Saudade de quando eu escrevia sobre quase todos os filmes que eu via, não importando se o texto ia ficar bom ou ruim. Hoje em dia, o intervalo entre cada postagem está tão grande que eu chego a achar que desaprendi aquilo que eu julgava ter aprendido. Perde-se o ritmo, a coragem, o tempo e a energia. Mesmo os filmes do Oscar, eu dava um jeitinho de arranjar tempo para falar sobre cada um. É uma temporada que eu costumo apreciar, pois é um momento em que até os cinemas de shopping exibem filmes mais adultos. Na opção de escolher entre alguns dos títulos de que mais gostei nesta temporada de premiações, não posso deixar de dar uma atenção maior para a nossa querida Greta Gerwig, que muito me alegrou recentemente com LADY BIRD – A HORA DE VOAR (2017).
Diferente de seu primeiro filme solo, temos em ADORÁVEIS MULHERES (2019) uma escolha de Greta Gerwig por um estilo mais clássico-narrativo, talvez para se adequar melhor a um romance do século XIX, embora uma coisa não tenha exatamente a ver com a outra. Mas é importante dizer que há, dentro desse registro mais clássico, umas pequenas transgressões, brincadeiras com uso de metalinguagem, com a inteligente fusão da personagem Jo (Saoirse Ronan, como sempre ótima) com a escritora do romance, Louisa May Alcott.
ADORÁVEIS MULHERES não é o filme perfeito que gostaríamos, mas há tanta delicadeza e a personagem de Saoirse é tão querida, que se torna fácil amar a obra de Greta, por mais que a personagem de Emma Watson, Meg, não esteja tão bem. Quem também se destaca dentre as quatro irmãs é Florence Pugh, como Amy, a mais impulsiva da família e a principal rival de Jo, inclusive nas questões amorosas – ela ama o garoto que é apaixonado por Jo, Laurie (Timothée Chalamet). Para completar o quarteto de irmãs, temos a mais jovem Beth (Eliza Scanlen), que é responsável por uma das cenas mais emocionantes do filme. Refiro-me ao momento em que ela agradece a um senhor rico pelo piano que ganha de presente (ela tem uma inclinação musical).
As quatro, aliás, tem inclinações artísticas: Jo é escritora, apesar da dificuldade do mercado literário em aceitar escritos de mulheres; Meg pensa em ser atriz; Amy é pintora e Beth é apaixonada por música. Jo é a mais rebelde, mais feminista. Não aceita o fato de que a mulher daquela época (Estados Unidos da época da Guerra Civil), para não ficar pobre teria apenas duas opções: ou casar com alguém com dinheiro ou montar um bordel. Isso quem afirma é a tia March, vivida por Meryl Streep, que é solteira, mas diz que ela é uma exceção por ser rica.
A rebeldia de Jo e a rejeição dela ao garoto rico Laurie, que ela tem apenas como um bom amigo, são os elementos que mais fervilham nas emoções do filme. Há também a presença de outro rapaz, vivido por Louis Garrel, mas seu personagem é pequeno e parece feito apenas para cumprir um papel. Quanto a Meg, ela, por ser o extremo oposto de Jo, aceita casar com um professor pobre e deixa de lado as pretensões de ser atriz para abraçar uma vida de família e filhos.
Uma das características da narrativa de ADORÁVEIS MULHERES de Greta Gerwig, diferente das versões anteriores, de George Cukor (1933), Mervyn LeRoy (1949) e Gillian Armstrong (1994), está na utilização de duas linhas temporais paralelas, numa montagem que apresenta dois momentos das vidas das personagens. Às vezes, inclusive, é possível se confundir se o que estamos vendo faz parte da linha mais do passado ou mais do presente. É uma novidade em relação às outras versões do livro de Alcott.
Gerwig fecha seu filme com brilhantismo, ao brincar com os clichês de comédias românticas e do que se espera do destino das personagens femininas – morrer ou casar, como diz o editor vivido por Tracy Letts – e a rebeldia de Jo e sua vontade de se entregar à carreira de escritora acima de tudo.
ADORÁVEIS MULHERES foi indicado aos Oscar de filme, atriz (Saoirse Ronan), atriz coadjuvante (Florence Pugh), roteiro adaptado, figurino e trilha sonora original.
+ TRÊS FILMES
JOJO RABBIT
O tipo de humor do diretor Taika Waititi parece estranho a princípio, mas é mais pelo fato de se estar tratando de uma história, inicialmente cômica, lidando com o nazismo, tendo Hitler como um ídolo e amigo imaginário de um menino de 10 anos. Pra mim, o filme se torna mais interessante (e até mais palatável) a partir do encontro com a jovem judia que está escondida em sua casa, e que o deixa balanceado na questão de ser um fanático pelo nazismo e de entender a desumanidade da situação. Indicado aos Oscar de filme, atriz coadjuvante (Scarlett Johansson), roteiro adaptado, figurino, desenho de produção e edição. Ano: 2019.
FORD VS. FERRARI (Ford v Ferrari)
James Mangold é aquele diretor que costuma entregar uns trabalhos bons, mas não costuma passar disso. Eu, pelo menos, não costumo me entusiasmar de verdade com nenhum filme dele. Esse é um dos mais caprichados em termos de produção. Há também o interesse que o tema provoca, ligando a entrada da Ford no ramo de corridas de automóvel na época das 24 Horas de Les Man, uma corrida maluca que dura 24 horas (eu nunca me dei conta deste detalhe até então). Boas performances de Matt Damon e Christian Bale e uma presença luxuosa de um cara como Tracy Letts. Esperava mais cenas de desastre de automóveis, mais caos. Indicados aos Oscar de filme, edição, mixagem de som e edição de som. Ano: 2019.
HISTÓRIA DE UM CASAMENTO (Marriage Story)
Bonito e um tanto doloroso filme de Noah Baumbach sobre separação conjugal. Vemos o incômodo processo de fim de uma relação, sem que os dois realmente estivessem com raiva um do outro. Pelo menos, a princípio, é essa a impressão que fica, embora depois vejamos que há um misto de mágoa com amor, carinho e respeito, mas também de necessidade de ser a si mesmo, especialmente na personagem da Scarlett Johansson. As cenas com os advogados se digladiando e tornando tudo ainda pior para os dois são bem incômodas. E falando em advogado, destaque para uma fala da Laura Dern sobre Deus e a mulher. Sensacional. No mais, Adam Driver tem mostrado cada vez mais sua excelência como ator. Indicados aos Oscar de filme, atriz (Scarlett Johansson), ator (Adam Driver), atriz coadjuvante (Laura Dern), roteiro original, trilha sonora original. Ano: 2019.
quinta-feira, janeiro 30, 2020
terça-feira, janeiro 21, 2020
VITALINA VARELA
Há uma frase clássica de Hitchcock em que ele diz: "alguns filmes são pedaços da vida, os meus são pedaços de bolo." Por mais que a afirmação do mestre do suspense seja muito feliz e que, certamente, se aplique à delícia que é ver seus filmes, diria que a grande maioria dos filmes que existem são feitos para trazerem certo prazer e contentamento, sejam eles mais ou menos valiosos. Talvez não seja exatamente o caso de VITALINA VARELA (2019), do cineasta português Pedro Costa. Difícil, duro, sem concessões. Não há espaço para a fé, nem para a esperança .
Envolto em sombras, seus personagens caminham como fantasmas em um mundo escuro e desprovido de alegria. Como se confinados em uma espécie de umbral ou purgatório. Até ouvimos o som de música em algum lugar, mas mesmo isso parece ser apenas um pequeno alento para personagens que nem são mostrados. O próprio padre do lugar, vivido por Ventura, ator-fetiche do cineasta, afirma, em sua igreja abandonada e de cadeiras quebradas, que nós somos formados por sombras.
Em quase todo o filme, desde o início, com um grupo de pessoas aparecendo do breu de um cemitério, depois de enterrar um amigo, até quase perto do final, a luz é muito pouca. E isso é muito desafiador para o espectador desacostumado ou despreparado para o cinema de Costa. Com relação à luz, até poderíamos lembrar também do cinema de Val Lewton, dos anos 1940, como SANGUE DE PANTERA ou A MORTA-VIVA, mas estaríamos falando de um tipo de cinema muito mais próximo do prazer, do entretenimento. Em Val Lewton é possível sorrir de satisfação, algo que passa um pouco longe de VITALINA VARELA.
Há a questão da lentidão também, algo que se assemelha um pouco aos trabalhos de Tsai Ming-Liang e Béla Tarr, mas isso também pode ser percebido em variados filmes arthouse. Portanto, o que incomoda mesmo (no bom sentido) é a falta de luz. A maior parte das cenas se passa à noite, uma noite muito pouco iluminada. E quando é dia, a luz que sai pelas frestas da casa é minúscula.
No entanto, o que Pedro Costa nos apresenta em cada cena, com a câmera na maioria das vezes parada, lembram pinturas renascentistas. Ele transforma a miséria e a tristeza em beleza, com o uso de cores e um tipo de direção de arte singular, como a arquitetura dos casebres, ou o céu ao fundo. Seu fotógrafo é o colaborador habitual Leonardo Simões, com quem trabalhou nos anteriores JUVENTUDE EM MARCHA (2006) e CAVALO DINHEIRO (2014).
