando em empregos chatos ou miseráveis para encontrar nesses encontros regados a samba um sentido para a vida, um propósito para a existência, um prazer tão grande que faz valer até mesmo perder uma noite de sono. Lembrei-me de Carlos Reichenbach, que gostava de trazer à tona a valorização do tempo livre na vida de personagens que trabalham em fábricas, por exemplo. Carlão falava forte ao espírito daqueles que amam a arte, mas que precisam lidar com o trabalho, pois é dele que vem nossa subsistência. Além do mais, se não encontrarmos também uma forma de trazer prazer para dentro desse trabalho, estamos lascados.

Quanto a Thiago B. Mendonça, conheço pouco de seu trabalho. Só no IMDB, que costuma não ter tudo de diretores brasileiros, ele já possui 18 títulos, entre curtas, longas e séries. Tive contato com seu cinema primeiramente com o curta documental PIOVE, IL FILM DI PIO (2012), depois com o anárquico JOVENS INFELIZES OU UM HOMEM QUE GRITA NÃO É UM URSO QUE DANÇA (2016), mas o que mais me encantou mesmo foi seu projeto mais ambicioso, mas que infelizmente tem problemas para lançamento em circuito, por conta de questões com direitos autorais, que é o excelente OS GRANDES VULCÕES (2021), em parceria com Fernando Kinas.

No que se refere a CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO, uma das coisas que mais me chamou a atenção logo no começo foi o uso do som, que é brilhantemente trabalhado já na sequência inicial, com dois dos personagens numa casa humilde e com a porta e a janela abertas, onde se pode ouvir (e ver), além do som do violão, carros antigos trafegando pelas ruas. Mais à frente, em outras sequências com música, o som captará diferentes perspectivas, a partir de onde a cena está sendo filmada. Além do mais, nessa sequência citada, já se percebe o interesse de Mendonça pela beleza do quadro, pela imagem como uma pintura com som e movimento. Às vezes, um movimento sutil.

Eu, que não tenho muita identificação com o samba, gostei muito de escutar a riqueza da música produzida pelo grupo, até porque, dentro da sala de cinema, é muito mais possível perceber os pormenores. Além do mais, gostei muito da caracterização dos personagens, que parecem saídos de uma outra época e inseridos no nosso mundo contemporâneo – aliás, isso é outra semelhança que o cinema de Mendonça guarda com o cinema de Carlão, que adorava misturar o contemporâneo com imagens que lembram décadas passadas.

Numa das primeiras cenas, numa das rodas de samba, a câmera, quase sempre à mão, passeia pelos rostos dessas pessoas, flagradas com alegria nesses momentos de descontração, que só acontecem no meio da noite, embora às vezes essa alegria lhes seja negada. O mais velho do grupo, vivido por Carlos Francisco (MARTE UM, BACURAU), vive tendo que aguentar as reclamações da esposa, que, evangélica, pede para ele abandonar a vida boêmia e ir para a igreja. Ele, claro, sai pela tangente e vai fazer o que seu coração lhe pede. Além do mais, esse personagem está em liberdade condicional e isso acaba sendo um detalhe que vai trazer um dos momentos mais tristes do filme.

O próprio termo “liberdade condicional”, aliás, me parece valer tanto para o pesonagem de Francisco quanto para os demais, levando em consideração seus empregos. Um deles, inclusive, trabalha em uma penitenciária. Outro, tenta levantar uma casa em um espaço provavelmente ilegal com a ajuda dos amigos. Lembrou-me O TETO, de Vittorio De Sica, mas aqui o tom adotado por Mendonça é bem menos próximo do melodrama e um pouco mais seco, embora nunca despido de ternura. Detalhes como a visita de um personagem ao pai e ele depois acordando o amigo para entregar um prato de comida são representativos desse cinema de afetos.

Certamente é uma obra que mereceria um pouco mais de presença de público, mas falar isso é falar de mais de 90% das produções brasileiras atuais. Meu sonho é que isso um dia mude e que o nosso cinema possa alcançar mais e mais pessoas das mais diferentes classes sociais.

+ DOIS FILMES

BEM-VINDA A QUIXERAMOBIM

Um filme leve para dar umas boas risadas, embora já se deva esperar um tipo de humor mais grosseiro. Bem mais do que os outros longas anteriores do Halder Gomes, inclusive. Mas BEM-VINDA A QUIXERAMOBIM (2022) se justifica pois o cenário onde se passa boa parte da ação é um prostíbulo que funciona como pousada durante o dia. Monique Alfradique está muito bem como a influencer de instagram que perde tudo com a prisão do pai, empresário corrupto, e parte para reaver a casa da falecida mãe, em Quixeramobim. Muito boa a participação de Max Petterson. Ajuda a fazer a diferença em filmes que contam demais com a presença de Edmilson Filho. Aliás, eu até diria que o elenco de apoio está bem mais engraçado que o Edmilson. Pena que o filme tem umas gordurinhas e lá pelo meio já perde o timing bom do início. Ainda assim, representa um bom momento do cinema popular cearense, que aqui se abre para uma atriz do sudeste como protagonista. Mais ou menos como aconteceu com a série de televisão CINE HOLLIÚDY (2019).

VOCÊ TEM QUE VIR E VER (Tenéis Que Venir a Verla)

Depois do lindíssimo A VIRGEM DE AGOSTO (2019), fica difícil não ficar interessado na obra de Jonás Trueba. Este pequeno filme de pouco mais de uma hora de duração se passa durante a pandemia e é econômico na produção e no elenco - creio que um dia poderemos ver documentários sobre as características dos filmes nascidos no isolamento social de 2020/2021. Além do mais, como são poucos os filmes que tratam da leitura, não apenas mostrando personagens lendo, mas também discutindo sobre os temas lidos, esse já conquista a minha simpatia por essa razão. Inclusive, acho que o melhor momento do filme é a discussão na hora do almoço, quando os dois casais de amigos conversam sobre o futuro da humanidade, justamente quando estávamos passando por uma situação inédita em nossas vidas. A pandemia chegou para, supostamente, nos fazer pensar no mundo como um todo, mas parece que essa conscientização não chegou a muitos. O filme está em cartaz gratuitamente no Sesc Digital, durante a Mostra de São Paulo.

domingo, outubro 23, 2022

OS SETE SAMURAIS (Shichinin No Samurai)



No mês de julho passado, eu tive o prazer de fazer um curso online de cinema samurai com Fernando Brito, o curador da Versátil Home Video, o que me trouxe tanto conhecimento quanto compreensão e interesse maior por esses filmes que até então não me sentia motivado para vê-los. E olha que eu sou um cinéfilo com muito tempo de estrada. Por isso, imagino o quanto algo do tipo, que vejo como preconceito, acomete a tantas outras pessoas que preferem não se abrir para o cinema oriental, em especial o japonês, em especial o jidai-geki, o filme histórico com ênfase em lutas de espadas em um Japão medieval, ou até mais ou menos o século XIX.

O caso de OS SETE SAMURAIS (1954), de Akira Kurosawa, é especial, pois se trata de um desses filmes presentes em topos de praticamente todas as listas de melhores filmes de todos os tempos. O que me deixava adiando o filme, desde a época das videolocadoras, era sua duração, já que cheguei a locar outros títulos famosos do diretor, como RASHOMON (1950), YOJIMBO, O GUARDA-COSTAS (1961) ou SANJURO (1962), para citar realizações com o foco em samurais. Como não fiquei tão entusiasmado com esses filmes (e tenho certeza que isso vai mudar no momento de revê-los), comecei a perceber que eu tinha um problema com Kurosawa. Essa teoria cresceu quando descobri e me apaixonei pelo cinema de Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu. Enfim, isso é outro problema que pretendo resolver, até porque Kurosawa possui 33 títulos e há filmes bem diferentes entre si em sua filmografia.

Enfim, não querer levar para casa a fita dupla de OS SETE SAMURAIS era uma bobagem de minha parte. Afinal, nem se trata de um filme hermético ou coisa do tipo. Na verdade, é uma obra que agrada a um público amplo, como espetáculo, inclusive, embora seja bem mais do que isso, em suas quase 3h30min de duração. E ao ver o grande clássico de Kurosawa depois do impacto de ter visto HARAKIRI, de Masaki Kobayashi, tão mais intenso e violento e novo, achei difícil não fazer comparações, ainda que elas não tenham muito cabimento, já que são filmes de épocas distintas e com propostas distintas.

