domingo, setembro 29, 2024

STRANGE DARLING



Minha viagem para a Irlanda foi maravilhosa. E eu ainda quero parar um pouco para escrever pelo menos um relato resumido do que foram os 15 dias em território de James Joyce, W.B. Yeats e Oscar Wilde. Mas foi lá na Irlanda que eu também, ao fugir um pouco da ida quase diária da turma aos pubs, optei por ir ao cinema sozinho. E, entre as opções disponíveis, me chamou a atenção um filme chamado STRANGE DARLING (2023), dirigido por um nome que desconhecia, JT Mollner, passando numa salinha pequena de um dos maiores multiplexes de Limerick. Aliás, é uma pena que o filme tenha passado numa sala tão pequena e esteja sendo visto por uma audiência pequena, pois certamente seria um sucesso dentro de uma sala grande e com uma audiência grande, que urraria diante de tantas cenas intensas e de plot twists de cair o queixo.

Comprei a nova Sight & Sound nesta minha passagem pela Irlanda e a primeira matéria que li foi “Retro Horror – Why Modern Horror Is Thrall to the Past”, texto de Roger Luckhurst que cita títulos recentes do cinema de horror que parecem olhar com muito interesse para o passado. Casos de LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL, I SAW THE TV GLOW (esse ainda não vi), O TELEFONE PRETO, A PRIMEIRA PROFECIA, a trilogia “X” de Ti West, A VASTIDÃO DA NOITE etc. Isso só pra citar alguns filmes mencionados na matéria.

Este STRANGE DARLING, se não se passa nas décadas passadas, já começa com um aviso de que foi filmado em 35mm. O que achei incomum. Não a filmagem em película em si, mas a informação explícita. É como se o filme quisesse trazer de volta o palpável no mundo digital. E logo vemos, claro, a textura mais característica da película. Inclusive nas cores mais vivas, o vermelho mais intenso, nas cenas em que os capítulos remetem mais à violência, e o azul, nas cenas mais fechadas e intimistas. Aliás, o diretor de fotografia do filme é o ator Giovanni Ribisi!

Antes de mais nada, fui ver STRANGE DARLING sem saber quase nada do filme. E essa é a melhor coisa a se fazer, já que surpresas acontecem. Além do mais, a própria opção da narração por capítulos embaralhados contribui para essas surpresas muito bem- vindas, que facilmente nos remetem a PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA, de Quentin Tarantino, e sua montagem em capítulos. Aliás, ele fez o mesmo em KILL BILL, com muito sucesso. Mas acredito ser mais fácil lembrar de PULP FICTION.

Essa narração por capítulos embaralhados contribui para deixar o espectador no mínimo muito intrigado, além de tenso, já que a primeira imagem que vemos é a de uma mulher ferida e aterrorizada, correndo, muito possivelmente, de seu algoz, muito provavelmente o serial killer mencionado no texto de abertura, que diz que o filme é uma história real de algumas das últimas matanças nessa magnitude de um serial killer americano, que começou uma série de mortes entre os anos de 2018 e 2020.

Gostei muito do quanto o filme é forte na condução de uma trama cuja maior parte do tempo quase não tem diálogos e do suspense e da tensão sempre presentes. Eis uma obra que merece muito a atenção não só dos fãs do cinema de horror, mas dos cinéfilos como um todo. Afinal, estamos vivendo um momento excitante em que o cinema de horror voltou a ser extremamente atraente e empolgante, como gênero em si, mas também como reflexo de nossas ansiedades e da nossa sociedade doente.

O filme deve muito às performances dos dois atores principais: Willa Fitzgerald (A QUEDA DA CASA DE USHER) como “the lady”, e Kyle Gallner (SORRIA) como “the demon”. Além do mais, há participações especiais dos veteranos Barbara Hershey e Ed Begley Jr. Outro ponto positivo está na trilha sonora, não só pela cover muito bacana de “Love Hurts”, do Nazareth, por Z Berg, mas pelas canções originais de Berg, em tons sombrios e com letras cheias de lirismo.

Tentei ao máximo não contar detalhes sobre a trama, pois o filme ainda está inédito no Brasil. E não seria legal tirar esse gostinho dos futuros espectadores. STRANGE DARLING já está no meu top 3 do ano, até o momento. E eu gostaria muito de revê-lo nos cinemas. Espero que alguma distribuidora brasileira o tenha comprado. Se não compraram, estão vacilando feio.

