domingo, abril 27, 2025

OS DESAJUSTADOS (The Misfits)



why do I feel
this torture?
or why do I feel less
of a human being than others
(Always so of felt in
a way that I’m sub-human
why
in other words
I’m the worst
why?)


Marilyn Monroe em Fragmentos – Poemas, Anotações Íntimas e Cartas de Marilyn Monroe (p. 121)

Achei difícil ver OS DESAJUSTADOS (1961), de John Huston, e não pensar na Marilyn Monroe, no quanto a personagem que ela interpreta carrega muito de si, de sua sensibilidade, de suas inquietações, de suas fragilidades e também de sua alta inteligência e percepção do que está errado no mundo. E Huston, por mais que tenha também a fama de ser esse diretor que é capaz de deixar de lado um set de filmagens para matar um elefante na África, nas gravações de UMA AVENTURA NA ÁFRICA (1951), fato muito bem explorado no excelente CORAÇÃO DE CAÇADOR, de Clint Eastwood, por mais que tenha a fama de carrasco, há também em seus filmes um tipo de sensibilidade que só faz com que achemos a raça humana ainda fascinante em suas contradições.

E em OS DESAJUSTADOS ele parece, sim, ser essa pessoa que tenta se questionar sobre a decadência ou pelo menos a falta de sentido do mundo patriarcal e muito acostumado com a violência. Eu não estava nada preparado para as cenas dos cavalos, que me deram mesmo aflição, mas isso acontece principalmente pois a personagem de Monroe representa muito bem a sensibilidade dentro daquele mundo masculino decadente dos caubóis, representado principalmente pelo personagem de Clark Gable. Acredito que seja a melhor interpretação de Marilyn, além de ser sua última num filme completo, acabado.

Também foi o último filme de Gable, com seu personagem que lamenta os rumos que deu a sua vida, e que vê naquela loira bonita, carinhosa e sem rumo a chance de ser feliz novamente. Além do mais, é um dos últimos de Montgomery Clift, como o caubói que vive uma vida de sacrifício autoimposto, como se quisesse, de alguma maneira, esquecer as angústias através da dor física. O próprio Clift já era, como ator de Hollywood, uma figura carregada de certa tragédia no próprio olhar. Alguns poucos filmes com ele seriam lançados posteriormente, inclusive um dirigido pelo próprio Huston, FREUD – ALÉM DA ALMA (1962), mas já faziam parte da fase de decadência física e emocional do astro. Marilyn, em suas memórias, chegou a descrever Clift como “a única pessoa que conheço que está pior do que eu”. Ou seja, é como se o roteiro de Arthur Miller tivesse sido escrito para Clift, que vivia numa espécie de longo suicídio, de vida de autodestruição.

Por isso OS DESAJUSTADOS é carregado de um simbolismo de fim de uma era para Hollywood, ao vermos a antecipação tripla da morte de figuras tão importantes para a história do cinema americano. E o filme trazer essa sensação de fim, de crepúsculo, de melancolia e angústia, de maneira tão intensa, como se estivesse simplesmente captando com antenas o zeitgeist, só isso já o coloca como uma das obras mais fundamentais do cinema americano.

Na trama, Marilyn Monroe é como uma lâmpada que atrai mosquitos, no caso, os três homens do elenco principal: Gable, e Eli Wallach. Ela é Roslyn, uma mulher separada depois de um relacionamento abusivo, que conhece num bar Gay Langland, um velho caubói vivido por Gable, que a convida para conhecer o rancho de um amigo, o personagem de Wallach, um piloto de aviões também separado depois de um casamento fracassado. É lá nessa casa rústica que os dois, Gay e Roslyn, tentarão uma vida amorosa juntos.