Além do mais, o que Kurosawa fez aqui foi muito revolucionário. Ele fez um filme de samurai como nunca se havia feito antes, trazendo tons de cinza para os sete personagens principais, embora seja sim um filme sobre heroísmo, com muita ação (em muitos momentos nos sentimos no meio da ação), tragédia e humor, a cargo principalmente do personagem de Toshiro Mifune. Ele, que é certamente o mais famoso dos atores da fase de ouro do cinema japonês, faz um sujeito esquentado e meio palhaço, e muito disposto a ir para a luta. Inclusive, ele fica muito feliz quando finalmente os inimigos aparecem para que ele possa empunhar sua espada e "se divertir", praticando atos de heroísmo, apesar de não ser um samurai de verdade, como os outros seis. Ele é como uma criança, e isso se explicita quando está vestido com trajes tradicionais de samurai que deixam seu traseiro de fora. 

O esqueleto da trama de OS SETE SAMURAIS é super-simples: um vilarejo pobre de fazendeiros está à mercê de bandidos que saqueia, mata e estupra as mulheres. Sem ter o que fazer e nem como pagar pessoas que possam ajudá-los a enfrentar os bandidos, eles tentam oferecer a única coisa que dispõem, ainda que em pouca quantidade, arroz. Naturalmente, é muito difícil encontrar samurais ou ronins que se solidarizem com eles, mas com sorte eles encontram um velho ronin chamado Kambei (Takashi Shimura), um homem honrado que acredita que o melhor a fazer é ajudar àquelas pessoas, mesmo sabendo que não ganhará nenhum dinheiro com isso, e ainda poderá perder sua vida. Então, Kambei se vê na missão de selecionar pessoas que se juntem a eles para que fiquem na linha de frente na luta contra os bandidos.

O roteiro parece ser simples, mas não é. Todo o trabalho de construção dos personagens e de aprofundamento deles, de detalhes de vestimentas e de estudo histórico e geográfico, além de maneiras de tornar as cenas de batalhas mais ágeis, através do uso de várias câmeras ao mesmo tempo, tudo isso e muito mais faz da preparação de OS SETE SAMURAIS uma das mais complexas do cinema japonês até hoje. É o caso de filme que parece nascido da simplicidade e da espontaneidade, quando na verdade há todo um rigor formal, de roteiro, direção e edição.

É importante lembrar que foi Akira Kurosawa que ajudou a popularizar o cinema japonês para o mundo ocidental, a partir de RASHOMON, quando ganhou o Leão de Ouro em Veneza. Essa relação de Kurosawa com o ocidente muito se deve à forte influência que ele teve dos westerns de John Ford. Então, seu OS SETE SAMURAIS poderia muito bem ser um western. Bastaria trocar as espadas por armas de fogo e, claro, as vestimentas e os costumes dos personagens. Então, devemos a Kurosawa esse olhar do ocidente para o rico cinema nipônico.

Na estrutura da trama, Kurosawa demonstra um interesse mais pelo indivíduo do que pelo coletivo, embora a compreensão de que se deva agir pelo coletivo esteja ali presente o tempo todo, até para que se possa encontrar a vitória ao fim da batalha. O filme mostra a singularidade de cada samurai e ainda tem tempo para nos apresentar à paixão do jovem samurai pela aldeã e a sua transformação, por assim dizer, em homem, seja pelo fato de ele ter passado a noite pela primeira vez com a moça, seja por ele ter matado outro homem, um dos bandidos.

Há também uma preocupação em mostrar as estratégias dos samurais, tanto em atacar os bandidos em seu acampamento, quanto em se preparar para o ataque deles da melhor maneira possível, inclusive treinando os camponeses para a batalha. E tudo isso é pensado de modo a tornar o filme sempre dinâmico, com o uso de muitos short cuts, que hoje são comuns em tantos filmes do cinema mais moderno, mas que talvez não fosse tão comum assim, em especial no cinema produzido no Japão. Isso vale tanto para as cenas de alistamento dos samurais, quanto para a contagem dos mortos na batalha entre samurais versus bandidos.

O cuidado com a edição de OS SETE SAMURAIS é tão impressionante que é preciso ler textos e depois rever o filme com atenção para perceber a crescente rapidez nos cortes de certas cenas, de modo a preparar o espectador para a impressionante cena final de batalha, sob chuva, com utilização de muitas câmeras para se obter as melhores imagens. O caos da guerra, a sujeira da lama, os cavalos caindo próximos à câmera, a emoção da batalha, a dor das mortes de personagens queridos. Por mais que o filme já tivesse apresentado boas cenas de ação antes, não estávamos preparados para algo tão intenso e tão cheio de vida até então. Há, claro, um monte de cenas no filme que merecem menções, mas há infinitos textos melhores do que o meu circulando por aí há décadas que podem ser lidos e que fazem jus – ou pelo menos tentam – à poesia das imagens do filme.

O BluRay da Versátil traz extras excepcionais, entre eles uma entrevista de quase duas horas de Kurosawa feita por Nagisa Oshima, dois gigantes de momentos diferentes do cinema japonês. Há também um ótimo making of e um documentário chamado Os Sete Samurais: Origens e Influências, que, para chegar em OS SETE SAMURAIS, dá uma aula sobre o bushi, o código dos samurais, sobre o momento em que o Japão resolveu ser uma nação forte o bastante para se defender de possíveis invasões dos povos ocidentais, até tratar mais especificamente do filme em questão. Só coisa fina. 

+ DOIS FILMES

ADÃO NEGRO (Black Adam)

Sério candidato a pior filme do ano, este ADÃO NEGRO (2022) é tão modorrento e tão desinteressante que nem seus problemas parecem convidativos no quesito charme. Por mais que possa parecer interessante o filme mostrar uma formação da Sociedade da Justiça, de modo a trazer de volta a talvez extinta proposta de um universo cinematográfico DC, o máximo que isso apresenta é um Pierce Brosnan com uma fleuma acentuada e que talvez ganhe sintonia com nosso sentimento pelo filme, que só não é de apatia completa porque o sono nos pega nas cenas de violência-sem-violência regadas a uma trilha sonora orquestradamente genérica e inserções de canções rock de dar vergonha. Uma pena, pois SHAZAM! (2019) é um filme simpático. Também é uma pena pelo diretor, Jaume Collet-Serra, que foi cooptado por Dwayne Johnson, quando o dirigiu na aventura JUNGLE CRUISE (2021), caindo nessa barca furada e perdendo a reputação de bom diretor que havia conquistado desde o início dos anos 2000.

ALERTA NOTURNO (Butcher, Baker, Nightmare Maker / Night Warning)

O barato de ver filmes um pouco na sorte, dos boxes de slashers, é que de vez em quando nos deparamos com umas surpresas incríveis. Claro que isso vale para outros gêneros e subgêneros também, mas os slashers costumam ser subestimados e muitos adotam um padrão que não oferece muito espaço para a criatividade. Felizmente não é o caso de ALERTA NOTURNO (1981), de William Asher, que desde o começo já salta aos olhos com a história de uma tia que corta os freios do carro dos pais de uma criança, de modo a criar o menino como seu, castrando-o de suas possíveis saídas para a vida na adolescência, como uma faculdade futura e o namoro com uma garota da escola. Ainda que desde o começo vejamos uma obra bem diferente e sempre interessante, o melhor fica para o final, com um eletrizante clímax. Grande momento de Susan Tyrrell no papel da tia louca. Ela aparece muito simpática nos extras do box, assistindo ao filme, junto com a produção desse extra, supostamente, pela primeira vez. Não sei se ela estava brincando ou se tinha mesmo a ideia de que o filme era um lixo. Destaque também para Bo Svenson, como o policial homofóbico. Filme presente no box Slashers IX.

quinta-feira, outubro 20, 2022

BLONDE



“A imagem que Marilyn Monroe deixou de si no mundo das imagens esconde uma alma que poucos suspeitavam existir. Bela, é uma alma que a psicologia, de barato, definiria como ‘neurótica’, como se podem definir ‘neuróticos’ todos aqueles que pensam demasiado, que amam demasiado, que sentem demasiado. O destino da sua vida a quis sobretudo imagem, um ícone como o rosto de Mona Lisa, atrás do qual não se sabe o que há.”
Antonio Tabucchi (em prefácio para o livro Fragmentos – Poemas, Anotações Íntimas e Cartas de Marilyn Monroe)

Lendo alguns poemas do livro Fragmentos, é possível perceber o quanto Marilyn Monroe foi tão sensível e com uma inteligência emocional tão fora do comum, mas infelizmente muito pouco valorizada naquele mundo misógino e que só queria explorar sua imagem. Pode ser problemático tratar desse assunto, uma vez que o trabalho que ela fez para o cinema foi muito importante. E às vezes, sob o calor da raiva que muitos tiveram de BLONDE (2022), é como se tudo que ela tivesse feito fosse apenas um produto de sua exploração e não tivesse um peso enorme para a cultura ocidental do século XX. Então, vamos com calma.

