sábado, outubro 26, 2024

SUPER/MAN – A HISTÓRIA DE CHRISTOPHER REEVE (Super/Man – The Christopher Reeve Story)



“You’re still you, and I love you”, disse Dana Morosini, a esposa de Christopher Reeve, quando o ator acordou do coma, tetraplégico, após o acidente que quase tirou sua vida. Os momentos mais emocionantes, para mim, de SUPER/MAN – A HISTÓRIA DE CHRISTOPHER REEVE (2024) são os que apresentam também o drama dessa mulher, e de seu amor por aquele homem que fora esportista e mais conhecido por seu papel em SUPERMAN – O FILME (1978) e suas continuações. A história de Reeve passaria a ser dividida entre antes e depois do acidente, já que os nove anos seguintes, até sua morte em 2004, foram de frustração, luta, militância e talvez até de aceitação da condição em que se encontrava, já que pelo menos ele podia ver os filhos crescendo e lutar por condições melhores para pessoas paralisadas como ele e invisibilizadas na sociedade.

O documentário sobre a vida de Christopher Reeve pode até ter um formato bastante tradicional, mas tem momentos que pegam tanto a gente pelas emoções, que é difícil não vê-lo como muito especial. E o filme não chega a ser apelativo, focando por demais na tragédia do ator, uma vez que aquilo que é relatado é parte do que aconteceu de fato. Tanto que a gente até percebe que as idas e vindas no tempo ajudam a tornar o filme menos pesado. Ora estamos vendo Reeve lutando na sua nova condição de homem tetraplégico, ora o foco continua a ser sua história como ator de cinema nos anos 70/80/90, que não chegou a engrenar muito, a não ser quando ele encarnava o mais icônico super-herói da DC, o que não deixa de ser algo de certa forma dramático na vida de um ator.

Há quem lembre de seu papel em ARMADILHA MORTAL (1982), por ter um grande cineasta atrás das câmeras, Sidney Lumet, e também do drama romântico EM ALGUM LUGAR DO PASSADO (1980), de Jeannot Szwarc. Também costumam lembrar de um filme que foi lançado seis dias antes do acidente de Reeve, em que ele, coincidentemente, interpreta um policial que fica paralisado depois de um tiro. O filme se chama SEM SUSPEITA (1995), de Steven Schachter, e é hoje pouco lembrado, a não ser por essa curiosidade sinistra. E é algo lamentável, já que Reeve, já em SUPERMAN, se mostrava um excelente ator, uma vez que interpretava praticamente duas pessoas de personalidades distintas, saindo de uma e entrando na outra em segundos, apenas tirando ou colocando os óculos.

Vendo o documentário, percebi que havia quase me esquecido do momento que ele foi aplaudido de pé na festa do Oscar, em 1996, doze meses após o acidente. Foi de fato um momento de arrepiar. E vendo no filme, sabendo dos bastidores, e sabendo de sua amizade com Robin Williams e toda a logística para possibilitar sua aparição na festa, esse momento passa a ganhar ainda mais significado. Aliás, as aparições de Robin Williams no filme sempre me trazem um misto de alegria e tristeza. Ele, um homem que escondia sua condição de depressivo com a figura de uma pessoa sempre brincalhona e que estava presente para fazer as pessoas rirem, é alguém que ficou completamente devastado com a partida do amigo, como dá para perceber claramente em seu discurso no velório de Reeve.

E o que é o momento em que o filho caçula lê um texto escrito por sua mãe, a esposa de Reeve? É como se o filme, naquele instante, nos convidasse a também olhar para o drama daquela mulher, tirando o foco da ironia de se ter um super-homem quebrado e totalmente dependente da ajuda dos outros. O discurso de Dana no funeral do marido é também de nos deixar desidratados. Depois de Reeve, ela passa a ser a personagem mais importante do filme, representando o grande amor da vida do ator.

Ainda que seja um filme que não se perde tanto se visto na telinha, ter a chance de ver SUPER/MAN – A HISTÓRIA DE CHRISTOPHER REEVE no cinema é uma bênção: a telona intensifica tanto nossa atenção quanto nossas emoções. Além do mais, diante do aprendizado que foi a vida de Reeve em seus últimos nove anos na Terra, podemos dizer que esse momento sofrido valeu a pena. Sua vida passou a ser como uma espécie de Jó do mundo contemporâneo: quando poderia estar amaldiçoando a própria existência, ele fez de sua condição um combustível para um outro tipo de luta, uma luta que faria a diferença na vida de outras pessoas tetraplégicas nos Estados Unidos e em outros países. Além da criação da Fundação Christopher Reeve, ele cofundou o Centro de Pesquisa Reeve-Irvine, com foco no estudo do reparo neural, regeneração e recuperação da função após lesão da medula espinhal. No fim, o documentário dirigido por Ian Bonhôte e Peter Ettedgui é sobre a restauração da fé de um homem, e do quanto essa fé pode ser materializada em atos. No fim, Superman partiu deste mundo quase como um santo, quase como o Jesus Cristo pop que caracterizou no uniforme azul e vermelho.

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ORLANDO, MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA (Orlando, Ma Biographie Politique)

Não tinha lido ou sequer ouvido falar em Paul B. Preciado antes do lançamento deste filme nos cinemas. Trata-se de um escritor transgênero que se destaca como um dos grandes pensadores da teoria queer e da pornografia dos dias de hoje. Fiquei até interessado nos escritos dele. ORLANDO, MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA (2023), seu filme de estreia, utiliza sua leitura e seu interesse pelo livro de Virginia Woolf para apresentar a si e a dezenas de pessoas trans no mundo que participam deste documentário bem diferente, já que tanto enfatiza os dramas e as alegrias dos atores, quanto também aproveita para costurar seus pensamentos, indo desde a questão do uso dos hormônios sintéticos até chegar à mudança de nome nos documentos de identidade. Gosto da inclusão de imagens de arquivo das primeiras pessoas trans do século XX, embora tenha me parecido a princípio pouco coerente com o estilo adotado pelo filme, sempre com uma pessoa convidada se apresentando como Orlando e falando de si. Ter essas imagens de arquivo ajuda a quebrar essa repetição da forma, que começa muito interessante, mas depois a repetição vai cansando um pouco.