OS DESAJUSTADOS tem uma narrativa em compasso lento, ritmo que seria bastante adotado nos filmes da fase ainda mais tardia do diretor, como OS PECADOS DE TODOS NÓS (1967) e seu canto do cisne OS VIVOS E OS MORTOS (1987). Inclusive, falam maravilhas de CIDADE DAS ILUSÕES (1972) e sobre o quanto é um filme-irmão de OS DESAJUSTADOS, e por isso ele está em minha lista de interesses para este ano ainda. O filme-despedida de Monroe e Gable é uma obra sobre personagens fracassados em busca de segundas chances, e do quanto a sensibilidade de uma mulher é capaz de tornar visível a crueldade do homem. Só por isso, já me ganhou.

Por isso um grande dramaturgo faz uma diferença e tanto num filme. Aqui, Miller, então casado com Marilyn, escreve o roteiro e John Huston, ainda que já veterano àquela altura, faz um filme diferente do que se estava acostumado a se ver em Hollywood naquele momento. Por isso que muitas vezes essa coisa de fazer a divisão entre velha e nova Hollywood acaba sendo problemático, principalmente quando vemos algo desse tipo, que já antecipa bastante o tom que o cinema americano adotaria na década seguinte.

+ DOIS FILMES

BAD GIRLS GO TO HELL

Segundo filme de Doris Wishman que vejo – o anterior foi o infame LET ME DIE A WOMAN (1977), que imagino ser de um outro momento de sua carreira. Este BAD GIRLS GO TO HELL (1965) se encaixa num sexploitation que imagino que era novidade na década de 1960, um período em que se começou a ter mais liberdade para trazer nudez gráfica em filmes americanos, ainda que em obras mais marginais como esta. No entanto, como cinema exploratório do corpo feminino, é sempre bom lembrar que temos uma mulher atrás das câmeras e isso faz toda a diferença. A personagem principal é uma mulher que vive o inferno de se sentir perseguida, após fugir de Chicago depois de ter matado o homem que a estuprava. Usando um nome falso e sem dinheiro, nossa heroína sai em busca de um pouco de paz e alegria para reconstruir a vida em Nova York. O filme é mais sobre a crueldade do mundo patriarcal e covarde com a mulher, disfarçado de obra que explora o corpo nu ou em roupas transparentes. Isso serviria como chamariz. O filme me fez lembrar os primeiros trabalhos de Brian De Palma. E talvez por isso algumas pessoas comparem Wishman a Godard, já que De Palma também queria ser uma espécie de Godard americano.

UM COMPLETO DESCONHECIDO (A Complete Unknown)

Vi UM COMPLETO DESCONHECIDO (2024) sob circunstâncias adversas e numa sala não muito boa, mas o filme é tão bom de acompanhar que quase me esqueci dos problemas. Timothée Chalamet sai de DUNA para o papel de um jovem Bob Dylan. E o rapaz arrasa. Canta e toca violão/guitarra de verdade e não está nada afetado em sua personificação do cantor e compositor mitológico. Além do mais, o filme ainda conta com duas jovens atrizes tão belas quanto talentosas, a revelação Monica Barbaro como Joan Baez e a já famosa Elle Fanning como Sylvie Russo, a namorada de Dylan eternizada na capa do álbum The Freewheelin' Bob Dylan (1963). James Mangold faz aqui um filme que funciona como uma dobradinha perfeita com JOHNNY & JUNE (2005), inclusive com uma participação também de Johnny Cash como alguém que incentiva Dylan a fazer aquilo que deseja, a se libertar dos rótulos e do aprisionamento que ele sentia dentro da indústria da música folk, que ele nunca deixou de fazer, mas cuja virada, mais para o rock, a partir de 1965, foi vital para que o cantor se firmasse por tanto tempo como artista relevante e gigante. O legal do filme é que ele coloca momentos de insatisfação de Dylan e a mudança grande que aconteceria em '65 não acontece de uma hora para a outra para o espectador. Um clássico filme de cinebiografia, mas também uma obra que enfatiza o aspecto misterioso e selvagem da persona de Dylan, principalmente na cena final.

domingo, abril 20, 2025

PECADORES (Sinners)