Demorei a escrever sobre BLONDE, a cinebiografia livre dirigida por Andrew Dominik, por pura falta de tempo também, mas porque talvez eu precisasse maturar o que achei do filme, que de fato não me fez amá-lo, mas sei o quanto certas imagens ficarão marcadas em minha memória de maneira forte. Às vezes apelando para o grotesco, Dominik faz uma espécie de horror psicológico sobre uma jovem mulher extremamente sensível que chega ao estrelato em Hollywood através de seu talento e de sua beleza inigualável, mas, infelizmente, também passando pelos abomináveis testes do sofá.

Norma Jean/Marilyn Monroe, abandona pelo pai e vivendo com a mãe com problemas mentais, vai parar num orfanato. As cenas que mostram sua infância são absolutamente cruéis. A tentativa da mãe de afogá-la na banheira, viver sozinha e imaginar a sombra do pai ausente, já sentir o peso da solidão e da crueldade do mundo desde pequena. E há aquela cena do incêndio em Los Angeles, que tem um impacto visual incrível. Talvez o melhor momento do filme para mim. Em seguida, é Ana de Armas que assume a tarefa de encarnar essa Marilyn tão sofrida em sua via crucis quanto o Jesus de Mel Gibson. Muitos ficaram indignados, pois a heroína está o tempo todo levando porrada da vida, das pessoas, especialmente dos homens, e dificilmente consegue finalizar um período, um raciocínio mais complexo, em sua fala.

Na verdade, acho bem difícil julgar ou criticar este filme. Até me remeteu a RÉQUIEM PARA UM SONHO, de Darren Aronofsky, pelo tom monocórdico de tragédias, traumas e horrores na vida de uma pessoa. O fato de ser essa pessoa Marilyn Monroe, que carrega uma aura mitológica de alguém geralmente sofredora e incompreendida, faz com que esse registro ficcional seja um convite para a compreensão de que o que é mostrado no filme seria a vida real da atriz.

Ana de Armas passa uma fragilidade necessária para a intenção do filme. E é uma fragilidade tão intensa que ela parece que vai afundar em vários momentos. Há questões paterna (do abandono) e materna (que traz uma lembrança ainda mais cruel) que funcionam como uma marca para quem ela seria e para os vazios que sentiria e que encontraria na figura de homens mais velhos.

A fragilidade também está presente no sistema de abuso sexual adotado em Hollywood para o casting e na questão dos abortos. A opção do diretor por diferentes janelas e diferentes cores funciona tanto para remeter aos filmes dos anos 1950, quanto para trazer diferentes tons de sensação da realidade. Destaque também para a trilha sonora de Nick Cave, que em alguns momentos emula Angelo Badalamenti, como forma de fazer uma conexão da heroína com a Laura Palmer de TWIN PEAKS. Podemos também facilmente pensar numa associação com outro filme de Lynch, CIDADE DOS SONHOS, que tem uma estrutura de horror e que também é sobre demolir sonhos e criar pesadelos.

A respeito de pesadelos, é difícil não lembrar da cena mais pavorosa do filme, que é o encontro de Marilyn com o presidente John F. Kennedy. Muito se especula sobre a relação que existiu entre os dois e não sei o quanto pôde ser provado, mas o que mais choca e incomoda nessa cena nem é exatamente a “contratação” de Marilyn para fazer favores sexuais para o presidente, mas o modo como a câmera se posiciona para mostrar uma cena de sexo oral, fazendo questão de explorar um tom de humilhação para a personagem. Eis a questão: o filme estaria mesmo sendo misógino ou aquilo seria uma maneira de denunciar a estrutura da sociedade da época, com tudo aquilo que havia de mais podre dentro da Hollywood do pós-guerra?

De uma forma ou de outra, o filme se assume como polêmico, e quer trazer isso para si de forma deliberada, não se importa em elaborar uma personagem à beira do colapso o tempo inteiro. Talvez os únicos momentos de maior tranquilidade para a personagem esteja na relação que teve com dois filhos de astros de Hollywood, os filhos de Charles Chaplin e Edward G. Robinson, quando houve ali um romance a três mais ou menos saudável. É diferente, por exemplo, da relação que ela teria, extremamente tóxica e agressiva, com o “ex-atleta” vivido por Bobby Cannavale. Apesar de não ter o nome citado, ele é Joe DiMaggio, jogador de beisebol que teria vivido maritalmente com Marilyn nos anos de 1954 e 1955.

Houve uma mudança bem distinta quando Marilyn/Norma passou a namorar e a viver com o dramaturgo Arthur Miller (vivido no filme por Adrien Brody), de 1956 até o ano de sua morte, em 1961. Ele seria, de um ponto de vista freudiano, a representação do pai que Norma não teve, que nunca encontrou. E é possível ficar irritado com as várias vezes que a personagem o chama de daddy em tom infantil. A questão sobre os abortos da personagem também chegam a ser incômodos, mas não deixa de ser marcante, como no momento em que ela tem uma conversa com um feto que seria uma reencarnação do feto perdido anteriormente. Trazer a culpa do primeiro aborto para a personagem talvez seja bem perverso, mas imagino que tenha a função de tornar seu inferno interior ainda mais intenso, o que é claramente uma intenção do filme como um todo.

Tudo isso é muito complicado, pois o cineasta, sendo ele um autor, é o deus de seu universo. Mas também pode ser alguém que se propõe a não romantizar o passado da atriz de forma alguma, deixando muito claro que sua cinebiografia é quase que totalmente livre. E nesse sentido os filmes que ela fez acabam sendo pouco importantes para a narrativa, ainda que vejamos várias cenas que enxertam Ana de Armas como Marilyn contracenando com os astros originais de filmes como OS HOMENS PREFEREM AS LOIRAS, O PECADO MORA AO LADO e QUANTO MAIS QUENTE MELHOR, talvez os três que melhor ajudaram a eternizar o ícone Marilyn Monroe.

+ DOIS FILMES

A ILHA DOS MORTOS (Isle of the Dead)

Tão importante quanto Jacques Tourneur para o ciclo de filmes de horror produzidos por Val Lewton, Mark Robson estreou na direção com a obra-prima A SÉTIMA VÍTIMA (1943), presente no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer. Em A ILHA DOS MORTOS (1945) faz seu quarto filme para Lewton, no mesmo esquema de baixo orçamento, muito clima, muita sofisticação e uma fotografia que valoriza as sombras. Na trama, Boris Karloff é um general durão que vai parar numa ilha grega que se vê contaminada por uma peste. Sua missão passa a ser: ninguém sai da ilha. Enquanto isso, uma jovem (a bela Elle Drew) é acusada de ser uma espécie de demônio vampírico do folclore grego chamado vorvolaka. É interessante ver o filme depois de termos passado por uma pandemia e a obra se tornar também espelho de um passado recente nosso. Grande momento do filme: a cena em que uma personagem é enterrada viva, e com resultados inesperados. Visto no box Obras-Primas do Terror 18.