Pouco antes do título do filme surgir nos créditos, somos apresentados à protagonista, Vitalina Varela (mesmo nome da atriz), que vem de Cabo Verde para o funeral do ex-marido em Portugal. Ela é recepcionada por algumas poucas mulheres, que a aconselham a voltar para sua terra, que ali não tem nada para ela. Conselho não aceito, ela segue até a casa do ex-marido, já enterrado há poucos dias. Na casa, habitavam alguns amigos, que precisam agora deixar aquele espaço para ela.
Assistir VITALINA VARELA - e os outros filmes de Costa sobre a questão dos migrantes de Cabo Verde - é perceber o quanto somos em geral ignorantes ao que aconteceu e que ainda reverbera na vida desse povo. É preciso saber sobre os conflitos, sobre a situação dessas pessoas, sobre como Portugal lida com essa dívida com uma de suas ex-colônias mais pobres. E há também a questão da língua, que é algo bastante importante na trama, inclusive, como elemento de desvalorização do dialeto falado pelos povos mais pobres de Cabo Verde. Em determinado momento, o padre de mão trêmula diz que o espírito do marido de Vitalina só a ouvirá se ela conversar com ele em português, e não em crioulo. Assim, percebemos que há ali um pensamento de colonizador vindo até mesmo de um cabo-verdiano.
Outras questões importantes surgem, mas a forma do filme é tão impactante que até parece ser mais essencial que o conteúdo. Claro que isso pode ser apenas uma impressão de alguém que tem pouco conhecimento, pouca aproximação com esse país.
+ TRÊS FILMES
AMA-SAN
Creio que se fosse em casa talvez eu desistisse deste filme antes da metade de sua duração. Mas no cinema a gente procura curtir mais, prestar atenção nas pequenas coisas, aproveitar a experiência ao máximo. E o filme lida com as pequenas coisas do cotidiano, algo que já é muito comum na cultura e no cinema japoneses. Aqui temos uma cineasta portuguesa disposta a adentrar os costumes de um grupo de mulheres que mergulham no mar para pescar mariscos e coisas do tipo. Fazem como um ritual, mas também como um trabalho importante para a subsistência de suas famílias e da economia daquele lugar, pelo que entendi. Mas a melhor cena, pra mim, está perto do final, uma cena em que as várias mulheres se encontram em um karaoke bar para conversar, comer, beber e rir bastante. O momento que eu ri com elas. Poética também a cena dos vagalumes. É um filme que cresce mais na memória do que durante a apreciação. Direção: Cláudia Varejão. Ano: 2016.
ANTÓNIO UM DOIS TRÊS
O filme lembra tanto Sang-soo quanto Resnais, mas o que lembra mesmo é o próprio cinema do Mouramateus, pra quem já viu alguns de seus curtas. As festas, as brigas, as conversas, tudo muito gostoso de ver. Acho que tem algo pelo meio que parece travar um pouco a narrativa, mas no geral é uma beleza. Começa e termina bem. Deborah Viegas, a atriz que faz a personagem Débora, é apaixonante. E isso ajuda muito a gente a comprar essa história de amor de universos paralelos. Direção: Leonardo Mouramateus. Ano: 2017.
SAUDADE
A premissa é simples: discursar sobre o significado da palavra saudade em países de língua inglesa, contando com o depoimento de inúmeros artistas das mais diversas áreas. Há passagens lindíssimas e bem poucos momentos que eu não me encantei. Acho que estava in the mood. Direção: Paulo Caldas. Ano: 2017.
Envolto em sombras, seus personagens caminham como fantasmas em um mundo escuro e desprovido de alegria. Como se confinados em uma espécie de umbral ou purgatório. Até ouvimos o som de música em algum lugar, mas mesmo isso parece ser apenas um pequeno alento para personagens que nem são mostrados. O próprio padre do lugar, vivido por Ventura, ator-fetiche do cineasta, afirma, em sua igreja abandonada e de cadeiras quebradas, que nós somos formados por sombras.
Em quase todo o filme, desde o início, com um grupo de pessoas aparecendo do breu de um cemitério, depois de enterrar um amigo, até quase perto do final, a luz é muito pouca. E isso é muito desafiador para o espectador desacostumado ou despreparado para o cinema de Costa. Com relação à luz, até poderíamos lembrar também do cinema de Val Lewton, dos anos 1940, como SANGUE DE PANTERA ou A MORTA-VIVA, mas estaríamos falando de um tipo de cinema muito mais próximo do prazer, do entretenimento. Em Val Lewton é possível sorrir de satisfação, algo que passa um pouco longe de VITALINA VARELA.
Há a questão da lentidão também, algo que se assemelha um pouco aos trabalhos de Tsai Ming-Liang e Béla Tarr, mas isso também pode ser percebido em variados filmes arthouse. Portanto, o que incomoda mesmo (no bom sentido) é a falta de luz. A maior parte das cenas se passa à noite, uma noite muito pouco iluminada. E quando é dia, a luz que sai pelas frestas da casa é minúscula.
No entanto, o que Pedro Costa nos apresenta em cada cena, com a câmera na maioria das vezes parada, lembram pinturas renascentistas. Ele transforma a miséria e a tristeza em beleza, com o uso de cores e um tipo de direção de arte singular, como a arquitetura dos casebres, ou o céu ao fundo. Seu fotógrafo é o colaborador habitual Leonardo Simões, com quem trabalhou nos anteriores JUVENTUDE EM MARCHA (2006) e CAVALO DINHEIRO (2014).
Pouco antes do título do filme surgir nos créditos, somos apresentados à protagonista, Vitalina Varela (mesmo nome da atriz), que vem de Cabo Verde para o funeral do ex-marido em Portugal. Ela é recepcionada por algumas poucas mulheres, que a aconselham a voltar para sua terra, que ali não tem nada para ela. Conselho não aceito, ela segue até a casa do ex-marido, já enterrado há poucos dias. Na casa, habitavam alguns amigos, que precisam agora deixar aquele espaço para ela.
Assistir VITALINA VARELA - e os outros filmes de Costa sobre a questão dos migrantes de Cabo Verde - é perceber o quanto somos em geral ignorantes ao que aconteceu e que ainda reverbera na vida desse povo. É preciso saber sobre os conflitos, sobre a situação dessas pessoas, sobre como Portugal lida com essa dívida com uma de suas ex-colônias mais pobres. E há também a questão da língua, que é algo bastante importante na trama, inclusive, como elemento de desvalorização do dialeto falado pelos povos mais pobres de Cabo Verde. Em determinado momento, o padre de mão trêmula diz que o espírito do marido de Vitalina só a ouvirá se ela conversar com ele em português, e não em crioulo. Assim, percebemos que há ali um pensamento de colonizador vindo até mesmo de um cabo-verdiano.
Outras questões importantes surgem, mas a forma do filme é tão impactante que até parece ser mais essencial que o conteúdo. Claro que isso pode ser apenas uma impressão de alguém que tem pouco conhecimento, pouca aproximação com esse país.
+ TRÊS FILMES
AMA-SAN
Creio que se fosse em casa talvez eu desistisse deste filme antes da metade de sua duração. Mas no cinema a gente procura curtir mais, prestar atenção nas pequenas coisas, aproveitar a experiência ao máximo. E o filme lida com as pequenas coisas do cotidiano, algo que já é muito comum na cultura e no cinema japoneses. Aqui temos uma cineasta portuguesa disposta a adentrar os costumes de um grupo de mulheres que mergulham no mar para pescar mariscos e coisas do tipo. Fazem como um ritual, mas também como um trabalho importante para a subsistência de suas famílias e da economia daquele lugar, pelo que entendi. Mas a melhor cena, pra mim, está perto do final, uma cena em que as várias mulheres se encontram em um karaoke bar para conversar, comer, beber e rir bastante. O momento que eu ri com elas. Poética também a cena dos vagalumes. É um filme que cresce mais na memória do que durante a apreciação. Direção: Cláudia Varejão. Ano: 2016.
ANTÓNIO UM DOIS TRÊS
O filme lembra tanto Sang-soo quanto Resnais, mas o que lembra mesmo é o próprio cinema do Mouramateus, pra quem já viu alguns de seus curtas. As festas, as brigas, as conversas, tudo muito gostoso de ver. Acho que tem algo pelo meio que parece travar um pouco a narrativa, mas no geral é uma beleza. Começa e termina bem. Deborah Viegas, a atriz que faz a personagem Débora, é apaixonante. E isso ajuda muito a gente a comprar essa história de amor de universos paralelos. Direção: Leonardo Mouramateus. Ano: 2017.
SAUDADE
A premissa é simples: discursar sobre o significado da palavra saudade em países de língua inglesa, contando com o depoimento de inúmeros artistas das mais diversas áreas. Há passagens lindíssimas e bem poucos momentos que eu não me encantei. Acho que estava in the mood. Direção: Paulo Caldas. Ano: 2017.
domingo, janeiro 19, 2020
18 CURTAS E DOIS MÉDIAS BRASILEIROS
THINYA
O que mais me impressiona neste filme é o quanto ele é capaz de causar medo lá perto do final, simplesmente usando fotos de gente normal, uma música ao fundo e a narração de uma indígena. Todo o filme são fotos e narração de uma índia. Ao final, se diz de onde é que aquilo é tirado, mas ao longo de todo o filme fica o desconforto sobre as pessoas apresentadas e a narração. Mas isso é positivo e o filme é uma experiência única. Principalmente em seus minutos finais. Acredito que a nossa consciência do quanto o homem branco foi capaz de matar/roubar/estuprar para obter o que obteve faz toda a diferença. Quem são os selvagens? Direção: Lia Letícia. Ano: 2019.