TODA NOITE ESTAREI LÁ

E se um filme contasse a história de uma mulher transexual que é impedida de professar sua fé e essa fé fosse numa igreja evangélica? Essa é a história de TODA NOITE ESTAREI LÁ (2023), de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin. Gosto de como a própria Mel Rosário dá uma ideia que faz com que sua história ganhe ainda mais força. Afinal, ficar focado apenas na história dela com os cartazes em frente à igreja e em seus protestos podia correr o risco de se repetir e se esvaziar. Temos um contato maior com a família da personagem, sabemos de suas dificuldades financeiras e testemunhamos sua força para enfrentar os obstáculos num país governado por Bolsonaro. Esse entorno faz com que a linha principal do filme se torne mais rica. Muita coisa que acontece não acontece na frente das câmeras, até pela impossibilidade de filmar as discussões entre os advogados do pastor e os advogados de Mel ou de se entrar com câmeras dentro da igreja. De certa forma, isso é um ponto a favor de Mel Rosário, que se torna ainda mais protagonista dessa história.

MARIAS

Não dá para prever o resultado de um filme. Se for um documentário que dependerá da ação de terceiros, a produção está ainda mais nas mãos do acaso. MARIAS (2024), de Ludmila Curi, começa estranho, como uma espécie de road movie em que a diretora sai em busca de Maria Prestes, a viúva de Luís Carlos Prestes. É claramente um filme de entusiastas dos movimentos de esquerda e do partido comunista, da história que foi contada no século XX e prosseguiu com os movimentos trabalhistas no novo século: Mas MARIAS se tornou o filme de uma mulher ausente, de alguém que se negou a aparecer em imagem e som, e com isso vai perdendo seu sentido. O próprio objeto de estudo principal do filme se torna um enigma. Daí se transforma num filme de várias Marias, começando com Maria Bonita, passando por Dilma Roussef e também por Marielle Franco. E, pra mim, é quando o filme passa por Marielle, e são poucos minutos com a vereadora que fez história falando com gravações caseiras num encontro com amigos, que eu fiquei sentindo falta de mais. Percebi o quanto essa mulher tinha uma força e um carisma tão grandes que, até por ser negra, chamou ainda mais a atenção dos criminosos que a executaram. Então, o que temos é uma colcha de retalhos com imagens de arquivo muito boas, inclusive as cenas na Rússia, mas que no todo parece não ter conseguido o sucesso merecido. Mesmo assim, fico feliz que tenha vindo ao mundo e agora possa ser visto.

sábado, outubro 19, 2024

SORRIA 2 (Smile 2)



Os filmes de terror me deixam feliz. Essa frase eu ouvi de um amigo querido, o Chico Fireman. E hoje repito, como minha, pois de fato eu também tenho essa relação de afeto com o horror no cinema. Muito provavelmente já devem existir algumas pesquisas científicas sobre o porquê de isso ocorrer com tantas pessoas, já que é um gênero que tem muitos fãs. Hoje tenho perdido alguns títulos do gênero no cinema pois muitos deles só entram em cartaz em minha cidade em cópias dubladas, e eu não entendo muito bem o raciocínio das distribuidoras que fazem esse tipo de coisa. Aliás, até em filmes mais “adultos”, por assim dizer, como O APRENDIZ, para citar um exemplo de um título que entrou em cartaz na última quinta-feira, o grosso das cópias aqui é dublado. E estamos falando de um filme que fala da juventude de Donald Trump, um filme político. SORRIA 2 (2024), felizmente, contou com mais cópias legendadas e não precisei pegar a última sessão da noite ou buscar numa sala VIP para ter acesso.

Outra coisa que queria deixar registrada, ainda sobre a questão do prazer, é o quanto esse momento de estar desligado do mundo numa sala escura, de poder me desligar dos problemas e do celular por cerca de duas horas, o quanto isso me faz bem. Então, meu sentimento de gratidão com o filme cresce, principalmente quando começo a perceber, desde a primeira cena, que não estamos diante de um filme vulgar, mas de um trabalho de direção sofisticada, ainda que jogando um jogo de familiaridade e de aproveitamento dos clichês do horror, como os jump scares, as cenas com espelhos e o uso do som como auxiliar na promoção do susto.

Ou seja, o diretor Parker Finn não tenta fazer um arthouse ou algo próximo do que chamavam certos filmes de horror da década passada, o tal do pós-terror ou pós-horror, termo que felizmente logo caiu em desuso e foi rejeitado pelos próprios fãs do gênero que já sabiam que a invenção e a originalidade no cinema de horror são tão antigas quanto o próprio cinema em si. Ele adiciona neste novo filme ainda mais sangue, mais gore, mais violência gráfica e mais vigor. A história não é sobre a maldição misteriosa que chega até essa mulher e depois vai passando para outras pessoas, mas se concentra exclusivamente nela. Como se o filme percebesse que o seu maior trunfo estivesse em sua atriz, e em momento algum ele larga a mão dela.

Um dos maiores méritos de SORRIA 2 é conseguir nos envolver numa história que de certa forma já havia sido contada no primeiro filme, que eu considero um exemplar de terror quase genérico e esquecível, mas que até acho que preciso rever para perceber melhor, já que neste segundo fica muito clara a elegância na direção de Parker Finn desde o prólogo, mas principalmente como ele lida com a perda gradual e desesperadora da sanidade da protagonista, vivida por uma ótima Naomi Scott (ALADDIN). Aliás, é até curioso a gente ter em cartaz um filme com personagens tão parecidas (refiro-me a Margaret Qualley em A SUBSTÂNCIA).