AOS NOSSOS FILHOS

Acho muito tocante o interesse de Maria de Medeiros pelas dores que os brasileiros sofreram (e ainda sofrem) durante e após a ditadura militar. Seu longa anterior foi um documentário chamado REPARE BEM (2013), trazendo depoimentos da viúva de um homem que morreu nos porões da ditadura brasileira. Essa referida mulher, Denize Crispim, aparece em AOS NOSSOS FILHOS (2019) como atriz, em papel pequeno. Mas o filme é mesmo de Marieta Severo e de Laura Castro, principalmente. Duas mulheres, mãe e filha, vivendo momentos muito distintos de suas vidas. Severo cuida de uma ONG destinada a meninos órfãos soropositivos e lida com um passado traumático de tortura; Castro está tentando ser mãe junto com a companheira através de inseminação artificial e tem uma relação conflituosa com a mãe. Laura Castro é tão autora do filme quanto Maria de Medeiros, aliás. Ela é autora da peça que deu origem ao filme, além de fazer uma representação linda de mãe, do início ao fim do filme. Há também participações de José de Abreu como o pai carinhoso. Aliás, um filme que traz um elenco (e direção) tão orgulhosamente de esquerda já funciona como uma espécie de convite para adentrarmos uma casa confortável e acolhedora. Nesses tempos difíceis, isso faz uma diferença enorme.

domingo, outubro 16, 2022

MULHER-HULK – DEFENSORA DE HERÓIS (She-Hulk – Attorney at Law)



Talvez a estratégia atual da Marvel seja essa: depois de entregar tantas produções ruins ou meia-bocas, especialmente em suas séries, quando uma delas chega a trazer mais pontos positivos que negativos a gente pode dizer: “até que é legal essa série”. É o caso de MULHER-HULK – DEFENSORA DE HERÓIS (2022), criada e escrita por Jessica Gao e com episódios dirigidos por Kat Coyro e Anu Valia. São nomes pouco conhecidos, mas as produções da Marvel primam por ser muito mais do Kevin Feige do que de seus diretores e diretoras.

Voltando à questão das séries que desanimaram, peguemos apenas as de 2022: a série do Cavaleiro da Lua é tão ruim, que não consegui terminá-la (quem sabe um dia eu volto a ela?); MS. MARVEL é uma série que começou muito legal, mas que infelizmente foi se perdendo; I AM GROOT, eu ainda não vi, mas também não vi ninguém comentando, bem ou mal. E agora a série da Mulher-Hulk, uma personagem que tinha tudo para ser desinteressante, mas que tem um histórico feliz nos quadrinhos, especialmente na época dos roteiros e desenhos de John Byrne.

MULHER-HULK – DEFENSORA DE HERÓIS começa bem interessante, apesar da estranheza provocada pelo CGI ruim (que vai ficando ainda mais tosco ao longo dos episódios). Jennifer Walters conversa com a câmera e conta para a audiência do dia que estava passeando com seu primeiro Bruce Banner (Mark Ruffalo) e sofre um acidente. E é nesse acidente que seu sangue se mistura com o sangue de Banner e ela passa a se transformar numa versão feminina do Hulk. Sempre achei essa origem meio qualquer coisa, mas acho que nos quadrinhos é assim também. O primeiro episódio mostra Bruce tentando entender como o corpo de Jen vai se comportar com esse aditivo gama em seu sangue.

Os episódios seguintes são mais a cara da série, trazendo casos especiais de advocacia, especialmente quando ela é contratada para ser advogada de super-seres. Como não se trata de uma série com cara de filme cortado em pedaços, ela funciona bem na maior parte das vezes, embora falte um humor eficiente para uma série que se pretende cômica. O legal é que, mais do que enfrentar vilões, a série está mais preocupada em lidar com as inseguranças de Jen, que já eram manifestadas antes mesmo do acidente, mas que agora se potencializaram, já que seu alter-ego faz muito sucesso, é aquele mulherão poderoso e cheio de confiança, enquanto a Jen (Tatiana Maslany, a ótima atriz de ORPHAN BLACK) se sente pequena e pouco amada.

Nessa busca por amores, Jen experimenta colocar a She-Hulk nos aplicativos de encontros e acaba tendo um pouco mais de sucesso (seguido depois de desapontamento). A propósito, eu não me importo, claro, mas achei um pouco estranho o espaço de sensualidade (ainda que com comicidade) para as cenas dos encontros da heroína com seus pretendentes. Isso, para uma série do pacote da Disney +. Mas deixemos isso para lá. Afinal, nos quadrinhos essa sensualidade era muito mais trabalhada por seus roteiristas. Principalmente nos anos 1980, quando não se falava sobre os danos da erotização dos corpos de super-heroínas, uma pauta mais recente e que mudou consideravelmente os quadrinhos atuais.

Dando um salto para os episódios finais, depois de alguns episódios bem mornos lá pelo meio, “Ribbit and Ripp It”, o episódio que traz uma participação do Demolidor (Charlie Cox), e o mais bem-avaliado no IMDB, é bem legal. Os dois personagens têm uma ótima química. Mas eu gostei mesmo foi do episódio final, “Whose Show Is This?”, que é o que mais brinca com a quebra da quarta parede, tão presente nos quadrinhos de Byrne.

Além do mais, o episódio já começa com uma divertidíssima homenagem à série clássica do Hulk dos anos 1970 (1977-1982). Emulando as imagens mais esmaecidas e trazendo uma mulher halterofilista pintada de verde, esse sonho de Jen passa a ser o sonho de muitos espectadores. Eu, pelo menos, adoraria ver um episódio todo nessa pegada. A season finale tem um jeitão bagunçado muito divertido, mas também traz questões de autocrítica bacanas, como ver o Kevin Feige transformado numa espécie de robô (K.E.V.I.N.) que comanda todo o universo Marvel através de algoritmos. Esse tipo de coisa pode trazer um pouco mais de conscientização para os próprios consumidores das séries e filmes, e talvez até para os executivos. Não tenho tanta esperança que isso possa acontecer, mas em algum momento, com a fórmula cansada e desgastada, algo novo eventualmente precisará ser feito.

+ DOIS FILMES

MORTE MORTE MORTE (Bodies Bodies Bodies)

O cinema de horror da nova geração tem trabalhado com buscas de renovação de subgêneros. E quem acha que o novo PÂNICO é o mais representativo slasher da nova geração pode pensar duas vezes ao ver MORTE MORTE MORTE (2022), dirigido, roteirizado e protagonizado especialmente por mulheres, e trazendo assuntos das redes sociais para o mundo real, gerando desentendimentos e verdadeiros cancelamentos. Por cancelamentos, leia-se mortes, mesmo. A primeira terça parte do filme nos apresenta a esse grupo de jovens que planeja fazer uma festa privada em uma mansão durante um furacão. A brincadeira sugerida (“bodies, bodies, bodies”) acaba sendo uma antecipação para o que há por vir. Com poucos mas interessantes momentos de tensão, muitas delas vindas de discussões banais (destaque para a cena do podcast), o filme de Halina Reijn ganha peso ao também ter um senso de humor muito próprio para tratar dos assuntos em pauta nos dias atuais.

HALLOWEEN ENDS

O que mais me faz simpatizar com esta (suposta) conclusão da trilogia Halloween de David Gordon Green é que o filme dedica cerca de metade de sua duração à apresentação de um novo personagem, já visto a partir de seu prólogo. Trata-se de um rapaz (Rohan Campbell) que vai cuidar de um menino na noite de Halloween e uma tragédia acontece. Mais adiante, ele se torna o interesse amoroso de Lindsey (Andy Matichak, que tem uma beleza que me fez lembrar a Jennifer Morrison nos tempos de HOUSE). Lindsey é a neta de Laurie (Jamie Lee Curtis). Além do mais, por mais que haja interpretações acima do tom o tempo inteiro (que o diga a mãe do rapaz), em HALLOWEEN ENDS (2022), há um cuidado no desenvolvimento desses personagens mais jovens e em suas relações afetivas, antes do filme virar o tradicional slasher que todos amam - alguém da plateia, no meio da sessão, chegou a gritar "quero meu dinheiro de volta!" . A partir da segunda metade, porém, o sangue é generoso e este novo Halloween parece ser o mais gráfico de todos, embora essa afirmação seja meramente um achismo.

sábado, outubro 15, 2022

O ACIDENTE



O longa-metragem de estreia de Bruno Carboni é surpreendentemente mais solar do que seus curtas mais famosos, O QUARTO DE ESPERA (2009) e O TETO SOBRE NÓS (2015). Mas é solar apenas na luz que permeia as imagens, não exatamente no tema, que é delicado e filmado de uma maneira que às vezes faz lembrar Robert Bresson, o que eu vejo como algo positivo. Também senti ecos dos irmãos Dardenne – lembrei-me de O GAROTO DA BICICLETA, principalmente. A trama de O ACIDENTE (2022) nos apresenta a personagens que se conhecem a partir de um acidente.