TEORIA SOBRE UM PLANETA ESTRANHO
Que filme lindo! Já me ganhou com a primeira cena, com o casal de protagonistas saindo entusiasmados para tomar banho de chuva em lugar paradisíaco do interior mineiro. Acontece algo abrupto e depois somos levados para o que parece ser o passado recente, imagens que parecem saídas de um filme do Malick, inclusive com um bocado de experimentação no uso das câmeras, das imagens, mais uma vez valorizando a beleza da natureza, mas também a beleza do rosto e dos sorrisos dos namorados/noivos. O detalhe da deficiência auditiva da personagem feminina é outro acerto e joga poesia também em algumas cenas, brincando com o áudio, o ir e vir. Considero um dos trabalhos de curta-metragem mais bonitos dos últimos anos. Direção: Marco Antônio Pereira. Ano: 2019.
JODERISMO
Continuação de MAMATA (2017), filme anterior de Marcus Curvelo, este aqui consegue ser mais perturbador ainda, já que retrata este momento de desesperança que estamos vivendo, passando agora do primeiro ano de um governo de extrema direita. Claro que o retrato que é pintado no Brasil é ainda mais doentio, mas é também um reflexo do estado emocional do protagonista, solitário e sentindo-se abandonado pela namorada, fugindo para uma deserta Brasília, pois é onde os imóveis são mais baratos e porque todos os seus amigos se suicidaram. Há uma dramaticidade intensa, mas há também um senso de humor muito próprio. Muito engraçada a cena em que o protagonista liga para os pais. E o que é a cena da música do Lula, hein?! Ano: 2019.
AINDA ONTEM
Retrato bonito de uma juventude que procura encontrar seu rumo em uma cidade/país que não oferece muitas opções para pessoas menos favorecidas da sociedade. É um filme que se destaca pelo carinho com que os personagens são tratados, mesmo que tenhamos apenas 20 minutos para conhecê-los. Especialmente o protagonista. O namoro com o mundo do hip-hop se mostra como uma maneira de abraçar o sentimento de deslocamento desses jovens frente à parcela rica dos curitibanos, algo que se explicita na cena da festa. Direção: Jessica Candal. Ano: 2019.
FARTURA
Um estudo sobre a importância da comida nas festas em famílias negras, em especial em famílias que adotam religiões de matriz africana. O que mais me chamou a atenção foi a questão foi a minha maneira de me comportar geralmente em festas e de como me sinto desconfortável na grande maioria delas. Mas esse é um problema meu. Nos aspectos estéticos, a escolha por apresentar apenas fotos e imagens de arquivo (a maioria de VHS) foi acertada, assim como os depoimentos em voice-over. Também gostei de ver a questão da família oferecendo comida para todos, de portas abertas, algo muito mais comum de ver em famílias pobres. Nas famílias ricas, come-se de portas fechadas. E a comida não falta. Direção: Yasmin Thayná. Ano: 2019.
GUARÁ
Um filme de lobisomem em que em vez de um lobo temos um guará e a ação acontecendo dentro do espaço de Goiânia. O espaço geográfico faz toda a diferença, tanto no sentido visual quanto nas falas dos personagens, algumas delas se demorando bastante, como a cena dos dois policiais dentro da viatura. O visual do monstro é interessante. Como é claramente uma produção de baixo orçamento, as escolhas estéticas para representar as mortes são muito felizes, como a cena em que vemos o sangue descendo em cima do distintivo de um soldado. O último plano-sequência também é muito bom. Ao final, um simbolismo que traz ao filme uma carga política que havia sido esquecida logo no início, quando vemos informações sobre a quantidade imensa de estupros cometidos no Brasil. Direção: Fabrício Cordeiro e Luciano Evangelista. Ano: 2019.
TUDO QUE É APERTADO RASGA
A questão do papel do negro na sociedade brasileira e nas artes ainda vai durar muito tempo para se esgotar. Se é que um dia vai. Inclusive, com um governo retrógrado desses. Este curta traz imagens de filmes brasileiros protagonizados por negros e dá especial destaque, em entrevistas de arquivo, para dois grandes da dramaturgia, Grande Otelo e Zezé Motta. Há também Ruth de Souza, mas aparece bem menos. A estrutura do filme parece prometer algo maior, mas as imagens e as palavras daquelas pessoas são tão fortes que já são suficientes para que vejamos este filme. Direção: Fabio Rodrigues Filho. Ano: 2019.
ESPECIAL DE NATAL - PORTA DOS FUNDOS: A PRIMEIRA TENTAÇÃO DE CRISTO
Assisti em duas partes este filminho cujo única qualidade é usar sua liberdade para transgredir, brincar. Pena que o pessoal do Porta dos Fundos não consegue fazer algo bom fora do território das esquetes, que é de onde eles têm obtido mais sucesso, ainda que de maneira irregular. De todo modo, o sucesso deste aqui é de popularidade (ou de falta de) devido ao modo como brinca com os personagens do Novo Testamento. O roteiro é preguiçoso e não há timing. Talvez a piada que melhor funcione seja a de Deus se aproximando de Maria. Ainda assim, nada que faça rir. Direção: Rodrigo Van Der Put. Ano: 2019.
O BANDO SAGRADO
Outro trabalho corajoso de Breno Baptista. Já tinha visto MONSTRO (2015), que também trata das relações homoafetivas e do impulso intenso do desejo, e também utilizando imagens de impacto. Aqui há cenas de felação e outras situações de intimidade entre dois homens, o que é interessante para que esse tipo de cena se naturalize. Por mais que seja um trabalho que seja visto por um número pequeno de espectadores, ser um filme LGBT e ser o nome de Baptista cada vez mais forte nos festivais ajuda a aumentar esse número. Aqui há o interessante paralelo entre um sonho relativo a um grupo de guerreiros homossexuais do passado e o desejo e o encontro de Breno com um rapaz. Ano: 2019.
REVOADA
Outro filme LGBT de cujo realizador eu já havia visto um filme em 2015 (De Terça pra Quarta). Este tem um lirismo muito bonito, com uma narração em voice-over do protagonista lembrando de tanajuras na infância, ao mesmo tempo em que passeia por Fortaleza com o seu paquera. A geografia é explorada, assim como as conversas simples e as entrelinhas que eventualmente ficam entre os diálogos dos dois. O preconceito dos transeuntes não passa batido, mas isso não parece perturbar muito os personagens, que seguem cuidando daquilo que lhes interessa mais. E seguem felizes. Direção: Victor Costa Lopes. Ano: 2019.
ONDE A NOITE NÃO ADORMECE
Certos filmes são importantes serem vistos principalmente para entendermos nossa ignorância em se tratando de alguns assuntos. No caso, a minha ignorância quando o assunto é religiões afrobrasileiras. Neste curta temos a presença de três personagens que passam a noite executando rituais e/ou oferendas a entidades do candomblé, creio eu. Falta em mim a capacidade de perceber a beleza nessa cultura, principalmente pela minha formação religiosa. Aí acabo vendo com algum distanciamento e às vezes até com certo desconforto. Mas antes essa sensação era muito mais acentuada. Direção: Paolla Martins e Rodrigo Ferreira. Ano: 2018.
NEGRUM3
Um filme que tem força tanto estética quanto como um lugar de fala dos negros, em especial dos negros LGBT, de sua reivindicação por direitos iguais, pelo respeito aos seus corpos. Quanto à parte técnica, chegam a impressionar os enquadramentos, os movimentos de câmera, a direção de arte, as cores, a valorização da melanina diante das cores escolhidas. Direção: Diego Paulino. Ano: 2018.
CAETANA
Bela realização paraibana sobre a morte não dita, mas percebida, de alguém, e a reunião de pessoas em torno de seu velório. Flagra as conversas paralelas das pessoas na casa, sempre tentando evitar a fala sobre o morto ou a morta, mas o sentimento/a sensação fica ali no ar. Uma maneira de trazer, ao mesmo tempo, um sentimento de respeito e de mostrar que a vida continua. Pequenos detalhes são importantes, como o uso dos celulares (ou a hora em que eles são impróprios), a brincadeira no ônibus etc. Direção: Caio Bernardo. Ano: 2019.
CARNE
Acho incrível como ideias aparentemente simples podem render obras tão maravilhosas. É o caso deste Carne, curta de animação realizado em São Paulo, sobre o corpo da mulher. Em sua maioria, o corpo que sofre algum tipo de preconceito ou rejeição. Seja o corpo da mulher gorda, ou da transexual negra, ou da mulher idosa (a exceção talvez seja da moça que acabou de menstruar). E tudo contado apenas com os áudios dessas mulheres e diferentes tipos de animação (lindas) passando pela tela para ajudar a contar essas histórias, esses depoimentos. Adorei! Direção: Camila Kater. Ano: 2019.
