domingo, novembro 26, 2023

PELOS CAMINHOS DO INFERNO (Wake in Fright)



- What’s the matter with him? He'd rather talk to a woman than drink?
- Schoolteacher.
- Oh.


Estava prometendo não reclamar da falta de tempo, mas quando vejo que a última vez que consegui escrever para o blog foi no sábado da semana passada, então vejo que as coisas estão mesmo difíceis e tempo é uma coisinha muito preciosa. Talvez a mais preciosa do mundo. E uma coisa que me traz um misto de emoções é a excitação com a existência de grandes filmes a ver e a frustração de não conseguir ver o bastante. Ou o mínimo possível – seja lá o que signifique “mínimo”, nesse caso.

Recentemente, dei de cara novamente com a famosa lista dos 60 filmes notáveis que Carlos Reichenbach nos deixou*. E acho que é possível tentar administrar o tempo, com esforço e paixão, de modo a ver as coisas que valem muito ver. E por isso deixo a lista aqui nesta própria postagem, para facilitar para mim e para eu sempre voltar a ela sempre que quiser pegar um ou outro filme presente. Um detalhe é que o Carlão optou por citar apenas um filme por diretor. Ou seja, sabemos que outros filmes de cineastas queridos dele, como Zurlini, Lang ou Fuller, para citar apenas três, poderiam facilmente ser incluídos. Até porque ele costumava dizer que seu filme favorito era DOIS DESTINOS, do Zurlini, e optou por incluir outro.  

Foi revendo essa lista que percebi que eu tinha PELOS CAMINHOS DO INFERNO (1971), de Ted Kotcheff, facinho aqui comigo, numa dessas coleções caprichadas da Versátil. E melhor: com direito a ótimos extras que ajudam a contextualizar a produção. O incrível deste filme de Kotcheff, cujas imagens teimam em permanecer em minha memória, é que ele nos impressiona a cada nova cena, a cada nova aventura (ou desventura) que o protagonista vivencia.

Na trama, Gary Bond é um professor de escola que passa uns dias numa cidade escaldante do interior da Austrália. O que chama a atenção, a princípio, é a pouca quantidade de mulheres e a alta concentração de homens, bebendo muita cerveja (muita mesmo!), e às vezes também brigando muito, o que, com frequência, nos remete aos westerns. Existe mesmo esse tipo de cidade no interior da Austrália profunda, o espaço preferido para cineastas que gostam de mostrar esse lado mais feio da grande ilha. Nos extras, Kotcheff conta que esteve numa dessas cidades e notou que havia pouquíssimas mulheres. Ele perguntou se havia um bordel na cidade e disseram que não havia. O que esses homens faziam, então? Brigavam e bebiam. Inclusive, quando o filme estreou na Austrália, muitos australianos ficaram incomodados com o modo como eles foram retratados por um cineasta estrangeiro (Kotcheff é canadense).

Eu ousaria dizer que nunca vi um filme com tanta testosterona sendo despejada na tela quanto aqui. E por mais que tenha ficado muito envolvido com as cenas das apostas e toda a relação que vai se estabelecendo entre o protagonista e aqueles homens desconhecidos (destaque para a presença de Donald Pleasance, como um médico que perdeu a licença para trabalhar), nada me preparava para a cena da caça aos cangurus. A alegria inicial e o movimento do carro e das pessoas dentro dele nessa cena me remeteu à obra-prima HATARI!, de Howard Hawks. Mas isso só durou um instante. Depois tudo vira um grande pesadelo, mas um pesadelo incrível de ver, de deixar o queixo caído. Detalhe: há várias cenas em que Kotcheff filmou no assoalho do carro, o que dá um ar de verdade impressionante.

Há também todo o cuidado do diretor em tornar o ambiente ainda mais quente aos nossos olhos e ouvidos, com o uso de figurinos sempre claros – com cores amarelas ou cor de terra – para somar à luz intensa e ao calor pingando nos corpos. Mas o mais importante, pelo menos do ponto de vista da trama e da construção de personagens, é a trajetória do protagonista, chegando ao inferno de sua própria existência naquele lugar. Além do mais, o filme provoca uma reflexão muito interessante sobre masculinidade. Um verdadeiro estudo do homem e do quanto os aspectos mais sombrios de nossa personalidade estão escondidos, só esperando um instante para aflorar e nos surpreender. 

Filme visto no box Ozploitation.

* 60 Filmes Notáveis.

Por Carlos Reichenbach.