A música ocidental seria muito pobre se não fosse a contribuição dos negros. Na verdade, se pensarmos bem, a música que até hoje resiste é nascida da criatividade e inventividade negra: o jazz, o blues, o rock, o r&b, o soul, o funk, o reggae, o pop, o samba, o rap, e por aí vai. Até mesmo a música country parece ter também influências da música negra em sua gênese. Ou seja, de um povo criado na dor de ter sido sequestrado, açoitado e ter sido tratado muito menos do que um objeto, pois objetos não são açoitados, nasceu uma das mais ricas contribuições para a cultura contemporânea. No caso da música negra norte-americana, ela ainda teve o agravante de ter a restrição de não se poder usar instrumentos de percussão. No entanto, os negros americanos souberam usar essa restrição a seu favor e criaram uma das músicas mais sofisticadas do mundo.

A metáfora dos vampiros, por isso, parece genial no filme de Ryan Coogler, pois é mais uma tapa na cara dos racistas, dos brancos que se acham superiores. E se pensarmos que os Estados Unidos foram um país que criou uma organização como a Ku Klux Klan e que enforcou pessoas negras ao longo dos anos, sem falar nas proibições de se usar o mesmo banheiro ou de se sentar em espaços diferentes do mesmo ônibus em certos estados do sul, isso só torna a história desse país ainda mais complexa. Por isso que falar dos Estados Unidos é também sempre lembrar de um legado de horrores. E por isso falar dos Estados Unidos também é pensar na alegria que sua música e sua cultura nos trouxeram.

Vendo PECADORES é que passo a entender o jogo de Ryan Coogler em trazer para si, ou melhor, para o protagonista negro, o que geralmente era de um protagonista branco. Aconteceu com CREED – NASCIDO PARA LUTAR (2015), criado a partir da franquia Rocky, sobre um boxeador ítalo-americano, e com PANTERA NEGRA (2018), um filme de super-herói da Marvel que coloca a cultura africana como superior, inclusive do ponto de vista da tecnologia, mas eu não estava preparado para um salto tão gigante como este seu novo filme.

Seu quinto longa-metragem é não apenas um dos mais criativos filmes de vampiros de todos os tempos, mas vai muito além disso, ao retratar a luta do homem negro no sul dos Estados Unidos em tempos de KKK ainda em atividade e ao falar de apropriação cultural. Mas o que mais me encantou mesmo foi mostrar a música como uma espécie de mágica, e como uma mágica que veio com o povo africano escravizado, uma música que faz parte do negro americano; diferente da religião, que foi imposta, e isso é mencionado no filme.

Aliás, Coogler às vezes soa quase didático (no bom sentido do termo), mas há muitos simbolismos mais sutis que merecem um pouco mais de atenção. A própria necessidade do vampiro de precisar que a pessoa o convide para entrar é também representativo do quanto o artista negro americano foi perdendo sua preciosa música para os brancos, de olho no que havia de melhor e prontos também para usufruírem daquela arte incrível, como é o caso do blues e do jazz, e mais adiante do rock também.

Uma das melhores cenas do ano (ou do século) é aquela que vemos a magia do blues perpassando presente, passado e futuro. E não consigo ver outra arte que não o cinema para apresentar aquilo de tal maneira. E essa cena especificamente é talvez o maior flagrante do grande talento de Coogler, que aqui se mostra à altura de um Jordan Peele, para citar um dos grandes mestres do cinema de horror da atualidade – ainda considero NÃO, NÃO OLHE! o melhor filme de terror dirigido por um cineasta negro, mas sei que existem muitas lacunas em minha cultura cinéfila ainda.

Sobre a trama, Michael B. Jordan interpreta dois irmãos gêmeos que voltaram de Chicago para sua cidadezinha do interior do Mississipi em 1932,com muito dinheiro após um período trabalhando para a máfia de Al Capone. Aliás, até a discussão acerca de todo dinheiro ser roubado ali nos Estados Unidos é muito interessante. Esses dois irmãos visitam o primo mais novo, Sammy, chamado de pastorzinho (Miles Caton), por ser filho de pastor, para que ele toque na inauguração de uma casa de espetáculos de blues na cidade. Depois, como em OS SETE SAMURAIS, saem em busca de pessoas que os ajudem na organização do evento, como um homem grande para ser o leão de chácara (Omar Miller), ou um bom músico vivendo na pior (Delroy Lindo) para ajudar na banda, ou uma cantora jovem (Jayme Lawson) etc. O elenco ainda tem Hailee Steinfeld, atriz de ascendência filipina e por isso combina bem no papel de alguém que tem sangue negro nas veias, como o interesse amoroso de um dos irmãos.