APNEIA
A animação brasileira chegou a um estágio em que não fica nada a dever a nenhum outro país. Pena que pouca gente entre em contato, já que as melhores produções ainda são no formato de curta-metragem, em geral acessado principalmente pelos frequentadores dos festivais. E são animações adultas. Apneia, produzido no Paraná, segue uma pegada existencial e por um caminho de se perder no próprio ser. A protagonista é uma menina que nasceu sob o signo de peixes e o filme é lotado de água (o mar é onipresente) e dos elementos próximos (a casa dela fica ao redor de um aquário). Muita coisa achei confusa, mas acho coerente com uma proposta pisciana de se perder no oceano de sentimentos. Aqui há literalmente alguém se perdendo, sentindo-se confusa, mas talvez também se sentindo um tanto especial. "Mãe, quem é de Peixes veio mesmo do mar?". Direção: Carol Sakura e Walkir Fernandes. Ano: 2019.
DEUSA OLÍMPICA
Belo documentário que tenta resgatar a vida e a obra de uma artista plástica trans que tinha uma atração muito forte pela Igreja, pelos seus simbolismos, seus sacramentos e sua história. O filme já começa com imagens de pinturas em uma igreja, depois temos os diretores entrevistam a mãe da artista, assim como padres. Há uma curiosa entrevista que a artista deu no programa do Lúcio Brasileiro. O que fica é a impressão de que, mesmo nos dias de hoje, ela ainda seria maltrada como foi até sua morte, em 1998. Direção: Emília Schramm, Jéssika SOuza, Pedro Luis Viana e Rafael Brasileiro. Ano: 2018.
SETE ANOS EM MAIO
Quem se apaixonou por ARÁBIA (2017) e pelo ator de si mesmo Rafael dos Santos certamente vai ficar feliz em ver este SETE ANOS EM MAIO. Feliz talvez não seja a palavra certa, já que o filme se mostra basicamente como um monólogo de Rafael, contando do quanto sofreu depois de ter sido torturado por policiais e ter fugido para não morrer. A história é sofrida e talvez algo no meio do processo tenha sido mudado pela direção de Affonso Uchôa ou pelo próprio Rafael, mas a essência está ali, toda sua dor, sua raiva, sua tristeza. E o desejo de se vingar dos donos do poder, como no final de Arábia. Ano: 2019. (foto)
A MULHER QUE SOU
Belo filme sobre recomeços. Muito envolvente, com personagens que encantam no ato. Tanto a mãe e a filha quanto o vendedor, vivido por Renato Novaes, conhecido de quem acompanha os filmes de Contagem-MG. A cena das carícias dos personagens é bem criativa, tem um trabalho de experimentação que combina tanto com o jazz que ouvimos quanto com a cor de suas peles. Dá uma sensação de que poderia render mais, que fica algo no ar, mas isso acaba sendo positivo também. Sinal de que é um filme gostoso de ver. Direção: Nathália Tereza. Ano: 2019.
OCEANO
Adorei a simplicidade e a maestria narrativa deste curta. Às vezes não precisa inventar muita coisa para fazer uma bela obra. E as duas diretoras sabem o que fazem com a câmera em mãos e uma sensibilidade muito aguçada para transformar a ideia em imagens e sons. Temos a história de uma moça que pega um ônibus na rodoviária de Fortaleza para uma cidade do interior e acaba tendo que arranjar outros meios para chegar a seu destino. Lindo tudo: a representação do lugar longe de tudo, os personagens, e especialmente o final. Direção: Amanda Pontes e Michelline Helena. Ano: 2019.
SANGRO
Bela animação que narra a dor de quem se descobre soropositivo. Apesar de haver medicações que fazem com que o vírus não seja mais uma ameaça de morte, ainda há a questão do preconceito, que segue forte, até porque há um silenciamento entre as pessoas. Aqui temos um depoimento real, mas a animação, o modo como são dispostas as imagens, como num oceano de emoções, fazem toda a diferença. Uma belezura. Direção: Tiago Minamisawa, Bruno H Castro e Guto BR. Ano: 2019.
sexta-feira, janeiro 10, 2020
RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (Portrait de la Jeune Fille en Feu)
A relação que temos com alguns filmes é semelhante ao tempo de uma história de amor vivida: queremos que o filme fique um pouco mais com a gente, que aqueles sentimentos experienciados durante a sessão permaneçam não só na memória afetiva, mas também em nosso próprio corpo.
RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (2019), de Céline Sciamma, narra de maneira lenta e gradual a história de amor de duas jovens mulheres. Uma delas, Marianne (Noémie Merlant), é a pintora e chega a uma ilha afastada para pintar o retrato de uma mulher que está prometida a um homem italiano. A mulher, a que dá título ao filme, é Héloïse (Adèle Haenel), e, a princípio, o sentimento que mais passa no olhar e nos gestos dessa jovem é de raiva. Casar com um homem que sequer viu na vida não lhe parece algo muito agradável.
A missão de Marianne é acompanhar Héloïse em caminhadas e, a partir do olhar, ir formando a memória do rosto e do corpo de seu objeto de estudo. O olhar de Marianne, porém, acaba se confundindo com um olhar de desejo. Como o filme não deixa claro os pensamentos de cada uma (a voice-over é usada apenas para introduzir e encerrar a história), muito do que captamos estão nos gestos. E é curioso como esses gestos são verbalizados pelas duas protagonistas em determinada cena, quando elas já se conhecem um pouco.
Essa verbalização também é um ponto crucial para a criação de uma das cenas mais lindas do filme: aquela em que as duas falam da memória de sua história de amor vivida. Compartilhar essas experiências vividas é um privilégio que poucos casais têm. E eis o motivo de tal cena, tão impregnada de melancolia, ser também um momento de alegria.
Um detalhe importante neste trabalho de Céline Sciamma é que praticamente não há homens na narrativa. Mesmo o sujeito que engravida a empregada não aparece. Aquele espaço é das mulheres, e por isso há tantas cenas em que elas compartilham tanto a alegria (jogando cartas, ouvindo um coral ao redor de uma fogueira etc) quanto a dor, como na cena do aborto. Aliás, a tal cena foi construída de tal maneira que a dor sentida fosse muito além da dor física. A diretora de fotografia, Claire Maton, que contribui muito para a criação de texturas belíssimas, semelhantes a pinturas, é a mesma de UM ESTRANHO NO LAGO e ATLANTIQUE, para citar dois filmes consagrados pela crítica.
Quanto ao envolvimento afetivo das duas mulheres, cada plano é de fundamental importância, por mais que as duas, lá no final, digam que perderam tempo, ao se demorarem na aproximação. Essa verbalização serve mais para deixar claro o sentimento mencionado no primeiro parágrafo: o de querer permanecer mais tempo ao lado da pessoa amada.
Como um filme escrito e dirigido por uma mulher e também como um exemplar deste momento de conscientização mais clara de que o papel da mulher na história da sociedade foi apagado ou sabotado pelos homens, RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS é uma das obras mais importantes do cinema recente, conseguindo ser tanto uma história de amor impossível (e por isso tão bela quanto as mais belas tragédias clássicas) quanto um gesto político.
+ TRÊS FILMES
ADAM
Um filme que cresce muito mais quando se apresenta como um filme sobre a maternidade do que quando passa boa parte de sua metragem tratando da amizade entre as duas mulheres. Não que não funcione, mas ADAM cresce muito quando passa a tratar do drama pós-gravidez da mulher que chega sem ter onde ficar em uma região muito tradicional do Marrocos. Há o peso de ela estar carregando um "filho sem pai", algo que pesa naquele lugar, naquela época. Não sei o quanto o filme vai cativar as plateias de hoje, principalmente as dos países ocidentais, que vivem uma nova realidade. No mais, eu não lembro de nenhum outro filme que tenha mostrado de maneira tão focada as primeiras horas/dias após o parto. Por isso foi tão importante ter sido dirigido e roteirizado por uma mulher. Direção: Maryam Touzani. Ano: 2019.
AS GOLPISTAS (Hustlers)
Difícil entender o hype que esse filme vem provocando, a não ser por uma campanha de marketing forte e também pela questão da sororidade, e o filme quase mostrar isso de forma comovente. É como se houvesse dois filmes em um: aquele em que temos mulheres golpistas e impiedosas prontas para tirar até o último centavo dos homens; e o que as apresenta como uma espécie de família e procura mostrar o aspecto mais frágil das personagens. Falha principalmente no segundo aspecto. E há também a intenção de vender o filme como uma dessas fitas com times de criminosos com tipos característicos diferentes. Acontece que, além de Constance Wu e Jennifer Lopez, apenas a loirinha que vomita ganha alguma visibilidade. Mesmo com esses poréns, é um filme bem conduzido e gostoso de ver. Direção: Lorene Scafaria. Ano: 2019.
PAPICHA
Custei um pouco a me envolver com o drama das personagens (talvez por causa do envolvimento com moda, não sei), mas sei sim que é um filme importante dentro deste momento em que o mundo parece estar cada vez mais tentando voltar à Idade Média. O que eu não me conformava, vendo o filme, era com o fato de a protagonista não querer sair daquele país, mesmo presenciando mortes e barbaridades cada vez mais intensas. O filme é bom em provocar um desconforto com alguns ângulos de câmera fora do comum. Direção: Mounia Meddour. Ano: 2019.
RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (2019), de Céline Sciamma, narra de maneira lenta e gradual a história de amor de duas jovens mulheres. Uma delas, Marianne (Noémie Merlant), é a pintora e chega a uma ilha afastada para pintar o retrato de uma mulher que está prometida a um homem italiano. A mulher, a que dá título ao filme, é Héloïse (Adèle Haenel), e, a princípio, o sentimento que mais passa no olhar e nos gestos dessa jovem é de raiva. Casar com um homem que sequer viu na vida não lhe parece algo muito agradável.