Naomi Scott é uma verdadeira scream queen, um deslumbre na aparência e na entrega de sua personagem, com sua tricotilomania (transtorno psiquiátrico que faz com que o paciente sinta um desejo incontrolável e frequente de arrancar fios de cabelo), com seu nervosismo que já começa com a dor que sente no corpo e ausência de um vicodin para não sentir a dor na coluna, ocasionada pelo terrível acidente a que sobreviveu. E isso piora quando ela visita a casa de um amigo traficante de drogas e o vê extremamente alterado, para logo em seguida ter que testemunhar o rapaz tirando a própria vida de maneira brutal e gráfica na sua frente, enquanto sorri um sorriso diabólico. A partir daí é inferno abaixo na vida da personagem.

Destaque para o modo como Finn enquadra e escolhe o que mostrar e o que não mostrar para o espectador. E quando ele quer mostrar, ele é impiedoso. SORRIA 2 é também um filme sobre depressão e solidão, quando nos coloca na vida da protagonista e do quanto esse sentimento de isolamento vai se tornando cada vez mais intenso. Tanto que em certo momento sua esperança passa a estar na morte. Mas atenção: quem for ver o filme esperando uma composição narrativa calcada na história pode não gostar do filme. O interesse maior está na ambientação e nas situações desesperadoras e aterrorizantes por que passa a heroína.

Outro grande mérito está nas cenas musicais de Scott como pop star. São cenas tão caprichadas e exuberantes que deixam as cenas do show da filha do Shyamalan em ARMADILHA comendo poeira, inclusive no que se refere à música. No mais, parece que os anos 80 estão de volta novamente, com esse interesse pelo horror mais gráfico e efeitos (aparentemente?) práticos e muito criativos.

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LAURA HASN’T SLEPT

O curta que inspirou e trouxe investimento para que o diretor Parker Finn fizesse o seu primeiro SORRIA (2022) se destaca também pela atenção dada à boa performance da protagonista feminina, aqui vivida por Caitilin Stasey. LAURA HASN’T SLEPT (2020) começa numa sessão de terapia, em que a jovem conta, extremamente perturbada, a seu analista estar tendo pesadelos com uma pessoa que se apresenta a ela com um sorriso assustador. A produção é bem barata, mas há alguma sofisticação no uso da câmera, seja na aproximação, seja na movimentação em 360 graus. Provavelmente ver este curta antes de ver SORRIA 2 (2024) pode ser uma experiência qualquer nota, mas, vendo do futuro onde estamos faz uma diferença, sim. Disponível no YouTube.

A GAROTA DA VEZ (Woman of the Hour)

Um filme de um assassino de mulheres dirigido por uma mulher tem um tipo de sensibilidade diferente. Nota-se que há uma busca de equilíbrio entre mostrar as cenas de violência de modo que se construa o clima de tensão e medo do assassino e não tornar essas cenas gráficas o suficiente para que se tornem um espetáculo. Anna Kendrick é a atriz principal de sua estreia na direção, um filme em sintonia com a onda de produções que parecem muito interessadas na década de 1970. Inclusive, A GAROTA DA VEZ (2023) até faria uma bela sessão dupla com ENTREVISTA COM O DEMÔNIO, já que ambos se passam num programa de televisão. Este aqui bem menos, já que há um trabalho de montagem que também tem a função de nos apresentar a algumas das vítimas do serial killer, que estava como participante nesse programa de namoro na TV. Há cenas de muita tensão, como a conversa do sujeito com a personagem de Kendrick depois do programa e há também a crítica feroz ao machismo que contribuiu, inclusive, para que o assassino continuasse a matar mais e mais vítimas.

ALIEN: ROMULUS

Legal terem dado a direção do novo “Alien” para Fede Alvarez, um cineasta que começou em Hollywood com o cinema de horror, A MORTE DO DEMÔNIO (2013), e que poderia trazer algo novo para a franquia, já que o próprio Ridley Scott, com sua irregularidade, havia fracassado com ALIEN: COVENANT (2017), cuja existência eu até já havia apagado de minha memória. Este novo filme começa já empolgante, com um novo universo sendo apresentado a princípio, o de um planeta de mineração em que não se vê o sol e tudo é feio e escuro e as pessoas trabalham nas minas até morrer. A única saída possível é através de naves com equipamentos de criogenia, dada a distância para outros planetas habitados e habitáveis. Daí a personagem principal, Rain (Cailee Spaeny), ter aceitado se a arriscar com a missão de roubar câmeras criogênitas de uma espaçonave abandonada. A espaçonave é a de ALIEN, O 8º PASSAGEIRO (1979), quase toda destruída após os acontecimentos e a posterior fuga de Ripley. Um dos personagens mais legais do novo filme é novamente um androide, Andy (David Jonsson). O ator é ótimo, desconhecia o seu trabalho. Andy passa de criatura falha e frágil e além de tudo odiada por alguns para herói que toma decisões necessárias para a sobrevivência do grupo de jovens, quando do ingresso deles na nave abandonada e ainda cheia daquelas criaturas perigosas. Fede Alvarez homenageia o filme original inúmeras vezes, mas traz um frescor necessário e uma dinâmica empolgante. Penso neste momento numa cena que envolve o funcionamento da gravidade numa situação de ataque de diversos monstros. Cena excelente, como outras tantas. Não é um trabalho totalmente original, mas não tinha mesmo como ser, já que tem a função de dar continuidade à mitologia, mas aqui sem muitas complicações. Uma das coisas que me incomodou foi aquela contagem regressiva do computador central, excessivamente conveniente para a trama, embora compreensiva do ponto de vista do jogo de suspense.