O filme lembra UM DRINK NO INFERNO, de Robert Zemeckis, no momento que os vampiros chegam para invadir o espaço. Ou melhor, pedindo para entrar, pois há um jogo muito interessante da trama de aproveitar certos conceitos de filmes e de literatura sobre vampiros, como o alho como elemento que os espanta ou causa dor, a luz do sol como elemento que os mata, além do uso da estaca no peito também. Nesse sentido, a personagem de Wunmi Mosaku como uma espécie de feiticeira, uma mulher detentora da sabedoria de magia e sobrenatural, essencial para a condução desse segundo momento do filme. Mas claro: por mais memorável que seja o filme de Zemeckis com roteiro de Tarantino, Coogler faz aqui um trabalho muito mais respeitável e sofisticado. Desde já um dos melhores do ano.

Ah, e quem puder, veja o filme numa sala IMAX! Faz toda a diferença!

+ DOIS FILMES

DROP – AMEAÇA ANÔNIMA (Drop)

Não sei se já dá para dizer que este é o filme de maturidade de Christopher Landon, vindo ele de obras mais lúdicas como A MORTE TE DÁ PARABÉNS (2017), sua continuação (2019) e a comédia de terror FREAKY – NO CORPO DE UM ASSASSINO (2020). Em DROP – AMEAÇA ANÔNIMA (2025), seu trabalho formal chega a ser impressionante, lembrando muitas vezes Brian De Palma, no modo como lida tanto com o suspense quanto com a câmera nervosa, captando os vários espaços de um restaurante chique. Na trama, mulher traumatizada vai a um primeiro encontro com um rapaz que conhece num aplicativo de relacionamentos, mas as coisas começam a ficar muito tensas quando ela recebe mensagens perigosas em seu celular. Creio que o filme captura bem o mundo em que vivemos. Enquanto via o filme, inclusive, sentia as notificações no celular em meu bolso e percebia o quanto esse aparelhinho que carregamos o tempo todo nas mãos ou no bolso é tóxico. Não que isso seja a moral da história, mas certamente um lembrete para o presente e uma marca documental para o futuro. O que temos é principalmente um filme pra lá de eficiente na condução do suspense e que realmente provoca arrepios em determinados momentos de perigo e tensão. Acredito que o cineasta passará a ganhar mais atenção para os próximos trabalhos que virão, dada a direção elegante e a condução impressionante de DROP.

O MACACO (The Monkey)

Talvez O MACACO (2025) seja o menos interessante da filmografia de Osgood Perkins, mas ainda assim tem seus méritos e um diferencial. Difere dos filmes de brinquedos ou bonecas amaldiçoados que existem por aí, tanto no tom, com um tipo de humor prevalecendo, quanto na maneira como a morte é tratada como algo inescapável, como diz a personagem de Tatiana Maslany a seus filhos adolescentes, quando os dois perdem uma pessoa querida num acidente horrível, logo após o macaco ter sido usado. Esse tom de quase desistência perante a morte é tanto uma força (pela originalidade) quanto uma fraqueza (pela falta de temor de nossa parte). O filme também não explora jump scares e por isso acaba fugindo do terror mais vulgar. Talvez haja uma aproximação maior com a franquia Premonição, pelo modo como se começa a esperar a próxima situação. E algumas delas realmente são bem surpreendentes, como a morte da tia ou a do sujeito que fica viciado no macaco. O MACACO é também um filme sobre a dificuldade de comunicação entre os familiares e sobre a ausência paterna. Não é tão plasticamente bonito como MARIA E JOÃO – O CONTO DAS BRUXAS (2020) e LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL (2024), mas mantém o nome de Perkins como um dos principais do gênero da atualidade. Porém, é verdade que ainda falta a ele um grande filme no currículo.

segunda-feira, abril 14, 2025

ONDA NOVA



“Vale assistir aos seus divertidíssimos filmes, repletos de humor sacana e gaiato que não existe mais. E acima de tudo, pensar na arte como o gigante que engole o mundo, e que despreza a barreira misteriosa da morte, eternizando a vida”
ORMOND, Andrea.
Ensaios de Cinema Brasileiro – Volume II: Os Anos 1980 e 1990, p. 221.