A missão de Marianne é acompanhar Héloïse em caminhadas e, a partir do olhar, ir formando a memória do rosto e do corpo de seu objeto de estudo. O olhar de Marianne, porém, acaba se confundindo com um olhar de desejo. Como o filme não deixa claro os pensamentos de cada uma (a voice-over é usada apenas para introduzir e encerrar a história), muito do que captamos estão nos gestos. E é curioso como esses gestos são verbalizados pelas duas protagonistas em determinada cena, quando elas já se conhecem um pouco.
Essa verbalização também é um ponto crucial para a criação de uma das cenas mais lindas do filme: aquela em que as duas falam da memória de sua história de amor vivida. Compartilhar essas experiências vividas é um privilégio que poucos casais têm. E eis o motivo de tal cena, tão impregnada de melancolia, ser também um momento de alegria.
Um detalhe importante neste trabalho de Céline Sciamma é que praticamente não há homens na narrativa. Mesmo o sujeito que engravida a empregada não aparece. Aquele espaço é das mulheres, e por isso há tantas cenas em que elas compartilham tanto a alegria (jogando cartas, ouvindo um coral ao redor de uma fogueira etc) quanto a dor, como na cena do aborto. Aliás, a tal cena foi construída de tal maneira que a dor sentida fosse muito além da dor física. A diretora de fotografia, Claire Maton, que contribui muito para a criação de texturas belíssimas, semelhantes a pinturas, é a mesma de UM ESTRANHO NO LAGO e ATLANTIQUE, para citar dois filmes consagrados pela crítica.
Quanto ao envolvimento afetivo das duas mulheres, cada plano é de fundamental importância, por mais que as duas, lá no final, digam que perderam tempo, ao se demorarem na aproximação. Essa verbalização serve mais para deixar claro o sentimento mencionado no primeiro parágrafo: o de querer permanecer mais tempo ao lado da pessoa amada.
Como um filme escrito e dirigido por uma mulher e também como um exemplar deste momento de conscientização mais clara de que o papel da mulher na história da sociedade foi apagado ou sabotado pelos homens, RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS é uma das obras mais importantes do cinema recente, conseguindo ser tanto uma história de amor impossível (e por isso tão bela quanto as mais belas tragédias clássicas) quanto um gesto político.
+ TRÊS FILMES
ADAM
Um filme que cresce muito mais quando se apresenta como um filme sobre a maternidade do que quando passa boa parte de sua metragem tratando da amizade entre as duas mulheres. Não que não funcione, mas ADAM cresce muito quando passa a tratar do drama pós-gravidez da mulher que chega sem ter onde ficar em uma região muito tradicional do Marrocos. Há o peso de ela estar carregando um "filho sem pai", algo que pesa naquele lugar, naquela época. Não sei o quanto o filme vai cativar as plateias de hoje, principalmente as dos países ocidentais, que vivem uma nova realidade. No mais, eu não lembro de nenhum outro filme que tenha mostrado de maneira tão focada as primeiras horas/dias após o parto. Por isso foi tão importante ter sido dirigido e roteirizado por uma mulher. Direção: Maryam Touzani. Ano: 2019.
AS GOLPISTAS (Hustlers)
Difícil entender o hype que esse filme vem provocando, a não ser por uma campanha de marketing forte e também pela questão da sororidade, e o filme quase mostrar isso de forma comovente. É como se houvesse dois filmes em um: aquele em que temos mulheres golpistas e impiedosas prontas para tirar até o último centavo dos homens; e o que as apresenta como uma espécie de família e procura mostrar o aspecto mais frágil das personagens. Falha principalmente no segundo aspecto. E há também a intenção de vender o filme como uma dessas fitas com times de criminosos com tipos característicos diferentes. Acontece que, além de Constance Wu e Jennifer Lopez, apenas a loirinha que vomita ganha alguma visibilidade. Mesmo com esses poréns, é um filme bem conduzido e gostoso de ver. Direção: Lorene Scafaria. Ano: 2019.
PAPICHA
Custei um pouco a me envolver com o drama das personagens (talvez por causa do envolvimento com moda, não sei), mas sei sim que é um filme importante dentro deste momento em que o mundo parece estar cada vez mais tentando voltar à Idade Média. O que eu não me conformava, vendo o filme, era com o fato de a protagonista não querer sair daquele país, mesmo presenciando mortes e barbaridades cada vez mais intensas. O filme é bom em provocar um desconforto com alguns ângulos de câmera fora do comum. Direção: Mounia Meddour. Ano: 2019.
segunda-feira, janeiro 06, 2020
GLOBO DE OURO 2020
Diria que este ano foi melhor por causa da apresentação muito pessoal de Charlize Theron, que contou de quantas vezes assistiu ao VHS de SPLASH - UMA SEREIA EM MINHA VIDA (1984), o primeiro grande sucesso de Tom Hanks. Ela dizia que, ali na África do Sul, ela sonhava ser a sereia que seria salva por aquele rapaz comum, mas adorável. Algo do tipo. Também contou da vez em que fez uma audição e quem a entrevistou foi justamente Tom Hanks, que lhe deu a chance de estar no elenco de THE WONDERS - O SONHO NÃO ACABOU (1996). E aí tivemos o belo e emocionado discurso de Hanks, que ainda deu uma aula para aquelas pessoas todas, agora que é um ator veterano. Interessante como esta premiação do Globo de Ouro foi marcada pelo respeito que os mais jovens têm pelos mais velhos.
Porém, mais uma vez, não foi uma festa exatamente memorável. O tom já foi dado no começo, quando Rick Gervais, o apresentador, demonstrou um bocado de desdém em seu discurso: "puxa, ainda é o primeiro prêmio?", como que para dizer que a noite chata mal estava começando. Na verdade, não consigo achar chato, já que já faz um tempo que assisto a essas premiações trocando ideias com os amigos nas redes sociais. E os prêmios são entregues de maneira tão rápida que mal dá tempo de aproveitar a glória de tal premiação.
O maior vencedor da noite foi ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD, que ganhou três prêmios: melhor filme (comédia), melhor ator coadjuvante para Brad Pitt e melhor roteiro para o próprio Quentin Tarantino. Aliás, chamar a linda (acho que não havia mulher mais linda na festa) Margot Robbie para entregar o prêmio de roteiro já era uma deixa. Por mais que Tarantino, nesse filme em especial, se destaque mais na direção do que no roteiro, muitos ligam o seu cinema como cinema de roteiro, por causa dos diálogos singulares e tal.
Em seguida, 1917, de Sam Mendes venceu os prêmios de melhor filme (drama) e melhor direção. Outros que também faturou dois prêmios importantes foi CORINGA, que ganhou melhor ator para Joaquin Phoenix e melhor trilha sonora para a islandesa Hildur Guðnadóttir. Ela já havia subido ao palco no ano passado, no Emmy, pela trilha de CHERNOBYL.
Falando em CHERNOBYL, esta minissérie fantástica da HBO foi uma das vencedoras da noite, ganhando os prêmios de melhor minissérie e melhor ator coadjuvante para Stellan Skarsgård. Outras produções para a TV que ganharam dois prêmios foram FLEABAG (melhor série - comédia e melhor atriz para a criadora Phoebe Waller-Bridge) e SUCCESSION (melhor série - drama e melhor ator para Brian Cox).
As premiações de TV funcionam como belas dicas de séries e minisséries que merecem a nossa atenção, mas que, infelizmente, acabam não recebendo por falta de tempo e pela necessidade (no meu caso) de priorizar os filmes. Mas há sempre algumas séries/minisséries que me conquistam graças ao empurrãozinho da premiação. Neste ano, eu fiquei muito interessado em FOSSE/VERDON (prêmio de melhor atriz para Michelle Williams), THE ACT (prêmio de atriz coadjuvante para Patricia Arquette) e INACREDITÁVEL, que não ganhou nenhum prêmio, mas traz no elenco Kaitlyn Dever e Toni Collette, para citar as mais conhecidas.
No mais, a noite também ficou marcada pela esnobada que deram na Netflix. Das 34 indicações, o serviço de streaming só ganhou duas. Para quem entrou na festa achando que os prêmios para O IRLANDÊS eram garantidos, perdeu feio. Vamos ver como eles se sairão no Oscar agora.