A moça na bicicleta toma satisfação com a mulher que quase lhe atropela e a mulher avança o carro nela. O filme vai aos poucos nos apresentando a essas pessoas: a moça que está grávida, sua namorada, a mulher que a atropelou, o garoto que estava no carro, o pai do garoto. Gosto muito de como a protagonista vai agindo de maneira intuitiva, e de como a direção vai seguindo também por esse caminho, ora nos deixando confusos sobre suas intenções e dúvidas, ora nos fazendo compreendê-la.

Talvez tenham sido esses gestos de intuição do filme, junto com um naturalismo que se deixa contaminar por recursos de um cinema mais de vanguarda, que tenha me ganhado. Joana (Carol Martins) age de maneira muito pouco clara, mas perfeitamente compreensível. Depois que ela é atropelada pela mulher do carro (Gabriela Grieco), vai para seu emprego de intérprete. Seu nariz sangra. Ela volta para casa e não conta o ocorrido para a namorada (Carina Sehn). Talvez por ser o jeito dela de lidar com certos traumas, talvez seja por outro motivo.

Mais à frente, em conversa entre as duas, sabemos ser um hábito de Joana não contar tudo, estar sempre escondendo algo de sua companheira. O contar de maneira verbal, expositivo, com diálogos claros, não é tão presente assim em O ACIDENTE. Embora haja muitas conversas e elas sejam essenciais, a comunicação não é clara, é tão interrompida e travada como na vida real. E com isso o filme nos convida a compreender o que acontece pelas ações de seus personagens, em especial pelas ações de Joana. Ou seja, é um filme mais de imagens do que de palavras. 

A namorada de Joana só fica sabendo do ocorrido, do tal acidente do título, que não é exatamente um acidente, por causa de um vídeo que viralizou na internet. O menino que estava no carro filmou Joana. Mais à frente, ela é visitada pelo pai do menino, que afirma que a ex-esposa, que dirigia o veículo, está fora de si, e que ele deseja tirar o menino dela, que precisa de sua ajuda no tribunal para testemunhar a seu favor, a respeito do tal acidente. Joana não aceita de imediato o pedido, diz que vai pensar. Antes, ela prefere conhecer o menino. E isso vai fazer toda diferença. Principalmente porque Joana está grávida.

Sim, o filme possui um enredo que traz uma série de acontecimentos em cadeia. E, justamente por isso, é curioso como O ACIDENTE vai cada vez mais se encaminhando para o interior de seus personagens. Para suas angústias, suas dúvidas, seus medos. E nisso, a aproximação de Joana do menino de nome Maicon (Luís Felipe Xavier), é essencial para que os dois se percebam como pessoas que, de diferentes maneiras, sentem lacunas em suas almas. Por isso as conversas entre os dois são tão importantes, embora nunca sejam aprofundadas em palavras. Por isso é tão importante a cena do abraço. E por isso vejo o filme como uma obra sensível que me pegou de surpresa.

+ DOIS FILMES

INSEPARÁVEIS (Las Cercanas)

Um documentário que registra a intimidade e as conversas de duas irmãs gêmeas de 90 anos que tiveram um passado glorioso como pianistas quando jovens. Agora, sozinhas, e com poucos amigos, elas vivem com suas bonecas e relembram à diretora (cuja voz nunca aparece) momentos de suas vidas, apresentando as fragilidades de quem chega a essa idade. Há em INSEPARÁVEIS (2021) cenas envolvendo bonecas que me chamaram bastante a atenção, no sentido de que elas tratam essas várias bonecas quase como filhas. Como um documentário lida muito com o acaso, María Álvarez teve a sorte de encontrar tanto personagens muito interessantes quanto momentos e falas que causam tanto riso quanto tristeza. Gosto muito da solução apresentada para o desfecho.

A PIEDADE (La Piedad)

Um dos filmes mais bizarros que eu vi nos últimos anos. Adorei a experiência e em vários momentos eu parecia estar diante de um acontecimento cinematográfico (principalmente ao vê-lo em uma sala tão grande como o Cineteatro São Luiz), embora em outros faltasse um pouco a mesma força. A PIEDADE (2022), de Eduardo Casanova, é um filme sobre a castração (no sentido figurado?) de um rapaz pela mãe em um relacionamento tóxico. Trata-se de um tema pouco abordado pelo cinema, que parece temer o debate sobre os danos que uma educação e um tipo de formação são capaz para crianças, jovens e até adultos, um debate que acontece diariamente nos consultórios de psicanálise. Falando assim, até pode parecer um filme bem didático para ser visto em escolas ou coisa do tipo, mas as cenas de body horror podem inviabilizar um pouco essa possível intenção. No quesito atuações, grande momento de Ángela Molina, que sempre me faz lembrar da obra-prima ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO, de Luis Buñuel.

sexta-feira, outubro 14, 2022

AMSTERDAM



Olhando a carreira de David O. Russell em retrospecto, é possível ver que aconteceu algo parecido com AMSTERDAM (2022) em algum momento. Depois de uma comédia ousada sobre masturbação e incesto (A MÃO DO DESEJO, 1994), de acertar na comédia mais fácil e agradável com PROCURANDO ENCRENCA (1996), e de entrar de vez no primeiro time de Hollywood com a comédia de guerra TRÊS REIS (1999), o diretor tentou ir por caminhos menos fáceis e talvez emular um Wes Anderson sem TOC nem talento em HUCKABEES – A VIDA É UMA COMÉDIA (2004). Porém, boa parte desses filmes ficaram hoje no esquecimento e o que mais vem à mente quando pensamos em O. Russell são os filmes mais recentes, estrelados por nomes de sucesso como Christian Bale, Jennifer Lawrence, Bradley Cooper, Robert De Niro, Amy Adams, entre outros.

Ou seja, o diretor entrou numa onda de prestígio na mesma medida que passou a ser visto com desconfiança ou até preguiça por boa parte dos críticos. Colocar no mundo um filme como AMSTERDAM é como dar um tiro no pé, já que é um filme bem descuidado em vários aspectos, mas pode, eventualmente, chamar a atenção de alguns poucos críticos que se sintam dispostos a defendê-lo, por mais difícil que seja. Logo, é bem possível que o realizador possa ser visto como um autor incompreendido e que merece uma revisão mais atenta.

Por enquanto, a impressão que eu tenho é de que AMSTERDAM é um filme que tem todo o jeito de detonar de uma vez por todas a carreira de David O. Russell, esse cineasta que havia conseguido se manter nas corridas do Oscar, mesmo não entregando filmes inspirados (eu, pelo menos, não consigo me lembrar de cenas memórias de seus filmes, e vejo isso como algo que depõe contra o diretor). Seus filmes traziam, no entanto, algum entretenimento com um elenco luxuoso que só se vê em filmes de super-heróis de grande porte ou justamente em filmes de Wes Anderson.

Aqui o elenco é o grande chamariz e ele faz questão de deixar isso registrado no cartaz, mas o que temos é um filme tão enfadonho, verborrágico (no pior sentido) e tão pouco interessado na imagem, que só vai deixando claro o quão qualquer nota é o diretor. O tema do filme tem a boa intenção de contar uma história de combate ao fascismo, em tempos de ascensão mundial da extrema direita, mas fica apenas nas boas intenções.

Ao longo da projeção, fiquei com a impressão de estar vendo um especial de natal ruim de televisão. Especial de natal por trazer um elenco de luxo e pouco se importar com forma ou conteúdo e que só traz aquela angústia tradicional dos finais de ano. Preso em seu estilo caótico, o diretor não consegue atrair a audiência, diferente do que aconteceu em filmes como O LADO BOM DA VIDA (2012) ou TRAPAÇA (2013), comédias bem mais facilmente digeríveis.

O roteiro de AMSTERDAM é problemático, e acredito que outro diretor conseguiria ter feito bom proveito do texto original, em vez de tentar emular Scorsese com voice-over, imagem congelada e flashback. Outra coisa que muito me incomodou foi o fato de haver uma timidez demasiada em mostrada o sentimento de amor entre os personagens de Margot Robbie e John David Washington. Teria sido uma intervenção do diretor ou dos atores? Ou será do próprio racismo estrutural americano que ainda não consegue ficar à vontade com casais de etnias diferentes?