O excerto acima de Ormond é sobre A ESTRELA NUA (1984), o terceiro da chamada trilogia do desejo de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, estrelada por Carla Camurati. E lendo sobre este filme é que percebo que se trata de uma espécie de continuação ainda mais viajante de ONDA NOVA (1983), que já tem esse tom jazzístico, desinteressado com uma trama e muito afinado com certo espírito libertário.

Também li agora meu texto lá de 2010 sobre ONDA NOVA, escrito no calor do momento em que o vi, após ter recebido uma cópia do amigo Adilson Marcelino, e percebo que algumas impressões que tive vendo esta cópia nova remasterizada no cinema, como pensar certa semelhança com os filmes de Pedro Almodóvar, e o quanto me amarrei nas referências explícitas e verbais a Walter Hugo Khouri (não teria como), foram basicamente as mesmas. Mas claro que gostei muito mais agora, na revisão, no cinema, em imagem cristalina que valoriza a beleza das imagens, das cores, das atrizes, da alegria contagiante.

Ouvi dizer que os outros dois filmes da trilogia de José Antonio Garcia e Ícaro Martins estrelados por Carla Camurati, bem como O CORPO (1991), apenas de Garcia, também receberão o mesmo tratamento que ONDA NOVA recebeu. Olha que notícia maravilhosa, caso seja mesmo verdade (pois só acreditando vendo)! É possível dizer que o relançamento nos cinemas deste filme tenha sido um dos grandes acontecimentos deste início de 2025. Tanto para aqueles que já conheciam o filme e terem essa chance incrível de revê-lo na telona, quanto para quem não conhecia e considerava a obra de certa forma até um tanto esquecida.

O que não é bem verdade. Embora seja verdade, sim, que o próprio cinema de pornochanchada paulista, da Boca do Lixo, por mais que seja reverenciado e tenha sido resgatado por muitos críticos de alto gabarito a partir dos anos 2000, ainda sofra certa resistência e preconceito, inclusive por certa ala da crítica de cinema. O filme, por exemplo, não aparece na lista dos 100 melhores filmes brasileiros, segundo a Abraccine, e é bem provável que aparecesse, agora com esse relançamento, se um novo ranking fosse criado.

ONDA NOVA é uma delícia de ver do início ao fim (mesmo quando o pesadelo parece querer invadir o tom de alegria em dois momentos) e que apresenta um caráter transgressor até para os dias de hoje, dado o suposto aumento de "conservadores" no Brasil (e no mundo). Quem nunca viu os filmes da época vai estranhar a dublagem meio caótica, comum, na produção paulista, especialmente. Além de perceber também uma montagem mais brusca, mas sem perder o charme.

Não há um interesse em se construir um plot: é um filme coral muito livre que mostra um grupo de jovens de um time de futebol feminino no tempo em que esse esporte ainda era quase que exclusividade dos homens. Vejo ONDA NOVA também como uma celebração da liberdade, da alegria, do prazer e da juventude que insistia em rir, fazer sexo e ser feliz, mesmo em tempos em que a censura da ditadura ainda ditava as regras.

O avanço na sensualidade mais gráfica que o cinema brasileiro obteve na primeira metade dos anos 1980 é também diretamente proporcional à habilidade com que um grande número de diretores sabia filmar cenas de sexo. Corpos femininos e também masculinos desfilam nus pelo filme, sem pudor, sem medo de ser feliz. 