Prêmios da noite
Cinema
Melhor Filme (Drama): 1917
Melhor Filme (Comédia/Musical): ERA UMA VEZ EM...HOLLYWOOD
Melhor Direção: Sam Mendes (1917)
Melhor Ator (Drama): Joaquin Phoenix (CORINGA)
Melhor Ator (Comédia/Musical): Taron Egerton (ROCKETMAN)
Melhor Atriz (Drama): Renée Zellweger (JUDY)
Melhor Atriz (Comédia/Musical): Awkwafina (THE FAREWELL)
Melhor Ator Coadjuvante: Brad Pitt (ERA UMA VEZ EM...HOLLYWOOD)
Melhor Atriz Coadjuvante: Laura Dern (HISTÓRIA DE UM CASAMENTO)
Melhor Roteiro: ERA UMA VEZ EM...HOLLYWOOD
Melhor Trilha Sonora: CORINGA
Melhor Canção Original: "I'm Gonna Love Me Again" (ROCKETMAN)
Melhor Animação: LINK PERDIDO
Melhor Filme Estrangeiro: PARASITA (Coreia do Sul)
Televisão
Melhor Série (Drama): SUCCESSION
Melhor Série (Comédia/Musical): FLEABAG
Melhor Minissérie ou Telefilme: CHERNOBYL
Melhor Ator de Série (Drama): Brian Cox (SUCCESSION)
Melhor Ator de Série (Comédia): Ramy Youssef (RAMY)
Melhor Ator em Minissérie ou Telefilme: Russell Crowe (THE LOUDEST VOICE)
Melhor Atriz de Série (Drama): Olivia Colman (THE CROWN)
Melhor Atriz de Série (Comédia): Phoebe Waller-Bridge (FLEABAG)
Melhor Atriz em Minissérie ou Telefilme: Michelle Williams (FOSSE/VERDON)
Melhor Ator Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme: Stellan Skarsgård (CHERNOBYL)
Melhor Atriz Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme: Patricia Arquette (THE ACT)
domingo, janeiro 05, 2020
O CASO RICHARD JEWELL (Richard Jewell)
Em tempos de fake news e de maquinações de autoridades governamentais, é interessante perceber que justamente um cineasta republicano e de linha mais conservadora exponha de maneira tão intensa uma injustiça cometida a um cidadão comum dos Estados Unidos. Este cineasta é Clint Eastwood, que vem se especializando nos últimos anos a contar histórias reais de pessoas comuns que se tornaram heróis (ou anti-heróis).
Tem sido um prazer acompanhar os filmes recentes de Eastwood, ainda que, por muitos, sejam vistos como inferiores aos das décadas anteriores. Os cinco últimos trabalhos do diretor trataram de pessoas comuns que agiram como heróis (ou quase isso). Foi assim com SNIPER AMERICANO (2014), com SULLY - O HERÓI DO RIO HUDSON (2016), com 15H17: TREM PARA PARIS (2018), com A MULA (2018), e agora com este O CASO RICHARD JEWELL (2019).
E esse tema do heroísmo já é recorrente na filmografia de Clint há um bom tempo. Este mais recente filme é um de seus trabalhos mais felizes, no quanto é capaz de envolver, e no quanto é capaz de nos deixar indignados com a história de um segurança que salva dezenas de vidas em um atentado terrorista durante as Olimpíadas de Atlanta, em 1996, é tido como herói pela imprensa, mas que depois tem sua vida virada de cabeça pra baixo.
A relação de Richard Dewell (o desconhecido e excelente Paul Walter Hauser) com a mãe, vivida por Kathy Bates, é comovente, assim como a amizade dele com o advogado, interpretado por um inspirado Sam Rockwell. Pode ser um pouco problemática a personagem de Olivia Wilde, a jornalista em busca de furos, custe o que custar, mas mesmo assim o filme, à sua maneira, procura trazer uma espécie de redenção para a personagem. Há também outro personagem que procura caminhos mais curtos para ganhar boa reputação no trabalho, que é o do agente do FBI vivido por Jon Hamm. Não são exatamente vilões, mas funcionam como algo próximo disso dentro da trama que mudará a imagem de Richard Jewell aos olhos da sociedade.
Assim como o piloto Sully do filme de 2016, Jewell é alvo de desconfiança e precisa provar sua inocência. Antes, vale destacar que Jewell representa bem o loser americano conservador e apreciador de armas e caça e que tem um respeito enorme por figuras de autoridade. Ele já foi da polícia e, em 1996, quando ocorre o ataque terrorista em uma festa em Atlanta, ele trabalha como segurança particular. Vale destacar o aspecto rotundo de Jewell. Seu corpo é alvo de chacota, desde muito cedo ele é costumeiramente vítima de bullying.
Isso é importante para a construção do personagem e, mais à frente, para delinear sua relação de amizade com o advogado vivido por Sam Rockwell. Há também o fato de ele não ter namorada e morar com uma carinhosa e protetora mãe. Na verdade, ele mesmo sofre com o fato de não poder dar à mãe mais do que ela merece, devido aos empregos de baixa remuneração que ele conseguia.
Clint Eastwood não tem medo de carregar nas tintas no registro do melodrama para contar sua história - basta lembrar do quanto emocionou as plateias quase na mesma proporção que as incomodou com o grau de dramaticidade do oscarizado MENINA DE OURO (2004). Por isso cenas como a coletiva de imprensa da mãe de Dewell e seus dois últimos encontros com os agentes do FBI são tão fortes, mas ao mesmo tempo incômodas para quem prefere um tipo de dramaturgia mais sutil.
Para quem compra a proposta, porém, O CASO RICHARD JEWELL é um filme valioso, com o coração tão grande quanto o de uma mãe. E ainda alfineta órgãos governamentais americanos, a imprensa marrom e os julgamentos apressados da sociedade. Estamos diante do mesmo sistema injusto que fez com que um veterano da Guerra da Coreia acabasse entrando no mundo do crime (A MULA), encaminhou diversas vezes um homem para a guerra no Oriente Médio em missões enlouquecedoras (SNIPER AMERICANO) ou tentou sujar a imagem de um piloto de avião que salvou diversas vidas. Clint Eastwood parece estar dedicando sua fase tardia de vida e carreira na direção para não fazer apenas grande cinema, mas também resgatar a imagem de pessoas vitimadas pelo sistema.
+ TRÊS FILMES
A MULA (The Mule)
Sempre uma alegria poder ver cada filme de Clint Eastwood, por mais que eu esteja estranhando uma dramaturgia mista em seus filmes, como se ele não estivesse muito interessado em fazer uma obra realista (lembra certos filmes europeus, nesse sentido), mas um conto moral aparentemente simples, mas cheio de significados mais profundos. E como é bom ver o próprio Clint em ação novamente, como ator. Sobre a questão da idade, desde os anos 1980 que ele brinca com isso. Agora ele tem mais motivo, mas tomara que ele consiga chegar à idade do Manoel de Oliveira. E estando ativo, claro. Ano: 2018.
15H17 - TREM PARA PARIS (The 15:17 to Paris)
Controverso filme de Clint Eastwood que não chegou a entrar em cartaz nos cinemas de Fortaleza e que eu fui adiando várias vezes para ver em casa por achar o início muito ruim. Felizmente, depois de meia hora o filme fica bem interessante, por mais que a conclusão seja um tanto desanimadora. Mas é curioso como se trata de mais uma história de heroísmo de pessoas comuns tratado como num filme pequeno. E aqui é pequeno mesmo, embora eu tenha achado SULLY também um filme pequeno, de certa forma. Aqui, porém, ganha ares de filme europeu, inclusive na dramaturgia. Não consegui comprar as interpretações "ruins" de Jenna Fisher e Judy Greer como as mães dos personagens centrais. Mas parece que era de propósito. Ano: 2018.
OS INVISÍVEIS (Die Unsichtbaren)
Não fiquei muito apegado aos personagens e vi com um pouco de distanciamento, mas, por outro lado, fica muito difícil ver o filme e não imaginar uma distopia acontecendo no Brasil. Imagina você ser da oposição e ser obrigado a dizer "Salve Bolsonaro" para não ser assassinado? É terrível. E o filme conta a história de quatro pessoas que conseguiram não ir para os campos de concentração e se misturaram à multidão de alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Direção: Claus Räfle. Ano: 2017.
Tem sido um prazer acompanhar os filmes recentes de Eastwood, ainda que, por muitos, sejam vistos como inferiores aos das décadas anteriores. Os cinco últimos trabalhos do diretor trataram de pessoas comuns que agiram como heróis (ou quase isso). Foi assim com SNIPER AMERICANO (2014), com SULLY - O HERÓI DO RIO HUDSON (2016), com 15H17: TREM PARA PARIS (2018), com A MULA (2018), e agora com este O CASO RICHARD JEWELL (2019).
E esse tema do heroísmo já é recorrente na filmografia de Clint há um bom tempo. Este mais recente filme é um de seus trabalhos mais felizes, no quanto é capaz de envolver, e no quanto é capaz de nos deixar indignados com a história de um segurança que salva dezenas de vidas em um atentado terrorista durante as Olimpíadas de Atlanta, em 1996, é tido como herói pela imprensa, mas que depois tem sua vida virada de cabeça pra baixo.
A relação de Richard Dewell (o desconhecido e excelente Paul Walter Hauser) com a mãe, vivida por Kathy Bates, é comovente, assim como a amizade dele com o advogado, interpretado por um inspirado Sam Rockwell. Pode ser um pouco problemática a personagem de Olivia Wilde, a jornalista em busca de furos, custe o que custar, mas mesmo assim o filme, à sua maneira, procura trazer uma espécie de redenção para a personagem. Há também outro personagem que procura caminhos mais curtos para ganhar boa reputação no trabalho, que é o do agente do FBI vivido por Jon Hamm. Não são exatamente vilões, mas funcionam como algo próximo disso dentro da trama que mudará a imagem de Richard Jewell aos olhos da sociedade.
Assim como o piloto Sully do filme de 2016, Jewell é alvo de desconfiança e precisa provar sua inocência. Antes, vale destacar que Jewell representa bem o loser americano conservador e apreciador de armas e caça e que tem um respeito enorme por figuras de autoridade. Ele já foi da polícia e, em 1996, quando ocorre o ataque terrorista em uma festa em Atlanta, ele trabalha como segurança particular. Vale destacar o aspecto rotundo de Jewell. Seu corpo é alvo de chacota, desde muito cedo ele é costumeiramente vítima de bullying.