domingo, outubro 13, 2024

ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS



Ontem, ao escrever sobre o mais recente filme de Woody Allen, dei de cara com um texto escrito por mim, aqui para o blog, 22 anos atrás, sobre A OUTRA. Nele eu meio que reclamava e meditava sobre a mudança para a casa dos 30 anos de idade, uma passagem que eu de fato senti mais que a mudança para a casa dos 40, muito pelo que eu lamentava não ter conseguido em minha vida naquele momento. Hoje, aos 52 anos, me sinto mais feliz e grato, apesar de já sentir o peso da idade no corpo e também perceber as marcas do envelhecimento cada vez mais duro em minha mãe, que tem sofrido muito com as dores e a dificuldade de mobilidade. O fato de eu estar vivendo também um feliz romance tardio também me traz uma consciência maior do passado e do que pode vir a acontecer no futuro, mas também me faz valorizar mais as alegrias do presente.

Ontem à noite, por exemplo, eu, Giselle e Regina, uma amiga dela, fomos a uma festa dessas de flashback, com uma banda muito famosa por tocar jovem guarda, que é um tipo de música que serve mais como museu do que como algo a ser de fato curtido. Mas isso é só a minha impressão, não um fato. O fato é que existe um monte de gente que se sente feliz e com um sentimento de pertencimento em estar numa festa como essas, cantando a plenos pulmões e muitos com o corpo frágil as letras. A maior parte do público presente na festa era de pessoas da terceira idade, muitas delas extremamente felizes de estarem ali. Por isso, não importa se eu me incomodava com as versões toscas de canções dos Beatles da fase inicial, ou outras canções desse período, mas no final, especialmente quando a banda também toca outros gêneros e artistas (era disco, Secos e Molhados, A Turma do Balão Mágico, Sidney Magal, Elvis, Frank Valli etc,) e quando fomos lá para a frente dançar, valorizei a banda, a música, a alegria de estar dançando com alguém que amo.

E assim faço ligação com ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS (2024), de Eduardo Escorel, um filme que chama a atenção para o envelhecimento e a aproximação da morte, essa figura invisível que pode chegar a qualquer momento e a qualquer pessoa, mas que parece, naturalmente, ainda mais próxima de alguém que já está entre 96-98 anos de idade, como é o caso da pessoa que escreve as anotações lidas na voz de Matheus Nachtergaele.

Meu contato com o sociólogo, crítico literário e professor Antonio Candido se deu na faculdade de Letras, tanto na graduação quanto no mestrado. Era/é um nome muito querido pelos professores e também pelos alunos como um grande pensador da nossa literatura. Ver este documentário me fez conhecer um pouco mais o pensador e teórico, um dos criadores do PT, entusiasta do socialismo e alguém que poderia ter optado por viver na bolha de seu mundo maravilhoso de livros e erudição, mas que fez questão de conhecer o Brasil profundo com os próprios olhos, entrando em contato com as misérias do povo brasileiro desfavorecido.

Os trechos de seus textos para o filme são de dois dos 74 cadernos encontrados após sua morte, aos 98 anos, escritos entre os anos de 2015 e 2017. Não mais tão ativo, Candido testemunhou a derrocada dos anos Lula com tristeza: o golpe de Dilma Roussef e um novo e aterrador momento de nossa política, que ele teve a sorte de não ver. Com frequência, ouvimos sua voz enquanto a câmera passeia pela casa vazia, enfatizando sua ausência física e sua rica estante ainda disposta.

Algo muito bonito que o filme destaca a partir da própria fala do escritor é seu imenso amor pela esposa, Gilda, falecida em 2005, mas presente todos os dias em seus pensamentos. Candido dizia que Gilda foi a melhor coisa que lhe acontecera na vida e é tocante essa devoção a ela, principalmente partindo de alguém que tem também uma outra paixão imensa: a literatura, além da política. Como filme, é simples, mas ouvir o texto de Candido, tão lúcido quanto poético, falando inclusive de sua condição de pessoa idosa e da expectativa da morte, é de um prazer imenso.

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TERMODIELÉTRICO

É impressão minha ou uma relação mais estreita entre cinema e ciências naturais dificilmente é bem-sucedida? E olha que o mundo dos cientistas e inventores é fascinante, assim como é fascinante também saber mais sobre radioatividade. Este documentário é um exemplo dessa dificuldade, com a diretora falando sobre seu avô, Joaquim da Costa Ribeiro, pioneiro da física no Brasil, e detalhando um pouco suas pesquisas e realizações. TERMODIELÉTRICO (2023), de Ana Costa Ribeiro, entrecorta a vida do cientista com uma apresentação de seus estudos, descobertas e êxitos. O resultado é um tanto irregular, por vezes interessante, outras vezes monótono. Nem sempre a costura que a diretora faz funciona, mas gosto das escolhas das imagens e de sua plasticidade.

DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA

É imprescindível que um filme em homenagem a Ruth de Souza exista, de modo que a atriz seja devidamente valorizada e lembrada, não apenas por ser a primeira atriz negra brasileira a chegar ao cinema, ao teatro e à televisão, mas pela trajetória brilhante e de enfrentamento dos preconceitos, começando já nos anos 1930, e servindo como abertura para outras tantas atrizes pretas que viriam. Não gosto das cenas de dramatização (não vejo força nelas) de DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA (2022), de Juliana Vicente, mas acho brilhante a diretora ter deixado na mesa de montagem um monte de entrevistas de famosos para se concentrar apenas nos registros de entrevistas da própria Ruth, inclusive em seus anos de saúde mais debilitada. Gosto também quando o filme mostra cenas de filmes que ela fez, alguns deles mais raros, da época da Vera Cruz. Por vezes, dá vontade de ver aqueles filmes inteiros. Há até bem poucos trechos de trabalhos dela para cinema e televisão, se olharmos para sua filmografia de mais de 80 títulos. Entre os apresentados no doc, estão clássicos e cults como TAMBÉM SOMOS IRMÃOS (1949), SINHÁ MOÇA (1953), O ASSALTO AO TREM PAGADOR (1962) e PUREZA PROIBIDA (1974).

DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS

É difícil sair da sessão deste documentário sobre Dorival Caymmi e não ficar emocionado e ainda mais encantado com o cantor e compositor e seu trabalho único, e que reverbera na obra de artistas tão diferentes quanto Caetano Veloso e Marcelo Camelo. DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS (2019), de Daniela Broitman, tem um formato mais tradicional, com a presença de vários depoimentos, mas já começa com uma filmagem de 1989, do próprio Dorival brincando com sua beleza física e com sua idade, e de como o fato de ele ter uma boa relação com as pessoas acabar repercutindo na própria beleza que vibra de si. Ou algo parecido. Inclusive, há coisas que ele fala que parecem poesia metafísica. Não à toa, há um trecho em que sua filha apresenta um livro de poesia completa de Fernando Pessoa como uma obra fundamental para o pai, que era uma pessoa com muita consciência da grandeza e importância da própria obra, seja num detalhe pertencente a um verso, seja numa nota musical bem pensada. Adorei também as histórias que ele contou de sua vida e o quanto o filme o coloca numa posição de entidade espiritual da música brasileira. E que final bonito, hein. Lágrimas rolaram.

sábado, outubro 12, 2024

GOLPE DE SORTE EM PARIS (Coup de Chance)



Woody Allen foi (é) um dos cineastas mais importantes da história de minha cinefilia. Descobrir seus filmes, vistos primeiramente na televisão, foi uma alegria imensa. Lembro do quanto ri de madrugada sozinho enquanto assistia a SONHOS DE UM SEDUTOR (1972), que não é dirigido por ele, mas é como se fosse, pois a peça original é dele. E depois outros filmes seus também foram descobertos na televisão (acho que até me acostumei com o dublador dele, inclusive): BANANAS (1971), NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA (1977) e MANHATTAN (1979), que passou na Sessão de Gala com a obrigatoriedade por parte do autor de manter a janela original em scope, com o aviso no início da projeção. Não lembro, aliás, de ter presenciado algo parecido. A regra geral era sempre as tevês (na época da tela de tubo) mutilarem as projeções com esse aspecto ou mesmo no menos largo, em 1.85:1. Não enumero mais filmes vistos primeiramente na televisão pois ficaria um tanto monótono, mas poderia destacar mais dois muito especiais que só vi na televisão e nunca mais revi: MEMÓRIAS (1980) e HANNAH E SUAS IRMÃS (1986).

Depois disso, a minha memória mistura os filmes vistos no cinema com obras também vistas em VHS. Meu primeiro Woody Allen no cinema foi CRIMES E PECADOS (1989), ou seja, já estava diante de uma obra mais séria, mais pesada do realizador. E um filme incrível. Senti-me privilegiado. E a cada ano que passava tínhamos uma certeza: haveria um novo Woody Allen para ver no cinema. E era sempre um prazer começar a ver seus filmes com a familiaridade dos créditos iniciais em ordem alfabética, com fonte de cor branca aplicadas em fundo preto e um jazz ao fundo. Poucas vezes ele fugiu a essa regra. Sei que ele usou outro tipo de música na abertura de PONTO FINAL – MATCH POINT (2005) e talvez tenha feito algo parecido em A OUTRA (1988).

A era de ouro do cinema de Woody Allen pode até se concentrar no século XX, mas discordo totalmente que seu cinema tenha se tornando desinteressante nas últimas décadas. Entre suas obras da década de 2010, por exemplo, tenho MAGIA AO LUAR (2014) como um dos mais queridos; além de também podermos testemunhar interpretações gigantes de grandes atrizes em obras como BLUE JASMINE (2013) e RODA GIGANTE (2017). Mesmo os filmes menores têm sua graça. Mas de fato me decepcionei muito com O FESTIVAL DO AMOR (2020), um de seus filmes mais tristes. E triste justamente por ser uma comédia absolutamente sem graça e com homenagens cinematográficas muito óbvias. Há outros problemas e há o fato de ele já ter sido lançado diante da onda de cancelamento que o diretor estava enfrentando, com vários astros de Hollywood participando do apedrejamento em rede do autor. Tanto que até imaginava que seu último trabalho, GOLPE DE SORTE EM PARIS (2023), sequer fosse lançado nos cinemas. Felizmente foi lançado pela O2 Play, garantindo sua exibição em nosso circuito alternativo, e em alguns cinemas de shopping.

Foi um alívio ver seu novo filme sabendo que, se for seu último trabalho para cinema, não será uma despedida triste como teria sido se fosse com O FESTIVAL DO AMOR. Fazendo seu primeiro filme inteiramente numa língua não-inglesa, Allen ganha mais força e frescor, embora esteja revisitando temas caros a sua filmografia, como a infidelidade e o crime, que aqui é tratado de maneira até um pouco leve, longe de ter a carga trágica de CRIMES E PECADOS, PONTO FINAL – MATCH POINT e O SONHO DE CASSANDRA (2009).

A música que ouvimos na trilha é alegre o suficiente para fazer o espectador desacreditar em certo momento do crime que acontece. Lou de Laâge (que já havia me ganhado em 2014 com RESPIRE) está ótima como a jovem mulher que começa a trair o marido milionário com um ex-colega de escola que reaparece em sua vida e diz que sempre a amou. Desencantada com o casamento, ela logo passa a ver na figura do rapaz uma espécie de resposta a seu desencanto com o matrimônio.