O filme tem um início interessante, mostrando o médico torto e de visão monocular vivido por Christian Bale, sendo chamado pelo melhor amigo (Washington) a efetuar uma autópsia no general dos tempos de guerra. Foi na guerra que ele perdeu o olho e passou a sofrer dores diárias. Foi lá que os dois conheceram a enfermeira adorável vivida por Margot Robbie. Isso aparece num eventual flashback, que traz um momento de alegria fugaz dos três personagens, em sua passagem por Amsterdã, para viver uma vida separada da dor e mais próxima da fantasia, ainda mais levando em consideração que os anos pós-primeira guerra têm toda essa aura de euforia. É como se fosse um momento de respiro para o que viria a seguir.

Margot Robbie também representa a arte do século XX, não apenas o cinema, mas as vanguardas e as artes plásticas, nascidas da dor e do aspecto mais doentio da alma. Com seu rosto perfeito, sorriso angelical e figurino sempre estiloso, ela representa o que há de melhor naquele mundo. Mas como o filme opta pelo registro da comédia (de poucos risos) e uma quase ausência de sentimento, deliberado ou não, o sentimento entre os personagens de Robbie e Washington parece sempre atenuado.

O melhor momento do filme acontece com a entrada em cena do personagem de Robert De Niro, que consegue trazer um pouco mais de força para esse filme que tem tanto torpor quanto as drogas que o personagem de Christian Bale toma o tempo todo. Mas, a essa altura, a vontade que o filme acabe está acima da vontade de seguir acompanhando esses personagens ou de ver seus destinos finais.

+ DOIS FILMES

NÃO SE PREOCUPE, QUERIDA (Don’t Worry Darling)

Um filme que tem recebido mais críticas negativas do que positivas, e que talvez por isso tenha me surpreendido positivamente. NÃO SE PREOCUPE, QUERIDA (2022), de Olivia Wilde, parece um episódio de ALÉM DA IMAGINAÇÃO, e isso me chama a atenção. Só achei bem problemática a conclusão, embora tenha gostado da revelação sobre a condição das pessoas que vivem naquele mundo ambientado em casas de subúrbio americanas dos anos 1950. É nesse ambiente que a personagem de Florence Pugh começa a questionar a realidade, principalmente depois que duas outras mulheres fazem questionamentos antes. Dentro dessas ideias que remetem a WAYWARD PINES e O SHOW DE TRUMAN, há críticas ao mundo patriarcal, em sua tentativa de calar as mulheres. Há coisas bem positivas no filme e eu acredito que se fosse melhor editado e com um final melhor pensado renderia uma obra lembrada mais por suas qualidades do que pelas tretas de bastidores.

AVATAR

Certamente gostei bem mais de AVATAR (2009) agora, nesta revisão, em cópia 4K lindona, e vendo na gloriosa sala IMAX. Pena que as notícias sobre o novo 3D ser sem os óculos foram infundadas. Ou ao menos essa tecnologia ainda não está pronta. Ainda assim, pude enxergar agora algo que a própria tecnologia havia atrapalhado na primeira vez, que é sua história de espionagem e ficção científica cuja mensagem, para os dias de hoje, parece ser ainda mais atual. Hoje em dia precisamos lembrar que é, no mínimo, muito errado destruir florestas. Além do mais, a trama do marine que age como agente duplo vai ganhando força à medida que se aproxima de seu clímax. As cenas das batalhas finais são grandiosas e envolventes. Ainda acredito que, para o tipo de catarse que o filme propõe, fica faltando emoção, mas James Cameron é um homem da ação, antes de tudo. Tanto que o filme que eu mais lembrei ao rever AVATAR foi ALIENS – O RESGATE (1986). Ao que parece, o novo vai fazer uma espécie de dobradinha com O SEGREDO DO ABISMO (1989), pelos efeitos revolucionários envolvendo água. Aliás, quem for rever no cinema, uma informação: após os créditos, vemos um aperitivo da continuação.

quinta-feira, outubro 13, 2022

SETE CURTAS EXIBIDOS NO 32º CINE CEARÁ



É impressão minha ou a quantidade de curtas-metragens para a edição deste ano foi mais enxuta? De todo modo, em sua maioria, os filmes me agradaram. Teve curta que ajudou a solidificar a carreira de cineasta; teve curta que apresentou potenciais grandes realizadores. Enfim, falemos um pouco sobre cada um deles – faltei um dia da mostra competitiva, e por isso deixei de ver três curtas.

CAMACO

O tema de CAMACO (2022), o documentário de Breno Alvarenga, é curioso, ao abordar um dialeto criado pelos próprios mineradores do interior de Minas Gerais como forma de resistência. Trata-se de um dialeto adaptado do português e que faz inversões na fonética da língua. É informação nova e portanto bem-vinda, mas o filme tem uma estrutura muito quadrada e acaba por tornar o próprio tema pouco atraente, mesmo se visto à luz do que se conhece de informações extrafílmicas, como a presença da Vale como uma bênção, mas principalmente como uma maldição para os moradores daquela cidadezinha que cada vez mais se distancia da língua criada por seus antepassados.

FILHOS DA NOITE

O segundo documentário da noite de segunda-feira aborda depoimentos e imagens de homens gays da faixa de 50 a 70 anos de idade que lembram de histórias vividas, do preconceito sofrido, mas também das alegrias, mostrando graça no modo como vivem atualmente, agora já mais velhos, mas se sentindo ainda jovens por dentro. FILHOS DA NOITE (2022), de Henrique Arruda, procura aproximar a câmera com frequência para os corpos dessas pessoas, talvez com o objetivo de mostrá-las tão comuns quanto qualquer outra, ou talvez para nos mostrar a beleza do corpo envelhecido. De todo modo, foi outro documentário que pareceu pouco inspirado. O diretor é o mesmo da ficção científica distópica OS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS DO MUNDO (2020).

ELUSÃO

Quando ELUSÃO (2022) começa, mostrando o casal discutindo no carro, com a noite menos escura graças ao brilho forte da bela lua, e a aparição de um outro carro com pessoas agitadas na estrada, tive a impressão de que estaria diante de um filme fantástico, cinema de horror, especificamente, levando em consideração que a produtora é Ticiana Augusto Lima, que dirigiu junto com Guto Parente A MISTERIOSA MORTE DE PÉROLA (2014). Mas Taís Augusto escolhe outro caminho a seguir, preferindo enfatizar a beleza dos planos, seja nos interiores, trazendo à tona o carinho dos dois personagens; seja nos exteriores, com a beleza das paisagens naturais de Lagoinha, praia do Ceará. É, certamente, um filme que merece ser revisto para ser melhor compreendido em sua beleza e complexidade.

ALEXANDRINA - UM RELÂMPAGO

Um jogo de palavras e de imagens que procura reverter o sofrimento e a captura das mulheres pretas na Amazônia em empoderamento a partir de figuras de religiões de matrizes africanas em enquadramentos muito bem pensados. Detalhes como os dedos pintados de preto tocando os animais aproximam a personagem principal deste filme sem uma narrativa convencional (ou vontade de ser didático) de uma espécie de bruxa sagrada ou entidade do além. ALEXANDRINA – UM RELÂMPAGO (2021), de Keila Sankofa, é o cinema usado como ato de defesa de um povo e de seus valores a frente de séculos de aprisionamento e proibição.

CELESTE (SOBRE NÓS)

Trazer trechos do clássico FEITIÇO DO TEMPO, de Harold Ramis, ajuda a enfatizar que este filme trata de mudança na percepção do mundo. No caso, do mundo de uma entregadora de pizza, após ter visto um astro passando pelo céu da cidade em suas idas para o trabalho. Mas o filme de Natália Araújo é rico em sua vontade de fazer bom cinema usando os recursos que tem, e os movimentos de câmera revelam coisas que estavam no extracampo e por isso invisíveis a nossos olhos. O melhor exemplo disso é o momento em que a protagonista entrega uma pizza em uma casa noturna onde um homem está cantando. CELESTE (SOBRE NÓS) (2022) é o tipo de filme que, por seu estilo um pouco mais clássico-narrativo, parece a apresentação de um futuro longa-metragem.