Isso é importante para a construção do personagem e, mais à frente, para delinear sua relação de amizade com o advogado vivido por Sam Rockwell. Há também o fato de ele não ter namorada e morar com uma carinhosa e protetora mãe. Na verdade, ele mesmo sofre com o fato de não poder dar à mãe mais do que ela merece, devido aos empregos de baixa remuneração que ele conseguia.
Clint Eastwood não tem medo de carregar nas tintas no registro do melodrama para contar sua história - basta lembrar do quanto emocionou as plateias quase na mesma proporção que as incomodou com o grau de dramaticidade do oscarizado MENINA DE OURO (2004). Por isso cenas como a coletiva de imprensa da mãe de Dewell e seus dois últimos encontros com os agentes do FBI são tão fortes, mas ao mesmo tempo incômodas para quem prefere um tipo de dramaturgia mais sutil.
Para quem compra a proposta, porém, O CASO RICHARD JEWELL é um filme valioso, com o coração tão grande quanto o de uma mãe. E ainda alfineta órgãos governamentais americanos, a imprensa marrom e os julgamentos apressados da sociedade. Estamos diante do mesmo sistema injusto que fez com que um veterano da Guerra da Coreia acabasse entrando no mundo do crime (A MULA), encaminhou diversas vezes um homem para a guerra no Oriente Médio em missões enlouquecedoras (SNIPER AMERICANO) ou tentou sujar a imagem de um piloto de avião que salvou diversas vidas. Clint Eastwood parece estar dedicando sua fase tardia de vida e carreira na direção para não fazer apenas grande cinema, mas também resgatar a imagem de pessoas vitimadas pelo sistema.
+ TRÊS FILMES
A MULA (The Mule)
Sempre uma alegria poder ver cada filme de Clint Eastwood, por mais que eu esteja estranhando uma dramaturgia mista em seus filmes, como se ele não estivesse muito interessado em fazer uma obra realista (lembra certos filmes europeus, nesse sentido), mas um conto moral aparentemente simples, mas cheio de significados mais profundos. E como é bom ver o próprio Clint em ação novamente, como ator. Sobre a questão da idade, desde os anos 1980 que ele brinca com isso. Agora ele tem mais motivo, mas tomara que ele consiga chegar à idade do Manoel de Oliveira. E estando ativo, claro. Ano: 2018.
15H17 - TREM PARA PARIS (The 15:17 to Paris)
Controverso filme de Clint Eastwood que não chegou a entrar em cartaz nos cinemas de Fortaleza e que eu fui adiando várias vezes para ver em casa por achar o início muito ruim. Felizmente, depois de meia hora o filme fica bem interessante, por mais que a conclusão seja um tanto desanimadora. Mas é curioso como se trata de mais uma história de heroísmo de pessoas comuns tratado como num filme pequeno. E aqui é pequeno mesmo, embora eu tenha achado SULLY também um filme pequeno, de certa forma. Aqui, porém, ganha ares de filme europeu, inclusive na dramaturgia. Não consegui comprar as interpretações "ruins" de Jenna Fisher e Judy Greer como as mães dos personagens centrais. Mas parece que era de propósito. Ano: 2018.
OS INVISÍVEIS (Die Unsichtbaren)
Não fiquei muito apegado aos personagens e vi com um pouco de distanciamento, mas, por outro lado, fica muito difícil ver o filme e não imaginar uma distopia acontecendo no Brasil. Imagina você ser da oposição e ser obrigado a dizer "Salve Bolsonaro" para não ser assassinado? É terrível. E o filme conta a história de quatro pessoas que conseguiram não ir para os campos de concentração e se misturaram à multidão de alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Direção: Claus Räfle. Ano: 2017.
sábado, janeiro 04, 2020
VIAGEM A ICARAÍ DE AMONTADA
Em determinado momento da viagem a Icaraí de Amontada me bateu um sentimento tão grande de gratidão que eu não experimentava há muito tempo. Foi na volta do passeio pelo Rio Aracatiaçu, em Moitas. A turma já tinha rido bastante, brincado bastante e estava em silêncio, contemplando a paisagem. Era o nosso último dia lá e eu senti que poderia ficar mais tempo ali, com aquela turma, feliz por mais alguns dias.
A viagem surgiu com o convite da Valéria, minha amiga de muitos anos, e uma agregadora de pessoas fantásticas. Foi confiando nela que eu topei fugir da minha rotina recente de passar o reveillon em casa para passar com uma turma nova. A maioria das pessoas eu não conhecia. Mas eu sabia que era justamente algo de que eu precisava: conhecer novas pessoas, conversar com pessoas interessantes. As pessoas que eu conhecia na casa eram apenas a Valéria e a Bárbara, outra amiga querida de muito tempo.
Partimos de carro no domingo. No carro da Val ia a Bárbara e mais duas pessoas que eu não conhecia, o Jamieson, um pastor pra lá de heterodoxo (conhecendo a Val, ela jamais ia se envolver com gente religiosamente convencional), e a Zilmara, amiga dele. Durante a viagem de cerca de três horas fomos nos conhecendo aos poucos. Ao chegar na casa, já vi que tinha muito em comum com o Jamieson: ele conheceu quadrinhos na infância e cresceu numa família evangélica. Passamos a noite na casa só nós cinco, à espera dos demais, que viriam só na segunda-feira.
O casal que ia dividir o quarto comigo, Thiago e Roberta, chegaram, junto com Clarisse. Assim como Erlon e Saulo, e Rai e Alice. A Val dizia que eu ia me identificar com o Thiago, e de fato temos muito em comum, tanto por sermos das Letras, quanto por gostarmos de algo na linha da espiritualidade (ele é budista), mas acabei conversando mais com a Roberta, uma dessas pessoas que eu queria ter conhecido há mais tempo.
Roberta é da área de jornalismo e foi fundamental para que a viagem fosse especial, já que trouxe temperos e tipos de comida novos para a casa. Como ela é vegetariana, começou há algum tempo a pesquisar alternativas de alimentação e, junto com isso, vieram novos sabores. Então, experimentar aqueles sabores que ela trouxe foi algo extremamente prazeroso, abriu minha mente para aquele universo de comida vegana, me fez repensar muita coisa, além de, pelo fato de estar experimentando tanta coisa gostosa, voltar a pensar no quanto estar neste mundo pode sim ser uma dádiva. Afinal, o paladar, sentir os variados sabores, é exclusividade de quem habita este planeta, creio eu.
Rai e Saulo representaram a alegria da casa, sempre eufóricos e fazendo a gente rir. Fizemos uma espécie de ritual de apresentação (a Valéria chamava de mística de apresentação, mas como eu não sabia o que era isso ficava pensando em mulheres dançando nuas ao redor de uma fogueira). Na verdade, aquilo era mais uma brincadeira e ocorreu na pracinha da cidade, antes da pizza. Foi uma forma interessante de nos conhecermos, através de perguntas muito ou pouco pessoais que todos deveriam responder. Foi o momento de maior comunhão, digamos assim, da turma, estando ela toda reunida. Uma das perguntas que surgiu na praça foi "O que te dá mais prazer?". Respondi que era cinema, que sexo era superestimado e tal. Mas depois pensei que poderia ter respondido "beijar estando apaixonado".
A praia estava ótima, mas infelizmente chegou, junto com a gente, aquele óleo que vazou e que já havia contaminado boa parte das praias do Nordeste. No dia seguinte, o Thiago me mostrou a matéria que saiu no jornal O Povo. O óleo havia chegado às praias de Itapipoca e Amontada. Algumas pessoas estavam com saquinhos, recolhendo parte da gosma preta que chegara na areia da praia.
Na noite do dia 30, enquanto alguns da turma resolveram ir a um forró, a maioria quis ficar em casa para acordar cedo e ir à Lagoa de Flexeiras (o que só ocorreria no dia seguinte, devido a uma chuva-surpresa). O Thiago havia trazido três jogos e um deles era o Dixit, que jogamos naquela noite, todo mundo junto, na sala de jogos (na verdade, uma mesa com pouca iluminação na parte de fora da casa). O jogo, eu já tinha jogado na casa da Bia, mas tinha bem pouca lembrança das regras. Lida com imagens que parecem saídas de quadros de Salvador Dalí. Eu e Clarisse ficamos entre os vencedores no final (houve empate de duas duplas).
Chega o dia 31 de dezembro. O dia foi tranquilo e eu fui aquietando meu espírito a ponto de conseguir ler tanto prosa quanto quadrinhos. Esse dia, na verdade, não é muito tranquilo pra mim, já que tenho bem poucas lembranças de finais de ano realmente felizes. Como a turma da Valéria é muito bacana, ela acabou atraindo mais pessoas, de outras turmas, de outras casas, para a ceia de reveillon, que mesmo faltando energia por horas, foi um sucesso. Ailton Lopes, que teve meus votos para vereador e para prefeito em eleições passadas, era um dos presentes na ceia. Simpático, me chamava sempre de xará. A ceia estava uma beleza, com sua pluralidade de sabores. Até resolvi dar um chega pra lá nas leis de Moisés e no amor não correspondido com o chocolate. Estava de férias dessas restrições.