+ TRÊS FILMES

NÃO FALE O MAL (Speak No Evil)

O remake do homônimo dinamarquês de 2022, se não é tão pancada quanto, traz mudanças no enredo que o beneficiam, que o tornam de certa forma até melhor, trazendo um pouco de poesia em meio a tanto mal-estar e violência, especialmente psicológica. A escalação do elenco de NÃO FALE O MAL (2024) ajuda muito, principalmente Mackenzie Davis como a mulher forte do casal convidado a passar uns dias com um casal estranho que conhecem numa viagem à Itália. O sujeito que os convida é muito bem defendido por James McAvoy, que encarna brilhantemente uma pessoa perturbadora. O diretor James Watkins é o mesmo do ótimo e sangrento SEM SAÍDA (2008) e por isso tem experiência em entregar um produto cheio de terror e muita tensão. Ambos os filmes são exemplares do horror mais “real”, sem a necessidade de fantasia ou sobrenatural para nos fazer sentir medo. A poesia, ou melhor, um tipo de poesia mais sensível, menos brutal, está na última imagem. O menino mudo ainda conta com uma cena que entra em sintonia com outros dois filmes recentes e bem distintos, e que me fez pensar no quanto estamos vivendo uma necessidade de explodir e, de preferência, matar aquilo que nos atormenta no fim do processo. (Os filmes recentes a que me refiro são IMACULADA e MAIS PESADO É O CÉU.)

LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL

Até que estou em dia com os filmes de Osgood Perkins, mesmo não tendo me esforçado muito para tal. Este é o quarto longa-metragem do realizador e o que mais está fazendo barulho. Um barulho um tanto exagerado, eu acho, e que tem trazido certos problemas no quesito expectativa. Mas LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL (2024) é um terror plasticamente tão bonito que fica difícil não valorizá-lo. O que me deixou incomodado foi o quanto o filme não foi eficiente em fazer com que as cenas mais chocantes ou aterrorizantes me pegassem. O que eu gosto no filme é o quanto ele subverte o gênero policial de investigação de crime e reveste de um tom de pesadelo, que tem muito a ver com o que uma personagem que acorda de um coma diz que tem a sensação de estar vivendo um longo sonho. Mas é preciso embarcar na proposta ou na viagem para ter uma experiência no mínimo boa. Gosto muito de como a Maika Monroe e o Blair Underwood se completam como agentes do FBI de estilos totalmente diferentes, sendo que ela é uma pessoa que está em constante estado de ansiedade e desconforto. Aliás, eu até queria ser contaminado no filme por esse desconforto da personagem, mas acho que acabei ficando muito confortável com a construção visual, com a beleza das imagens que me ganharam nesse aspecto, mas que acabaram por me afastar do que mais me importaria. No mais, Nicolas Cage está de fato um vilão e tanto. P.S.: O satanismo voltou de vez para o cinema de horror? Este já é no mínimo o quarto filme badalado com esse tema lançado em 2024.

O MAL NÃO EXISTE (Aku Wa Sonzai Shinai)

Este é o quarto filme de Ryûsuke Hamaguchi que vejo e a única coisa que encontro em comum em seus trabalhos, se não me engano, e sem reler meus textos passados, é o gosto por planos longos, em especial com diálogos longos. O MAL NÃO EXISTE (2023) começa com cenas silenciosas, imagens da natureza de uma área rural do Japão, com árvores altas, um rio limpo e um espaço onde os cervos habitam. Esse cenário paradisíaco é ameaçado com a chegada de uma empresa com o plano de construir um retiro no vilarejo, algo que vai mexer com a estrutura do lugar, inclusive com a água. Os habitantes não gostam nada e se revoltam durante reunião de apresentação do projeto. O filme fica mais interessante quando mostra também o ponto de vista daquelas duas pessoas que vieram apresentar o projeto. O filme recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza e o prêmio da crítica (FIPRESCI), além de outros dois prêmios menores no mesmo festival, sendo que um deles é dado a obras com o tema do meio ambiente. Confesso que não está entre os meus favoritos do realizador, mas é, sim, um trabalho de quem, claramente, tem pleno domínio de sua arte. E só por isso já é de dar gosto.

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