Se o texto dado a Niels Schneider (AMORES INFIÉIS, de Mouret) é pobre e raso, Lou de Laâge ganha espaço para brilhar no papel de Fanny, a mulher angustiada pela vida dupla que passa a levar quando inicia um caso extraconjugal. E imagino que Allen coloca muito de sua própria experiência de vida nessas questões de infidelidade na angústia da personagem, embora se perceba que o registro aqui é mais leve.

Melvil Poupaud (GRAÇAS A DEUS, de Ozon), que faz Jean, o marido traído, vai se tornando um personagem cada vez mais interessante, à medida que revela seu real caráter, se transformando num das melhores construções vilanescas dos filmes do realizador. Tanto que ele ganha mais tempo de tela e faz justificar o fato de Allen não ter dado tanta atenção à construção do personagem de Schneider, quase um bobão sempre que fala que está apaixonado por Fanny. Não pelo sentimento em si, mas pelo desinteresse do realizador em dar uma dimensão mais tridimensional ao personagem. Talvez para não sofrermos tanto com seu desaparecimento em determinado momento da narrativa.

Temos aqui outra bela parceria de Allen com o diretor de fotografia Vittorio Storaro, que gosta dos tons de amarelo, laranja e marrom do outono, também presentes no lugar de encontro mais íntimo do casal, o apartamento charmoso com a luz que entra pela janela.

Não sei se Allen tem interesse em fazer outro filme na França, mas na minha opinião a experiência deu muito certo e podia ser repetida. Poderíamos ser presenteados com pelo menos mais uma obra sua. Com quase 90 anos de idade, o realizador deve estar um pouco cansado, mas sabemos o quanto continuar fazendo filmes, a exemplo de Clint Eastwood, o mantinha/mantém mais vivo e mais disposto.

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CASA COMIGO? (Leap Year)

Nem sabia da existência deste filme. Quem me apresentou foi a Giselle, que viu no Amazon Prime e me contou um pouco a respeito. Fiquei interessado pelo tema, pela Amy Adams e por se passar na Irlanda. Além do mais, eu sinto falta de boas comédias românticas, um subgênero que está em baixa já faz um tempo. CASA COMIGO? (2010) tem alguns momentos brilhantes, como aquele perto do final, depois que a personagem de Adams faz uma proposta (confesso que até queria que o filme terminasse ali). Naquele momento eu vi uma força incrível também na direção. Inclusive, fui checar o currículo do realizador e Anand Tucker é o diretor do ótimo HILARY & JACKIE (1998). Pra quem queria saber por onde ele andava, eis um dos títulos. O filme é um sucesso na construção da tensão entre o casal vivido por Adams e Matthew Goode. Ela quer chegar a Dublin para propor casamento ao noivo no dia 29 de fevereiro, de modo que ele não possa recusar (como é tradição no país, neste dia). Mas o o noivo é um bocó (Adam Scott) e o filme tem o mérito de construir muito bem uma ótima química entre a moça dos Estados Unidos que quer chegar a Dublin para materializar seu sonho e o sujeito um tanto ranzinza que a ajuda a chegar lá neste road movie que, além de tudo, encanta com as paisagens irlandesas. CASA COMIGO? também explora bem a tradição da comédia romântica e traz alguns momentos de esquentar o coração.

OS FANTASMAS AINDA SE DIVERTEM – BEETLEJUICE BEETLEJUICE (Beetlejuice Beetlejuice)

Acho que o único filme do Tim Burton que amei mesmo foi ED WOOD (1994). Os outros de que gostei dele, como BATMAN – O RETORNO (1992), A LENDA DO CAVALEIRO SEM CABEÇA (1999) ou PLANETA DOS MACACOS (2001) nem chegam perto. Sua tentativa de resgatar o seu bom momento com uma continuação de um projeto do início da carreira parece até desespero, mas funciona, em muitos aspectos. Gosto do visual da personagem de Monica Bellucci, da inclusão de Jenna Ortega, uma atriz nova que curte estar em projetos do gênero, e ter novamente a dupla principal do primeiro filme, Michael Keaton e Winona Ryder. Confesso que não acho lá muito engraçado o Beetlejuice, mas talvez não tenha nascido para ser engraçado, apenas apresentar um humor estranho e, sendo assim, tudo bem. Em OS FANTASMAS AINDA SE DIVERTEM – BEETLEJUICE BEETLEJUICE (2024), Burton soube juntar os antigos efeitos práticos hoje retrôs e a computação gráfica com um bom resultado visual. E acho curiosos como os personagens masculinos são mostrados de maneira quase sempre pouco confiáveis. Não entendo muito bem os motivos, mas não deixa de ser algo que combina com outros trabalhos mais recentes de Burton que exaltavam as personagens femininas em detrimento dos abusos dos homens, como em ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (2010) e GRANDES OLHOS (2014), dentro ou fora do registro do fantástico.

COMO VENDER A LUA (Fly Me to the Moon)

Eis uma comédia romântica à moda antiga, tanto que parece até anacrônica, inclusive no modo esquemático do roteiro (o gato preto aparecendo como função importante é o melhor exemplo). Mas isso acaba fazendo bem ao tipo de história que se deseja contar, uma que se passa às vésperas da chegada do homem à lua, em 1968/69, com Scarlett Johansson no papel de uma mulher que esconde muitos segredos e que é convidada pelo governo americano a usar sua grande capacidade de convencimento para alavancar o interesse político pela corrida espacial, em momento de queda de popularidade, através de instrumentos de marketing e até dados falsos. O personagem de Channing Tatum no começo parece apenas o par romântico da história de amor, mas defende bem o personagem o suficiente para que ganhe força ao longo do desenvolvimento do enredo. O diretor de COMO VENDER A LUA (2024) é Greg Berlanti, o mesmo de COM AMOR, SIMON (2018), que não se destaca nos aspectos formais de seu trabalho, mas que consegue manter o interesse até o fim nesta agradável sessão da tarde.