Sobre a semelhança com os trabalhos de Almodóvar, que nasceram com o fim do franquismo e por isso se apresentam assim tão desbundantes, tão celebratórios e ousados, o filme brasileiro tem mais alegria, na comparação, mas isso tem mais a ver com o espírito mais festivo de nosso povo, e também do quanto nosso cinema, mesmo sofrendo com a censura, ainda se mostrou imenso no período da ditadura.

+ DOIS FILMES

O MELHOR AMIGO

Baseado em seu curta homônimo de 2013, Allan Deberton cria uma continuação para a história dos dois amigos. Pra quem gosta de Canoa Quebrada, ter o lugar como um espaço fílmico é uma diversão a mais. Para quem curte musical, pode também gostar de O MELHOR AMIGO (2024), especialmente se o seu forte for o cancioneiro popular dos anos 70 e 80. A presença da Gretchen ajuda a dar ao filme um ar de graça que foge um pouco do humor cearense tradicional, que, de machista, é revirado do avesso para o universo queer. Gosto da participação de Cláudia Ohana, das cores vivas e solares da fotografia de Beto Martins, o mesmo de PACARRETE (2019), e nem tanto dos números musicais. Acho interessante o quanto Vinicius Teixeira trabalha bem esse desconforto de alguém muito tímido que se vê ainda deslocado em ambientes em que impera a extroversão e o desembaraço. Parece ser o ator ideal para o papel, assim como Gabriel Fuentes foi uma escolha perfeita para viver o Filipe, o sujeito bonitão e desejado por todos e todas. A ideia de trazer o musical da Broadway para a Broadway de Canoa Quebrada foi outra bela sacada de Deberton.

MAMONAS ASSASSINAS – O FILME

A história da banda Mamonas Assassinas renderia um baita filme, dependendo da abordagem. Aqui, desde a fala inicial do Dinho (Ruy Brissac), o foco do filme parece ser a conquista do sucesso, não desistir dos sonhos, você consegue tudo que você desejar etc. É até uma coisa meio de autoajuda, e que acaba não servindo muito de exemplo quando pensamos no destino final dos cinco. Seria melhor uma vida sem sucesso e uma velhice tranquila? Ou é melhor alcançar uma popularidade enorme e morrer muito jovem? Não que o filme questione esse tipo de coisa. Na verdade, MAMONAS ASSASSINAS – O FILME (2023), de Edson Spinello, parece não se interessar muito em pensar ou se aprofundar em nada. É tudo montado como uma telenovela condensada, com foco nas subtramas relativas aos interesses amorosos dos cinco rapazes. O lado positivo é que dá espaço para os cinco, embora se perceba que o rapaz que interpreta o asiático da banda praticamente não tem uma história própria desenvolvida. Há também problemas quando o filme busca o melodrama, mas até que funciona quando persegue a comédia. Pelo menos isso, já que humor não poderia faltar num grupo lembrado por suas brincadeiras e pela irreverência.

sábado, abril 05, 2025

OESTE OUTRA VEZ



Acordei mais apaixonado por OESTE OUTRA VEZ (2024). O filme de Erico Rassi se agiganta cada vez mais à medida que pensamos nele. E qual não é minha surpresa quando olho para as lembranças do Facebook e vejo que há três anos eu havia terminado de ler Homens sem Mulheres, excelente livro de contos de Haruki Murakami, que comprei por causa de DRIVE MY CAR, mais um filme que adapta contos do escritor japonês.

Podemos dizer que o faroeste moderno de Rassi é uma nova visão de um mundo sem mulheres. Melhor ainda: de um mundo sem o feminino, uma vez que é o feminino em nós que é responsável pela sensibilidade, pela delicadeza e pela inteligência emocional e a capacidade de comunicar os sentimentos, de saber minimamente o que fazer com as emoções, em vez de ir a um bar e olhar para um copo de cachaça, amargando sua dor de corno ou de abandono, enquanto escuta uma canção do Nelson Ned ou outras do cancioneiro popular e que abordam a dor da separação.

