sábado, outubro 15, 2022
O ACIDENTE
O longa-metragem de estreia de Bruno Carboni é surpreendentemente mais solar do que seus curtas mais famosos, O QUARTO DE ESPERA (2009) e O TETO SOBRE NÓS (2015). Mas é solar apenas na luz que permeia as imagens, não exatamente no tema, que é delicado e filmado de uma maneira que às vezes faz lembrar Robert Bresson, o que eu vejo como algo positivo. Também senti ecos dos irmãos Dardenne – lembrei-me de O GAROTO DA BICICLETA, principalmente. A trama de O ACIDENTE (2022) nos apresenta a personagens que se conhecem a partir de um acidente.
A moça na bicicleta toma satisfação com a mulher que quase lhe atropela e a mulher avança o carro nela. O filme vai aos poucos nos apresentando a essas pessoas: a moça que está grávida, sua namorada, a mulher que a atropelou, o garoto que estava no carro, o pai do garoto. Gosto muito de como a protagonista vai agindo de maneira intuitiva, e de como a direção vai seguindo também por esse caminho, ora nos deixando confusos sobre suas intenções e dúvidas, ora nos fazendo compreendê-la.
Talvez tenham sido esses gestos de intuição do filme, junto com um naturalismo que se deixa contaminar por recursos de um cinema mais de vanguarda, que tenha me ganhado. Joana (Carol Martins) age de maneira muito pouco clara, mas perfeitamente compreensível. Depois que ela é atropelada pela mulher do carro (Gabriela Grieco), vai para seu emprego de intérprete. Seu nariz sangra. Ela volta para casa e não conta o ocorrido para a namorada (Carina Sehn). Talvez por ser o jeito dela de lidar com certos traumas, talvez seja por outro motivo.
Mais à frente, em conversa entre as duas, sabemos ser um hábito de Joana não contar tudo, estar sempre escondendo algo de sua companheira. O contar de maneira verbal, expositivo, com diálogos claros, não é tão presente assim em O ACIDENTE. Embora haja muitas conversas e elas sejam essenciais, a comunicação não é clara, é tão interrompida e travada como na vida real. E com isso o filme nos convida a compreender o que acontece pelas ações de seus personagens, em especial pelas ações de Joana. Ou seja, é um filme mais de imagens do que de palavras.
A namorada de Joana só fica sabendo do ocorrido, do tal acidente do título, que não é exatamente um acidente, por causa de um vídeo que viralizou na internet. O menino que estava no carro filmou Joana. Mais à frente, ela é visitada pelo pai do menino, que afirma que a ex-esposa, que dirigia o veículo, está fora de si, e que ele deseja tirar o menino dela, que precisa de sua ajuda no tribunal para testemunhar a seu favor, a respeito do tal acidente. Joana não aceita de imediato o pedido, diz que vai pensar. Antes, ela prefere conhecer o menino. E isso vai fazer toda diferença. Principalmente porque Joana está grávida.
Sim, o filme possui um enredo que traz uma série de acontecimentos em cadeia. E, justamente por isso, é curioso como O ACIDENTE vai cada vez mais se encaminhando para o interior de seus personagens. Para suas angústias, suas dúvidas, seus medos. E nisso, a aproximação de Joana do menino de nome Maicon (Luís Felipe Xavier), é essencial para que os dois se percebam como pessoas que, de diferentes maneiras, sentem lacunas em suas almas. Por isso as conversas entre os dois são tão importantes, embora nunca sejam aprofundadas em palavras. Por isso é tão importante a cena do abraço. E por isso vejo o filme como uma obra sensível que me pegou de surpresa.
+ DOIS FILMES
INSEPARÁVEIS (Las Cercanas)
Um documentário que registra a intimidade e as conversas de duas irmãs gêmeas de 90 anos que tiveram um passado glorioso como pianistas quando jovens. Agora, sozinhas, e com poucos amigos, elas vivem com suas bonecas e relembram à diretora (cuja voz nunca aparece) momentos de suas vidas, apresentando as fragilidades de quem chega a essa idade. Há em INSEPARÁVEIS (2021) cenas envolvendo bonecas que me chamaram bastante a atenção, no sentido de que elas tratam essas várias bonecas quase como filhas. Como um documentário lida muito com o acaso, María Álvarez teve a sorte de encontrar tanto personagens muito interessantes quanto momentos e falas que causam tanto riso quanto tristeza. Gosto muito da solução apresentada para o desfecho.
A PIEDADE (La Piedad)
Um dos filmes mais bizarros que eu vi nos últimos anos. Adorei a experiência e em vários momentos eu parecia estar diante de um acontecimento cinematográfico (principalmente ao vê-lo em uma sala tão grande como o Cineteatro São Luiz), embora em outros faltasse um pouco a mesma força. A PIEDADE (2022), de Eduardo Casanova, é um filme sobre a castração (no sentido figurado?) de um rapaz pela mãe em um relacionamento tóxico. Trata-se de um tema pouco abordado pelo cinema, que parece temer o debate sobre os danos que uma educação e um tipo de formação são capaz para crianças, jovens e até adultos, um debate que acontece diariamente nos consultórios de psicanálise. Falando assim, até pode parecer um filme bem didático para ser visto em escolas ou coisa do tipo, mas as cenas de body horror podem inviabilizar um pouco essa possível intenção. No quesito atuações, grande momento de Ángela Molina, que sempre me faz lembrar da obra-prima ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO, de Luis Buñuel.
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