sábado, outubro 05, 2024

VIAGEM À IRLANDA



Em outras circunstâncias um texto sobre minha viagem à Irlanda já estaria pronto há dias. Mas é difícil fazer isso quando o cansaço impera e há pilhas de demandas para resolver, ao mesmo tempo que há também o trabalho exaustivo de professor do ensino fundamental. Mas foi esse emprego que possibilitou minha inscrição no intercâmbio para essa viagem dos sonhos. Antes havia a possibilidade de uma viagem para os Estados Unidos de 30 dias através da Fulbright e da Capes em julho passado, mas minha pontuação, dois pontinhos acima, no Toefl, me desclassificou. No entanto, o certificado poderia ser aproveitado quando a prefeitura soltasse o edital da Irlanda, algo esperado. Poderia entrar na vaga de fluência em língua inglesa, pensei.

E quero deixar este espaço para agradecimento a minha noiva, Giselle, que esteve comigo, que acompanhou cada passo do processo e que vibrou até mais do que eu quando saiu o resultado final, com minha classificação. A Giselle me ajudou até com a documentação necessária. Um catatau de coisas exigidas na primeira e depois na segunda etapa, quando da classificação. E eu levei a Giselle pra viajar junto comigo, de certa forma. Conversávamos todos os dias à distância, mesmo com o fuso horário de quatro horas atrapalhando um pouco, e apresentava a ela, muitas vezes ao vivo, os lugares incríveis que conheci.

Então, quando cheguei ao último dia do curso, e a professora Fionnuala Tynan nos deu uma atividade inicial de desenhar como estávamos nos sentindo naquele momento, um sentimento de gratidão e de alegria imensos me envolveu. Então desenhei com uma tesoura e massinha de modelar uma carinha sorridente rodeada por pinguinhos amarelos formando um sol. Foi uma aula muito especial, que assisti com um brilho maior nos olhos e depois fiz questão de agradecer pessoalmente à professora por aquela aula incrível e cheia de afeto. Naqueles três últimos dias no país já havíamos provado do tempo habitual de lá, ou seja, com chuva, às vezes com muito vento. E escrevi embaixo do desenho a frase “Here comes da sun”, fazendo referência à canção dos Beatles. Foi quando caiu a ficha sobre o quanto aquele sol cantado por George Harrison é um presente mais do que bem-vindo para as pessoas que moram naqueles lugares (Reino Unido, Irlanda).

Quando chegamos lá, os professores irlandeses, com frequência, diziam que havíamos trazido o sol. E de fato tivemos a sorte de ganhar mais de uma semana e meia de dias com sol no período que lá passamos – fim de verão, início de outono. Aliás, quero deixar registrada aqui minha gratidão ao povo irlandês, que tão bem nos recebeu. Depois de sermos um pouco recebidos com patadas pelos portugueses durante a passagem por Lisboa, percebemos o quanto é raro termos uma nação que, apesar das diferenças culturais, nos abraça com tanto carinho.

O objetivo principal da viagem era conhecer o sistema educacional da Irlanda, tido como um dos mais bem-sucedidos do mundo, e fazermos comparações e talvez adaptações e trocas, a partir também de visitas às escolas. Era proibido tirar fotos das crianças das escolas, e por isso quase não há fotos nesses espaços, mas as visitas ficarão guardadas com carinho na lembrança. Gostei especialmente de uma escola pequena, a St. Michael’s National School, que juntava dois anos numa só sala, e cuja diretora escolheu três alunos para nos apresentarem às instalações. Nesse momento, tive que ser um dos intérpretes de um dos três grupos, uma tarefa que achei empolgante e divertida.



Éramos 25 selecionados para o intercâmbio, mais dois coordenadores, a Thaís e o Glauber. É natural que dentro dessas 27 pessoas, alguns grupos encontrem mais afinidade entre si. Durante os dias, costumava sair mais com meus roomates, o Leonardo e o Messias, e com as professoras Thaís, Jose, Rochelly (que eu sempre chamava de “Rochelle, Rochelle”, em referência a um episódio clássico de SEINFELD), a Lidiane e a Rosângela. As paradas finais geralmente eram nos pubs da cidade, mas como não bebo, a não ser uma cerveja sem álcool (achei os chopes zero de lá deliciosos), acabava não ficando tanto tempo assim com a turma.

Nas minhas escapulidas noturnas, inclusive, fui ao cinema três vezes (queria ter ido mais, claro), para ver três filmes de terror, NÃO FALE O MAL (a versão nova, em língua inglesa), STRANGE DARLING e A SUBSTÂNCIA. Gostava dessas escapulidas, que também eram uma forma de eu ter contato com a língua inglesa sem intérprete ou legendas, ainda que fosse apenas falando brevemente com os motoristas de Uber, os atendentes do cinema, ou escutando a conversa de pessoas na sala escura. Achei interessante no dia que fui parar numa lojinha de artigos indianos e encontrei um homem migrante que falou para mim dos benefícios do cravo – ele comprava um pacote e dizia o quanto aquilo era bom para a vitalidade, especialmente para a potência do homem. Logo mais, quando chamo o Uber, é este mesmo homem o motorista, e continuamos a conversa sobre alimentos com forte potencial afrodisíaco – lembrei a ele da canela e do gengibre, que meu saudoso amigo Santiago havia me ensinado.