E aí chega o momento mais melancólico, que é o da virada do ano. Depois da ceia, fomos à praia. Foi bom brindar ao ano novo, rir um pouco, ouvir "I've got a woman" em um sonzinho na praia, abraçar pessoas que eu amo e respeito (Israel, amigo de longa data também estava por lá), ver os fogos (eu dizia que eram presentes do nosso prefeito de Fortaleza), sentar na areia olhando para o mar, ir até o mar e sentir a água nos pés.
A ideia da Valéria de ir até uma barraca que tocava um tipo de forró e música menos contemporânea foi boa, fiquei lá por uns minutos, mas estava me sentindo deslocado e sozinho. Resolvi voltar logo pra casa. Mas não estava exatamente triste. Sentia-me feliz com a liberdade, com as possibilidades que o futuro me reservava, mas, especialmente, estava curtindo o cheiro do mar e da noite antes de quebrar à esquerda e entrar na rua que dava à "nossa casa". A ideia era chegar lá, tomar um banho e me meter entre os lençóis para ler. Finalmente 2019 tinha passado.
No penúltimo dia fomos à Lagoa de Flexeiras. Diria que foi um dos pontos altos da viagem, tanto pelos momentos ali na lagoa, extremamente agradáveis - havia duas redes lá para quem quiser tirar fotos e tal, parecidas com aquelas que há em Jericoacoara - quanto pelo alto astral da turma em si. Algumas pessoas estavam indo embora. Alice, Rai e Zilmara já haviam ido e Erlon e Saulo estavam indo também. A casa sentiu falta da alegria contagiante dos dois.
Mesmo assim, o melhor momento ainda viria, no dia seguinte, quando fomos a um passeio no Rio Aracatiaçu, em Moitas. Que beleza de lugar, que deslumbrante a paisagem que se descortinou aos nossos olhos. Aquele grupo de cinco pessoas (eu, Val, Bárbara, Roberta, Jamieson e Clarisse) estava muito feliz com aquele momento. Falar assim parece soar superficial, mas não é. Tanto é que foram esses momentos que me trouxeram àquela sensação tão especial que eu citei lá no primeiro parágrafo: a do silêncio de todos no retorno de barco para casa, quando meu coração se encheu de gratidão.
Creio que é importante deixar este registro para mim e para os amigos que estiveram juntos. Mas, principalmente, para o Ailton do futuro, que lerá este relato e reviverá as emoções, já que não dá para confiar na nossa memória. E costumo dizer que registros escritos são mais valiosos que registros fotográficos, no sentido de que captam aquilo que os olhos não podem ver.
A viagem surgiu com o convite da Valéria, minha amiga de muitos anos, e uma agregadora de pessoas fantásticas. Foi confiando nela que eu topei fugir da minha rotina recente de passar o reveillon em casa para passar com uma turma nova. A maioria das pessoas eu não conhecia. Mas eu sabia que era justamente algo de que eu precisava: conhecer novas pessoas, conversar com pessoas interessantes. As pessoas que eu conhecia na casa eram apenas a Valéria e a Bárbara, outra amiga querida de muito tempo.
Partimos de carro no domingo. No carro da Val ia a Bárbara e mais duas pessoas que eu não conhecia, o Jamieson, um pastor pra lá de heterodoxo (conhecendo a Val, ela jamais ia se envolver com gente religiosamente convencional), e a Zilmara, amiga dele. Durante a viagem de cerca de três horas fomos nos conhecendo aos poucos. Ao chegar na casa, já vi que tinha muito em comum com o Jamieson: ele conheceu quadrinhos na infância e cresceu numa família evangélica. Passamos a noite na casa só nós cinco, à espera dos demais, que viriam só na segunda-feira.
O casal que ia dividir o quarto comigo, Thiago e Roberta, chegaram, junto com Clarisse. Assim como Erlon e Saulo, e Rai e Alice. A Val dizia que eu ia me identificar com o Thiago, e de fato temos muito em comum, tanto por sermos das Letras, quanto por gostarmos de algo na linha da espiritualidade (ele é budista), mas acabei conversando mais com a Roberta, uma dessas pessoas que eu queria ter conhecido há mais tempo.
Roberta é da área de jornalismo e foi fundamental para que a viagem fosse especial, já que trouxe temperos e tipos de comida novos para a casa. Como ela é vegetariana, começou há algum tempo a pesquisar alternativas de alimentação e, junto com isso, vieram novos sabores. Então, experimentar aqueles sabores que ela trouxe foi algo extremamente prazeroso, abriu minha mente para aquele universo de comida vegana, me fez repensar muita coisa, além de, pelo fato de estar experimentando tanta coisa gostosa, voltar a pensar no quanto estar neste mundo pode sim ser uma dádiva. Afinal, o paladar, sentir os variados sabores, é exclusividade de quem habita este planeta, creio eu.
Rai e Saulo representaram a alegria da casa, sempre eufóricos e fazendo a gente rir. Fizemos uma espécie de ritual de apresentação (a Valéria chamava de mística de apresentação, mas como eu não sabia o que era isso ficava pensando em mulheres dançando nuas ao redor de uma fogueira). Na verdade, aquilo era mais uma brincadeira e ocorreu na pracinha da cidade, antes da pizza. Foi uma forma interessante de nos conhecermos, através de perguntas muito ou pouco pessoais que todos deveriam responder. Foi o momento de maior comunhão, digamos assim, da turma, estando ela toda reunida. Uma das perguntas que surgiu na praça foi "O que te dá mais prazer?". Respondi que era cinema, que sexo era superestimado e tal. Mas depois pensei que poderia ter respondido "beijar estando apaixonado".
A praia estava ótima, mas infelizmente chegou, junto com a gente, aquele óleo que vazou e que já havia contaminado boa parte das praias do Nordeste. No dia seguinte, o Thiago me mostrou a matéria que saiu no jornal O Povo. O óleo havia chegado às praias de Itapipoca e Amontada. Algumas pessoas estavam com saquinhos, recolhendo parte da gosma preta que chegara na areia da praia.
Na noite do dia 30, enquanto alguns da turma resolveram ir a um forró, a maioria quis ficar em casa para acordar cedo e ir à Lagoa de Flexeiras (o que só ocorreria no dia seguinte, devido a uma chuva-surpresa). O Thiago havia trazido três jogos e um deles era o Dixit, que jogamos naquela noite, todo mundo junto, na sala de jogos (na verdade, uma mesa com pouca iluminação na parte de fora da casa). O jogo, eu já tinha jogado na casa da Bia, mas tinha bem pouca lembrança das regras. Lida com imagens que parecem saídas de quadros de Salvador Dalí. Eu e Clarisse ficamos entre os vencedores no final (houve empate de duas duplas).
Chega o dia 31 de dezembro. O dia foi tranquilo e eu fui aquietando meu espírito a ponto de conseguir ler tanto prosa quanto quadrinhos. Esse dia, na verdade, não é muito tranquilo pra mim, já que tenho bem poucas lembranças de finais de ano realmente felizes. Como a turma da Valéria é muito bacana, ela acabou atraindo mais pessoas, de outras turmas, de outras casas, para a ceia de reveillon, que mesmo faltando energia por horas, foi um sucesso. Ailton Lopes, que teve meus votos para vereador e para prefeito em eleições passadas, era um dos presentes na ceia. Simpático, me chamava sempre de xará. A ceia estava uma beleza, com sua pluralidade de sabores. Até resolvi dar um chega pra lá nas leis de Moisés e no amor não correspondido com o chocolate. Estava de férias dessas restrições.
E aí chega o momento mais melancólico, que é o da virada do ano. Depois da ceia, fomos à praia. Foi bom brindar ao ano novo, rir um pouco, ouvir "I've got a woman" em um sonzinho na praia, abraçar pessoas que eu amo e respeito (Israel, amigo de longa data também estava por lá), ver os fogos (eu dizia que eram presentes do nosso prefeito de Fortaleza), sentar na areia olhando para o mar, ir até o mar e sentir a água nos pés.
A ideia da Valéria de ir até uma barraca que tocava um tipo de forró e música menos contemporânea foi boa, fiquei lá por uns minutos, mas estava me sentindo deslocado e sozinho. Resolvi voltar logo pra casa. Mas não estava exatamente triste. Sentia-me feliz com a liberdade, com as possibilidades que o futuro me reservava, mas, especialmente, estava curtindo o cheiro do mar e da noite antes de quebrar à esquerda e entrar na rua que dava à "nossa casa". A ideia era chegar lá, tomar um banho e me meter entre os lençóis para ler. Finalmente 2019 tinha passado.
Mesmo assim, o melhor momento ainda viria, no dia seguinte, quando fomos a um passeio no Rio Aracatiaçu, em Moitas. Que beleza de lugar, que deslumbrante a paisagem que se descortinou aos nossos olhos. Aquele grupo de cinco pessoas (eu, Val, Bárbara, Roberta, Jamieson e Clarisse) estava muito feliz com aquele momento. Falar assim parece soar superficial, mas não é. Tanto é que foram esses momentos que me trouxeram àquela sensação tão especial que eu citei lá no primeiro parágrafo: a do silêncio de todos no retorno de barco para casa, quando meu coração se encheu de gratidão.
Creio que é importante deixar este registro para mim e para os amigos que estiveram juntos. Mas, principalmente, para o Ailton do futuro, que lerá este relato e reviverá as emoções, já que não dá para confiar na nossa memória. E costumo dizer que registros escritos são mais valiosos que registros fotográficos, no sentido de que captam aquilo que os olhos não podem ver.