1. A PRIMEIRA NOITE DE TRANQUILIDADE (1972, de Valério Zurlini)
2. A TERCEIRA VOZ (1960, de Humbert Cornfield)
3. OS AMORES DE PANDORA (1951, de Albert Lewin)
4. CONFISSÕES DE UM COMISSÁRIO DE POLÍCIA AO PROCURADOR DA REPÚBLICA (1971, de Damiano Damiani)
5. DOMÍNIO DE BÁRBAROS (1947, de John Ford)
6. SANGUE SOBRE A NEVE (1959, de Nicholas Ray)
7. O DESPREZO (1963, de Jean-Luc Godart)
8. PORTAL DA CARNE (1964, de Seijun Suzuki)
9. O PEQUENO RINCÃO DE DEUS (1957, de Anthony Mann)
10. STROMBOLI (1949, de Roberto Rossellini)
11. O ESTRANHO SEGREDO DO BOSQUE DOS SONHOS (1972, de Lucio Fulci)
12. ASSIM ESTAVA ESCRITO (1952, de Vincent Minelli)
13. CÃO BRANCO (1982, de Samuel Fuller)
14. DUBLÊ DE CORPO (1984, de Brian De Palma)
15. TAXI DRIVER – MOTORISTA DE TÁXI (1976, de Martin Scorsese)
16. VIVER E MORRER EM LOS ANGELES (1985, de William Friedkin)
17. VIDEODROME – A SÍNDROME DO VÍDEO (1983, de David Cronenberg)
18. O PODEROSO CHEFÃO – PARTE II (1974, de Francis Ford Coppola)
19. O ESPÍRITO DA COLMEIA (1973, de Victor Erice)
20. QUANDO DESCERAM AS TREVAS (1944, de Fritz Lang)
21. O GRANDE ÊXTASE DO ESCULTOR STEINER (1974, de Werner Herzog)
22. PELOS CAMINHOS DO INFERNO (1971, de Ted Kotcheff)
23. PRIVILÉGIO (1967, de Peter Watkins)
24. SE... (1968, de Lindsay Anderson)
25. AS PORTAS DA JUSTIÇA (1990, de Gianni Amelio)
26. OS 5.000 DEDOS DO DR. T (1953, de Roy Rowland)
27. O UIVO (1968, de Tinto Brass)
28. LÁBIOS VERMELHOS (1960, de Giuseppe Bennati)
29. OS REIS DO IÊ, IÊ, IÊ (1964, de Richard Lester)
30. SEGREDO DE UMA ESPOSA (1964, de Shôhei Imamura)
31. PANDEMÔNIO (1941, de H. C. Potter)
32. ÁGUIA SOLITÁRIA (1957, de Billy Wilder)
33. PAIXONITE AGUDA (1939, de A. Edward Sutherland)
34. QUANDO OS BRUTOS SE DEFRONTAM (1967, de Sergio Solima)
35. OS PÁSSAROS (1963, de Alfred Hitchcock)
36. O INTENDENTE SANSHO (1954, de Kenji Mizoguchi)
37. VOLÚPIA DA VINGANÇA (1974, de Eizo Sugawa)
38. A PALAVRA (1955, de Carl Theodor Dreyer)
39. MINHA ESPERANÇA É VOCÊ (1963, de John Cassavetes)
40. TRAGAM-ME A CABEÇA DE ALFREDO GARCIA (1974, de Sam Peckinpah)
41. W.R. – MISTÉRIOS DO ORGANISMO (1971, de Dusan Mukavejev)
42. R. A. S. – REGIMENTO DE ARTILHARIA ESPECIAL (1973, de Yves Boisset)
43. RAÍZES (1953, de Benito Alazraki)
44. A BESTA HUMANA (1938, de Jean Renoir)
45. ED WOOD (1994, de Tim Burton)
46. ILHA DOS TRÓPICOS (1957, de Robert Rossen)
47. NAS GARRAS DO VÍCIO (1958, de Claude Chabrol)
48. VENDAVAL NA JAMAICA (1965, de Alexander Mackendrick)
49. O MÍSTICO (1948, de Bernard Vorhaus)
50. CREPÚSCULO (1981, de Govindan Aravindan)
51. O DRAMA DE UM SOBREVIVENTE (1959, de Jukichi Uno)
52. O GRITO (1957, de Michelangelo Antonioni)
53. QUANDO O AMOR É CRUEL (1966, de Luigi Comencini)
54. MASSACRE DE CHICAGO (1967, de Roger Corman)
55. HATARI! (1962, de Howard Hawks)
56. O EXÉRCITO DAS SOMBRAS (1969, de Jean-Pierre Melville)
57. O JOVEM TÖRLESS (1966, de Volker Schlöndorff)
58. PERDIDOS NO KALAHARI (1965, de Cy Endfield)
59. O REI DOS MÁGICOS (1958, de Frank Tashlin)
60. ORIGEM DO SEXO (1967, de Kaneto Shindô)

+ DOIS FILMES

A FLOR DO BURITI (Crowrã)

Ter realizadores indígenas fazendo seus próprios filmes com seus olhares é muito importante para que no futuro tenhamos obras cada vez mais representativas de seus sentimentos e pensamentos. Em A FLOR DO BURITI (2023) temos dois realizadores: uma mulher brasileira (Renée Nader Messora ) e um homem português (João Salaviza), mas um indígena é um dos roteiristas (Henrique Ihjãc Krahô), e isso faz a diferença, especialmente quando o filme procura lidar com o dia a dia da vida na tribo Krahô, mas principalmente na narração de uma invasão ocorrida no passado por fazendeiros – infelizmente uma realidade ainda presente. Há alguns momentos que lembram Apichatpong Weerasethakul e talvez sejam os momentos que eu mais gostei, quando o filme se investe de uma aura de mistério, auxiliada pelo poder da floresta e pelo modo como a luz da noite é filmada. O começo do filme chama a atenção também pelo belo cuidado com o som: em determinado momento, tem-se a impressão de que são os próprios espectadores que estão cantando junto com o pajé. Que bom que o filme teve essa premiação em Cannes que chamou mais a atenção para si.

SAMSARA – A JORNADA DA ALMA (Samsara)

Antes de mais nada, SAMSARA – A JORNADA DA ALMA (2023) deveria conter um aviso para quem tem sensibilidade a efeitos de luzes em demasia – meu caso. Até o bad boy Gaspar Noé toma esse cuidado com o espectador, ele que usa esse recurso com frequência. No caso de SAMSARA, o momento das luzes chega próximo a uma sessão de tortura. De todo modo, Los Patiño é um diretor interessante. Gostei muito de LUA VERMELHA (2020). E acredito que este novo filme tem momentos brilhantes, especialmente na segunda parte. Perde quando usa a fala para expressar a profundidade da experiência da vida, mas ganha quando expressa isso com imagens. Adorei a cabritinha e o diretor sabe captar as imagens da natureza pensando numa direção de arte. Uma pena eu ter saído da sessão tão incomodado com a experiência, ao mesmo tempo que guardo a memória dos bons momentos.

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