ÚLTIMO DOMINGO

É certamente um dos melhores curtas presentes na edição deste ano do Cine Ceará. Já chama a atenção quando se vende como uma adaptação de um trecho do romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Nas primeiras imagens, somos apresentados a uma fotografia em preto e branco (e scope) lindíssima, com uma direção de arte caprichada e uma dupla de atores muito boa, Jéssica Ellen e Edilson Silva. Ela, Maria; ele, José. Maria é visitada por um enigmático pedinte que retribui a refeição recebida com algo incompreensível para eles. Será maligno ou benigno? Maria, grávida de Jesus, é também outro enigma. E muito bom vê-los pretos, muito diferente das versões hollywoodianas. Mas o mais legal é o quanto ÚLTIMO DOMINGO (2022), de Joana Claude e Renan Barbosa, me deixou encucado com seus possíveis significados, além de trazer à tona o medo do patriarcado dos mistérios femininos.

BIG BANG

O novo filme de Carlos Segundo já chega com um prêmio importante no Festival de Locarno e confirma a força do realizador dentre seus contemporâneos. Em BIG BANG (2022) ele usa o recurso da câmera acompanhando o tamanho do protagonista, um homem que ganha a vida consertando fornos, já que é pequeno o suficiente para entrar dentro deles. Em um acidente do destino ele conhece uma empregada doméstica, e a conversa entre os dois é incrível. Tanto no modo como traz à tona a diferença de classes e o pouco valor que a "elite" os trata, como também é um daqueles momentos mágicos em que toda a plateia olha com a atenção, quase como se parasse de respirar. A opção do uso da fotografia que recorta as pessoas de tamanho mais convencional faz lembrar um recurso usado com crianças em VENENO PARA AS FADAS, de Carlos Enrique Taboada. No mais, um filme explosivo.

domingo, outubro 09, 2022

A FILHA DO PALHAÇO



Escrever sobre A FILHA DO PALHAÇO (2022) é também minha oportunidade de lembrar um pouco como foi a lindíssima noite de abertura do 32º Cine Ceará. Esta edição do festival é o retorno 100% presencial, depois de dois anos de pandemia que afetaram não só este, mas todos os demais festivais de cinema do país. O fato de estar sendo realizado em um momento político muito delicado e entre os dois turnos da eleição presidencial também propiciou declarações e manifestações acaloradas de apoio ao Presidente Lula, como única escolha possível no momento para derrubar o desgoverno vigente. Junte-se a isso o ataque sofrido pelo Bolsonaro ao Nordeste, eis que, cada vez mais, a classe de artistas e de amantes da arte se apresenta ainda mais disposta a batalhar pelo que ama e pelo que considera essencial. Afinal, viver sem arte é como viver sem sentido.

O primeiro grande destaque da noite foi a apresentação da Camerata da UFC, uma orquestra de cordas que trouxe três peças muito especiais e ligadas diretamente ao cinema: duas composições de Ennio Morricone, a música de abertura de TRÊS HOMENS EM CONFLITO, de Sergio Leone; um tema de CINEMA PARADISO, de Giuseppe Tornatore, e um lindíssimo arranjo para “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer”, de Fernando Mendes, mas que foi lembrada por ser a música-tema de LISBELA E O PRISIONEIRO, de Guel Arraes, na arrebatadora versão de Caetano Veloso. Confesso que este que vos escreve chorou um pouco. De arrepiar e de trazer também de volta uma série de sentimentos do passado, embora também nos faça extremamente felizes com o presente. Afinal, por mais que estejamos em tempos difíceis, fazer parte da luta é recompensador.

Em seguida, depois da apresentação de um curta produzido por crianças de escolas da rede pública, chegou a aguardada homenagem a Camila Pitanga, que receberia o Troféu Eusélio Oliveira. Lembro que em 2019 a pessoa homenageada foi Fernanda Montenegro e foi muito emocionante, pois foi também outro daqueles momentos de resistência naquele primeiro ano de extrema direita no Brasil. Agora estávamos muito mais sofridos (pelo governo e pela pandemia), mas também muito mais esperançosos. Camila subiu ao palco com um lindo vestido vermelho e fez um dos discursos mais belos que eu tive lembrança de ter ouvido no festival. Foi um dos mais longos, falando inclusive de sua carreira como atriz, mas eu a ouviria por horas, com todo o prazer. “Faz o ‘L’!”, uma pessoa da plateia gritou, ela falou que nem precisava dizer. Em um trecho do discurso, ela disse: “A gente está vivendo um momento muito estranho e ele convoca a gente a arregaçar a manga e conversar sobre que projeto de país a gente quer. A gente quer o Brasil do ódio ou o Brasil do amor? Eu quero um Brasil diverso, que existe. Meu voto dia 30 é o voto do amor, da tolerância, da convivência".

Sabemos que a classe artística, em sua maioria, já tem a tendência de se filiar a projetos de esquerda, mas desta vez a situação nos leva a deixar ainda mais claro, dar o nome da pessoa, Luiz Inácio Lula da Silva. É ele que está juntando uma frente ampla democrática contra o fascismo e a destruição do país em todos os seus aspectos. Depois do acalorado e delicado discurso de Camila, sobe ao palco Fabiano dos Santos Piúba, o atual secretário de cultura do Estado do Ceará, com palavras tão pungentes quanto poéticas, inclusive com citação a Gilberto Gil. Infelizmente não gravei seu discurso, coisa que deveria ter feito. Mas só a frase “Nós vamos retomar o Ministério da Cultura no Brasil” dita por ele já foi motivo para todo mundo aplaudir com fervor.

E depois de tanta emoção, Pedro Diógenes, o diretor do filme da noite, sobe ao palco com toda a equipe presente de A FILHA DO PALHAÇO. Ver todas aquelas pessoas lutando pelo que acreditam e defendendo sua arte foi também muito lindo de ver. O filme começa e quem é de Fortaleza sente uma familiaridade muito especial, ainda que essa familiaridade, felizmente, já tenha se visto presente em outras obras do cinema cearense dos últimos 30 anos, um cinema que cresceu muito em força e representatividade.

O segundo longa-metragem solo de Diógenes é menos ambicioso que PAJEÚ (2019), uma obra mais profunda e que lida com a memória e o medo do esquecimento. Antes disso, Diógenes havia trabalhado em outros longas de importância fundamental para a arte brasileira. Eu adoro especialmente COM OS PUNHOS CERRADOS (2014), assinado junto com Ricardo Pretti e Luiz Pretti, que não costuma ser um dos mais lembrados de sua filmografia, e que é um grito de revolta e uma ode à liberdade que traz ideais anarquistas ao centro do debate.

Em A FILHA DO PALHAÇO temos uma situação mais simples, envolvendo um homem gay (Demick Lopes, de GRETA), que trabalha como humorista travestido de maneira espalhafatosa (como muitos humoristas da escola tradicional cearense) que se vê diante da filha adolescente surgindo para passar uns dias com ele. O personagem do humorista é diretamente inspirado em Paulo Diógenes, a Raimundinha, bastante conhecida da cena local, e parente do diretor. Essa informação, inclusive, já apresenta algo de muito pessoal ao filme e faz com que o olhemos de maneira ainda mais carinhosa.

Para aquele homem que não costuma ver a filha, a não ser nos dias de Natal, ter que passar aquele tempo com a menina acaba sendo uma tarefa a princípio desafiadora. Além do mais, há todo o sentimento de culpa que ele carrega pelos anos de ausência. O que o incomoda é ter sido um pai relapso, mas a garota está disposta a conhecer um pouco mais esse homem, apesar de tudo. O filme explora a beleza da noite fortalezense com uma fotografia que valoriza a plástica, mas que também traz um sentimento evidente de solidão.

Gostei muito da atriz que faz a filha adolescente, a estreante Lis Sutter. Além do mais, o filme ainda tem o luxo de contar com a participação sempre especial de Jesuíta Barbosa, no papel de um ator modesto. A força de Jesuíta em cena é tão grande que cada vez que ele aparece o filme se agiganta. Há uma cena em especial que eu acho linda, que é sua apresentação no teatro ao lado de Jupyra Carvalho. É curioso como uma cena mais teatral como essa, por mais que fuja deliberadamente do naturalismo, acabe por se distinguir como mais realista do que o tom geral do filme. Talvez por nos convidar a algum tipo de reflexão que nos traz de volta à realidade, na mesma medida que também imprime algo de mágico.