OESTE OUTRA VEZ é o segundo filme de Rassi para o cinema, sendo que o primeiro, COMEBACK – UM MATADOR NUNCA SE APOSENTA (2016), lançado já há um bom tempo, um intervalo de tempo infelizmente maior do que gostaríamos, é também uma espécie de western moderno, por assim dizer. Ambos são filmes que homenageiam os faroestes americanos e que lidam com o tema da solidão de homens embrutecidos. Mas se em COMEBACK eu não havia percebido toda essa habilidade incrível do diretor, neste novo há força e sensibilidade tamanhas que se torna impossível passar batido, impossível não perceber o quanto se trata de um trabalho muito especial, além de uma obra feita por um cinéfilo. Aliás, é uma pena que seja um filme que deve ficar restrito apenas a salas alternativas e a poucas sessões. Digo uma pena porque se trata de uma obra que tem a capacidade de agradar a um público muito maior.

Na trama, Totó (Ângelo Antônio) briga com Durval (Babu Santana) pela mulher. Ele acusa Durval de ter roubado a mulher dele e acaba levando uma surra. Sem saber o que fazer, além de ligar para a mulher perguntando se ela mudou de ideia (quem está apaixonado e perde a pessoa amada passa bastante por esse período de negação, de não-aceitação), ele contrata um pistoleiro, ou pelo menos alguém que ele acredita ser um pistoleiro, um homem que trabalha carregando tralhas em um carro de lixo, vivido por Rodger Rogério, para matar Durval. A opção de Totó é partir para a violência extrema, ainda que terceirizada, mas algo dá errado e ele e o velho matador acabam sendo perseguidos no meio do sertão goiano, mostrado ora belo, ora sujo, empoeirado e feio.

OESTE OUTRA VEZ foi o grande vencedor da última edição do Festival de Gramado, ganhando três kikitos nas categorias de melhor filme, melhor fotografia (André Carvalheira, que trabalhou com Rassi em seu primeiro longa) e melhor ator coadjuvante para o nosso querido Rodger Rogério, grande cantor cearense que já faz algum tempo resolveu se enveredar também na carreira de ator. E deu muito certo. Que ator! Que presença de cena! E que personagem Rassi construiu para ele!

OESTE OUTRA VEZ é um filme que acerta tanto em homenagear o western americano quanto em retratar muito bem a solidão do homem num registro que une tanto a melancolia quanto o humor, além de o cineasta optar por fugir frequentemente das convenções do gênero ou do que se esperaria na narrativa. A escolha do diretor e roteirista Erico Rassi em praticamente não mostrar mulheres em cena intensifica a solidão dos personagens. Em algum momento, inclusive, me fez lembrar o incrível PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff.

Vendo a entrevista do diretor a Isabela Boskov, soube que Racci até tinha filmado cenas com a mulher que aparece no prólogo, mas que acabou cortando por não saber lidar com ela, sem que ela se tornasse uma personagem bidimensional. Resultado: acabou acertando em cheio com a escolha de cortar as cenas e de tornar a sua ausência uma espécie de ausência presente.

Há uma cena em especial com Antônio Pitanga que quase me arrancou lágrimas – o veterano ator interpreta um homem velho que vive num local muito afastado do interior, numa casinha de madeira sem um prato para comer, mas com um estoque considerável de cachaça. Já o personagem de Rodger Rogério é fascinante, tanto como alguém que almeja a posição de capanga, quanto como uma pessoa que não teve amor de verdade na vida.

OESTE OUTRA VEZ tem o seu próprio tempo, o seu respiro, e nem por isso deixa de ser eletrizante e de ter também um senso de humor muito próprio. Então, ao mesmo tempo que nos solidarizamos com os personagens, também rimos de certos atos, do ridículo de suas ações. Sem falar nas surpreendentes cenas de ação e tiroteio. E do arrepio que é sair do cinema ao som de um poderoso clássico da música popular.

Um dos melhores filmes brasileiros dos últimos dez anos, certamente. Vou querer ver de novo, até porque a cópia exibida estava com falha e ainda rolou em "letterbox". Ou seja, perdeu-se um pouco a glória do scope em toda sua plenitude. Um filme como esse merece o melhor tratamento possível. E também o carinho e a atenção do público.