As aulas, em sua maioria, aconteceram no Mary Immaculate College, e eu já estava me acostumando e gostando muito da rotina de acordar, comer aquele Irish breakfast caprichado, com direito a um feijão levemente adocicado (uma delícia), nos encontrarmos no saguão do hotel para ouvirmos a Thaís e depois seguirmos a pé, agasalhados para a universidade. Várias aulas tratavam de educação especial, com bastante atenção para crianças autistas, e tivemos aulas sobre os direitos das crianças, seu desenvolvimento cognitivo, o bem-estar na escola, a tecnologia na educação, a experiência de dois professores brasileiros na Irlanda, o gaélico irlandês (língua original) e a forte influência da Igreja Católica na educação irlandesa. A questão da inclusão causou alguma polêmica, pois na Irlanda, há escolas exclusivas para alunos especiais. Inclusive, conhecemos uma delas.

Como nem só de sala de aula se faz cultura, a programação também incluiu passeios a castelos de Limerick e de outra cidade próxima (acho que me esqueci de dizer que foi em Limerick onde ficamos, e infelizmente não deu tempo de incluir Dublin no passeio, pela distância e pelos horários dos transportes) e a igrejas muito antigas. Uma delas, aliás, a St. Mary’s Cathedral, é o prédio mais antigo de Limerick e tem um curioso registro da época em que as pessoas leprosas, não podendo entrar na igreja, assistiam à missa por um buraquinho. A senhora que nos apresentou à igreja contou do tempo em que o prédio foi fundado, em 1168, do ataque sofrido pelo exército de John Crowell, dos vários vitrais substituídos nos séculos XIX e XX etc. É a catedral mais bela que já vi na vida. Ah, e lá também acontecem espetáculos musicais e sinfonias.

Entre os outros lugares visitados por nós, destaque para os Cliffs of Moher, uma das principais atrações turísticas da Irlanda, e um dos lugares mais belos, com falésias verdes à beira do oceano. Alguns filmes contaram com os Cliffs como locação, como HARRY POTTER E O ENIGMA DO PRÍNCIPE, A PRINCESA PROMETIDA, A FILHA DE RYAN e OS CANHÕES DE NAVARONE. O outro local lindíssimo que conhecemos foi a cidade costeira de Dingle e sua península. É mais um lugar de encher os olhos e é uma cidade que sabe se beneficiar da localização para lucrar com muitas lojinhas de souvenirs. A praia é linda, mas não vemos ninguém tomando banho nela. Até porque, com aquele frio, é complicado mesmo. Ah, e numa sexta-feira, fizemos um passeio de barco adorável numa localidade chamada Killaloe.

Uma experiência que merece um parágrafo à parte é a noite do banquete medieval no Castelo de Bunratty. Estava na programação e era algo bastante aguardado. Antes do jantar, pudemos conhecer um pouco o vilarejo que é mantido para visitação, como uma espécie de museu dos tempos passados, da época medieval, com casinhas com cheiro da fumaça que não vai embora totalmente pelas chaminés. Um local adorável e apesar da leve chuva foi muito bom caminhar por lá. Na hora de sermos recebidos para o jantar, vimos que se tratava também de uma experiência ao mesmo tempo imersiva e teatral, com um grupo de artistas que atuava, cantava, fazia piadas e ainda servia as mesas. Tivemos pão com sal, uma bebida que não reconheci, sopa de carne, costelinha de porco e frango cozido, além de uma sobremesa e café no final. Tudo muito bom em duas horas que passaram voando e provocaram muitas risadas. Inclusive, dois dos nossos colegas foram escolhidos rei e rainha pelo ator vestido em trajes característicos da época, o Tércio e a Marília. Uma excelente noite.



Enfim, foram 15 dias de vivência feliz. E até pude conhecer um pouco de Lisboa, no intervalo para o voo para Dublin. Saí com Janne e Darliane para andar pelo Centro Histórico de Lisboa. Lugar lindo demais. E depois de um excelente almoço, pude experimentar na rua o pastel de nata. As visitas aos pubs são casos à parte, pois cada lugar tem sua cara própria, alguns mais escuros, outros mais familiares, alguns servindo comida, outros apenas bebidas. Também vale destacar o fato de que ficamos numa cidade pequena e que isso contribuiu para que andássemos muito a pé e fôssemos conhecendo aos poucos outros locais, outras lojas. Conheci poucas livrarias, mas comprei numa delas Film Noir, o livro da Taschen que traz a Peggy Cummins (MORTALMENTE PERIGOSA) na capa, e noutra, comprei a edição de outubro da Sight & Sound, com Francis Ford Coppola na capa e que conta com uma entrevista deliciosa de Martin Scorsese, papeando com Edgar Wright sobre o cinema britânico, a partir de uma lista de 50 importantes títulos, feita pelo próprio Scorsese.

Se eu ficar buscando mais lembranças, muitas virão. Deixei algumas fotos no meu Instagram pessoal, em que registrei quase todos os dias. Anotei várias coisas das aulas para aplicar na escola e em seguida elaborar um projeto. E guardarei com muito carinho a companhia dos colegas que lá conheci. Das brincadeiras descontraídas (a história da cama de casal do hotel rendeu bastante), das piadas de tiozão que eu às vezes trazia, da ótima recepção de brasileiros que moram lá, como o Giovanni, a Lívia e a Ketlin, do acompanhamento atencioso da Germânia, da atenção da turma como um todo, que cuidava um do outro. Muita gratidão a todos os envolvidos e muito feliz de ter experienciado, visto, sentido na pele (gosto tanto do vento frio quanto do sol) e provado nesses dias. Tenho certeza que se cada um parar para contar, como eu fiz agora, sua experiência nessa viagem teremos visões complementares, mas todas de contentamento de cada momento passado no país de James Joyce, W.B. Yeats, Oscar Wilde, U2, The Cranberries, Damien Rice, Saoirse Ronan etc.

E, no final, a alegria de ser recebido pela Giselle no aeroporto, com um balão gigante escrito “Eu te amo”, isso não tem preço, minha gente. É muita alegria para um coração só.