A FILHA DO PALHAÇO é um filme pequeno, mas com um senso de humanidade que combina com nossos desejos de um mundo mais diverso e empático.

+ DOIS FILMES

VICENTA B.

Terceiro longa-metragem de Carlos Lechuga e o segundo que chega à mostra competitiva do Cine Ceará - lembro que SANTA E ANDRÉS (2016) foi recebido com muito carinho por público e crítica. VICENTA B. (2022) tem a força de uma atriz extraordinária, Linnett Hernandez Valdez, que interpreta a personagem-título, uma mulher que ajuda as pessoas com o dom de ver o futuro através das cartas e de se comunicar com os espíritos. Sua vida passa por um momento desafiador quando o filho único sai de casa para iniciar sua carreira profissional. Percebendo que seu dom está desestabilizado, ela se vê impotente frente ao que aparece pela frente. Lechuga cria uma personagem encantadora e um universo fascinante, trazendo uma familiaridade com o Brasil, em especial com o sincretismo religioso baiano. Destaque também para a ótima fotografia de Denise Guerra, que esteve presente no festival para representar o filme.

O INVISÍVEL (Lo Invisible)

Para um filme que busca abordar com profundidade a depressão, em especial a depressão pós-parto, na maioria das vezes O INVISÍVEL (2021), de Javier Andrade, não parece ser bem-sucedido. Mas não dá para dizer que não seja um filme desprovido de grandes momentos. Adoro o final e há também outros ótimos momentos que o filme proporciona. Até diria que é uma obra que pode melhorar à medida que pensamos mais nela. O espaço onde se passa a ação é uma mansão habitada por uma família muito rica, servida por vários empregados, a maioria deles de pele mais escura ou aparência indígena, o que acentua o distanciamento de classes. Além da mansão, há também os espaços verdes ao redor, onde a protagonista (Anahí Hoeneisen), corre até cansar para tentar aplacar as dores da alma. O método de se machucar com cacos de vidro ou objetos cortantes também não é descartado. A fotografia um tanto esmaecida parece combinar com o sentimento de melancolia da personagem. De todo modo, o que mais me incomodou foi não ter me solidarizado com a heroína ao longo de praticamente todo o filme, nem de ter me contaminado com essa depressão. Mas não sei se agir apenas como observador faz parte da proposta.



quinta-feira, outubro 06, 2022

HELLRAISER – RENASCIDO DO INFERNO (Hellraiser)



Na época que HELLRAISER – RENASCIDO DO INFERNO (1987) estreou no Brasil, no ano de 1990, eu ainda estava vivendo o meu segundo ano de cinefilia. Então estava sendo muito excitante poder sair do trabalho (eu era estagiário do Banco do Nordeste, naquele tempo) e ir ao cinema para ver alguma coisa diferente. Lembro que a Revista SET havia dado um belo destaque para a estreia de Clive Barker na direção de longas-metragens e por isso eu já estava bastante ansioso para conferir mais essa experiência com o horror. Mesmo assim, fui pego de surpresa com uma obra séria, muito sangrenta e também muito sensual, mesmo com a presença dos cenobitas, que são como demônios de uma região onde o prazer e a dor se confundem, uma espécie de submundo sadomasoquista.

Porém, a presença dos cenobitas no filme, eu diria que é apenas um detalhe, apenas para criar uma mitologia e também conferir à obra cinematográfica um imaginário mais fantástico. O que mais importa mesmo é o renascimento em carne, osso e sangue de Frank (Sean Chapman/Oliver Smith), o sujeito sedutor que havia transado com Julia (Claire Higgins), a noiva do irmão, e conseguido dela um pacto de fazer qualquer coisa por ele. Sem falar que mais à frente veríamos que ele também tem um histórico de ter assediado a sobrinha Kirsty (Ashley Laurence), por mais que não tenhamos flashbacks para saber até que ponto ele chegou.

Frank havia mexido com forças sobrenaturais e sido fisgado (literalmente) pelos cenobitas, tendo seu corpo despedaçado. Passado algum tempo, Julia e seu agora marido Larry (Andrew Robinson) estão de volta à casa onde o corpo de Frank desapareceu. Novamente o que mais me encanta em HELLRAISER é a paixão da personagem Julia por Frank, a ponto de ela trazer para o abatedouro homens desconhecidos a fim de reconstruir o corpo do amado. Não é uma história de amor, na verdade. É uma história de obsessão, de desejo e de enfrentamento do medo. E esse enfrentamento serve tanto para Julia quanto para Kirsty. A imagem do líquido vermelho gotejando no chão em grande escala, na cena em que Larry tem sua mão ferida por um prego, é uma dica do que haverá ainda de muito sangue ao longo do filme. Sangue que ainda ficará presente no corpo sem pele de Frank, ele que pede um abraço da mulher, mesmo naquelas condições.

Na época que vi este filme no cinema fiquei muito impressionado, pois a maioria dos exemplares do gênero dos anos 1980 tinha um grau de comicidade típica da época, o que HELLRAISER tratou de mudar. Além do mais, a chegada de Barker para o mundo do cinema, adaptando seu próprio conto “The Hellbound Heart”, revelou o frescor e a originalidade de sua ficção para um público maior. Pena que suas adaptações cinematográficas não foram tão bem executadas nos anos seguintes, guardadas algumas exceções, casos de O MISTÉRIO DE CANDYMAN, de Bernard Rose, e de sua nova reimaginação/continuação, A LENDA DE CANDYMAN, de Nia DaCosta.

Acho que o pecado de HELLRAISER está em sua conclusão, já que me pareceu pouco imaginativo o modo como Kirsty se livra dos cenobitas, embora seja ótima a cena em que ela os leva para o quarto escuro onde habita Frank. De todo modo, os poucos efeitos de computador que o filme usa, apenas nas cenas com o cubo, ainda muito insipientes, são charmosos em sua imperfeição. O que conta mesmo são os efeitos práticos e de maquiagem do corpo de Frank, que seguem exemplares. Espero que o remake, a cargo de David Bruckner (do ótimo A CASA SOMBRIA), faça jus ao universo fascinante de Clive Barker.

+ DOIS FILMES

SORRIA (Smile)

Caso curioso de filme que manteve o interesse ao longo dos meses com a veiculação do trailer atraente. Uma pena que o resultado seja uma versão bem menos inspirada de CORRENTE DO MAL e com os velhos clichês manjados do gênero, que ainda funcionam quando um cara como James Wan, por exemplo, os utiliza. O mais interessante de SORRIA (2022), de Parker Finn, é a questão do sorriso macabro, que seria o seu diferencial. E há também algumas cenas de horror gráfico que parecem saídas de quadrinhos. Alguns cenas são bem difíceis de gostar, como aquela do louco no sanatório dizendo que a protagonista vai morrer (cena presente no trailer). Há coisas que funcionam bastante, inclusive me dando um baita susto, mas isso se deve também ao uso do som. Há também o problema de o filme se estender por muito tempo, desnecessariamente, e isso acabar prejudicando o que talvez pudesse funcionar se investisse mais na questão do suicídio da mãe da médica. De todo modo, foi bom ver a sala de cinema quase lotada para ver o filme, por mais que o público (eventual) para o gênero costume ser problemático.

A QUEDA (Fall)

Diversão e tensão em cerca de uma hora e quarenta minutos com duas personagens femininas subindo ou passando perigo em uma antena altíssima no deserto americano. A QUEDA (2022), de Scott Mann, é um filme de premissa simples, mas que tem um roteiro bem pensado e clássico, no sentido de que aproveita cada elemento de cena, seja o celular, o pau de selfie, a mochila ou até mesmo um sutiã. Como variação de filme sobre sobrevivência (me fez lembrar CROCODILOS – A MORTE TE ESPERA, inclusive na questão de relacionamentos entre os personagens), A QUEDA se sai melhor do que a maioria, e ainda tem um par de atrizes boas o suficiente para o gênero. Gosto especialmente de Grace Caroline Curry, que faz a Becky, a jovem que perdeu o marido no prólogo. E gosto também do final, que reserva algumas surpresas em um filme que parecia ser fadado à previsibilidade, mas que acaba entregando mais do que se esperaria.