+ DOIS FILMES

O AUTO DA COMPADECIDA 2

O começo de O AUTO DA COMPADECIDA 2 (2024) já denuncia certa estranheza, pela proposta de Guel Arraes, agora dividindo a direção com Flávia Lacerda, de usar uma direção de arte mais de estúdio, mais artificial na apresentação das casas, dos carros e até da vegetação. É como se fosse uma espécie de volta às origens dos personagens de Ariano Suassuna, já que eles nasceram para o teatro. Eu mesmo tive a sorte de ver na década de 1990, no Teatro do IBEU, uma montagem da peça e fiquei muito impressionado, especialmente com a construção do cenário do pós-morte. Com o grande sucesso da minissérie de 1999 que depois virou filme para cinema em 2000 e com uma inexistência de uma história escrita por Suassuna, ficou o temor de se mexer em coisa que não se devia. Mas acredito que Arraes e os outros roteiristas souberam captar a essência dos personagens e trazer coisas muito interessantes e novas, como a personagem de Fabíula Nascimento, filha do coronel vivido por Humberto Martins, e também Luiz Miranda. Na trama, João Grilo (Matheus Nachtergaele) retorna a sua cidade depois de vinte anos distante e encontra seu amigo Chicó (Selton Mello) vivendo de uma mitologia que ele criou de sua morte e ressurreição. O filme também faz uma boa crítica ao sistema político corrupto, sem que pareça um filme cabeçudo. Na verdade, a intenção deste trabalho é mesmo conquistar pessoas de todas as idades - na sessão em que estivemos, lotada, havia crianças rindo com frequência das presepadas dos personagens. Muito bom também o retorno de Virginia Cavendish, a Dona Rosinha, que havia se casado com o Chicó no primeiro filme e que ressurge com um aceno ao feminismo. Senti que faltou ao filme um pouco de respiro, já que os diálogos rápidos praticamente não dão trégua. Além do mais, talvez tenha faltado uma ideia melhor por parte dos roteiristas para repetir a ida de João Grilo ao pós-morte. Do jeito que ficou, é um mais do mesmo com algumas mexidas nos cenários, que ficaram ainda mais despojados (mais teatrais, nesse sentido). De todo modo, foi uma alegria ver esse retorno do grande público aos filmes brasileiros. Bom demais também perceber que a química entre os dois protagonistas continua muito boa.

UM MUNDO MISTERIOSO (Un Mundo Misterioso)

O nome de Rodrigo Moreno jamais estaria no meu radar se não fosse a grata surpresa de ver no cinema o excelente OS DELIQUENTES (2023). Eis que a Mubi traz dois outros filmes do realizador argentino em seu cardápio e um deles é este UM MUNDO MISTERIOSO (2011), bem mais modesto que seu mais recente trabalho. O protagonista é o mesmo Esteban Bigliardi de seu filme mais famoso, um ator de rosto tão familiar quanto bobo, e por isso perfeito para o papel do sujeito que leva um pé na bunda da namorada e fica à deriva pelo mundo, sem saber direito o que fazer. Certo dia, ela diz que precisa de um tempo. De quanto será esse tempo, ela não sabe dizer, mas ele é logo convidado a ir embora e se instala em um hotel humilde e barato. Um dos grandes baratos do filme está no quanto Moreno valoriza os "tempos mortos", que aqui não são tão estendidos quanto em OS DELIQUENTES, mas se percebe muito bem, especialmente nas cenas do protagonista com um carro velho, principalmente mais perto do final, na oficina. Essa valorização de não ter que dizer nada supostamente importante ou de não ter que ir a lugar nenhum é falado verbalmente por um dos coadjuvantes numa livraria. Não é novidade um diretor sair da linha de uma narrativa clássica, mas de vez em quando isso precisa ser enfatizado. Por mais que todos nós amemos boas histórias, alguém precisa destacar que o cinema tem regras próprias e liberdades são bem-vindas.