De FÉ CORROMPIDA (2017) para cá, Paul Schrader parece querer provar ser um dos maiores da Nova Hollywood, já que não recebeu a mesma consideração e o mesmo louvor que seus colegas, em especial aquele que mais se aproxima dele, até por terem trabalhado juntos, Martin Scorsese. O que, aliás, é compreensível, já que Schrader, mesmo sendo roteirista de TAXI DRIVER – MOTORISTA DE TÁXI (1976), TOURO INDOMÁVEL (1980) e A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO (1988), três filmes muito queridos de Scorsese, fica naquela posição de bastidores, como se não fosse tão autor desses trabalhos quanto o próprio diretor. (Eu mesmo tenho um monte de lacunas de Schrader para preencher e espero encontrar tempo para resolver essa pendência.)
TAXI DRIVER, em especial, ao ser colocado perto dessa nova trilogia, por assim dizer, formada por FÉ CORROMPIDA, O CONTADOR DE CARTAS (2021) e o objeto de nossa discussão de hoje, JARDIM DOS DESEJOS (2022), tem se mostrado presente nos textos a respeito da autoria de Schrader, no que ele tem chamado de filmes de profissão, filmes de ofício. Assim como nos dois filmes anteriores, o protagonista escreve e mantém um diário, o que é outra marca que novamente remete a DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA, de Bresson. Mas o personagem escreve mais sobre sua especialidade. Seu passado neonazista surge em flashes rápidos, como que para assombrá-lo.
Esses novos trabalhos, que trazem uma homenagem mais explícita ao mestre francês Robert Bresson, acabaram por trazer mais luz para seu cinema, que nunca deixou de ser brilhante, mas que ficou um pouco mais apagado nas décadas de 1990-2000. JARDIM DOS DESEJOS é outro em que o personagem é definido pela profissão. Não mais um padre, não mais um especialista em jogos de azar (e não mais um motorista de táxi), mas um jardineiro, alguém que tem como uma de suas qualidades a paciência de ver as flores nascerem, crescerem e adornarem os espaços, como é o caso da mansão da personagem de Sigourney Weaver, uma mulher que acredita que está no fim da vida e tem como eventual amante e profissional talentoso seu próprio jardineiro, vivido por Joel Edgerton.
Logo no começo do filme, ela apresenta uma situação para ele resolver, alguém que virá (uma sobrinha-neta) e a quem ele, o jardineiro-mestre, deverá ensinar seus conhecimentos. Logo também saberemos do passado desse homem, um passado nada tranquilo, um passado que está literalmente marcado em sua pele. E esse passado é incômodo também a nossos olhos: as marcas mais assustadoras trazem suásticas e louvores à supremacia branca. Ou seja, herói do filme é esse homem que tem essas marcas abjetas na pele, que costuma esconder por debaixo das roupas.
Do ponto de vista visual, adoro como Schrader faz da tela uma pintura colorida, cheia de flores, desde os créditos iniciais, de como ele, pacientemente, vai construindo a relação de aproximação entre Edgerton e a jovem Quintessa Swindell, de como, perto do final, mais uma vez ele apresenta uma experiência transcendental do amor e do sexo usando simbolismos.
Mas eu diria que a grande beleza de JARDIM DOS DESEJOS (acabei gostando bastante do título brasileiro) está no modo como se trata também de um filme sobre perdão, sobre redenção, ainda que torto à maneira do diretor. Como aquela moça negra (ou mestiça) que se apaixona por ele poderia perdoá-lo ou aceitá-lo com aquelas imagens tatuadas em sua pele? O contato com a natureza parece uma espécie de tentativa de remissão de pecados do personagem: depois de matar pessoas movido ao ódio no passado, hoje ele busca o contato com a terra, que ele cheira com gosto, busca embelezar o jardim de uma mulher mais velha, que também nutre fortes sentimentos de atração por ele, embora prefira mantê-lo na posição de subalterno.
Já a garota mais jovem, ao namorar um traficante bem violento e ser dependente química, também encontra na figura daquele homem uma salvação. Certamente não é um filme que agrada a todos os públicos pela complexidade desses personagens ou pelo fato de que não é todo mundo que perdoa neonazista. Mas Schrader ama esses personagens cheios de falhas e pecados, como amou figuras violentas como o motorista de táxi e o boxeador dos filmes de Scorsese. Além do mais, assim como em FÉ CORROMPIDA, o modo como o diretor e roteirista apresenta a glória do sexo com amor como uma espécie de experiência de iluminação, é coisa linda de Deus. Schrader segue se mostrando um gigante da Nova Hollywood que já foi subestimado. Mas não mais. Pelo menos não deveria ser.
P.S.: A revista Sight and Sound de junho de 2023 traz cinco listas de votos de Schrader para sua tradicional votação de melhores filmes de todos os tempos. Deixo aqui o ranking dele de 2022 (na revista, consta também seus votos em 1972, 1992, 2002 e 2012).
PICKPOCKET (Bresson, 1959)
ERA UMA VEZ EM TÓQUIO (Ozu, 1953)
PERSONA (Bergman, 1966)
A REGRA DO JOGO (Renoir, 1939)
O CONFORMISTA (Bertolucci, 1970)
UM CORPO QUE CAI (Hitchcock, 1958)
MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (Peckinpah, 1969)
METRÓPOLIS (Lang, 1927)
O PODEROSO CHEFÃO (Coppola, 1972)
AS TRÊS NOITES DE EVA (Sturges, 1941)
+ TRÊS FILMES
A MUSA DE BONNARD (Bonnard – Pierre et Marthe)
Martin Provost não é um cineasta dos mais prestigiados, mas tem feito filmes que têm alcançado os circuitos internacionais e sempre com um elenco classe A, como foram os casos de O REENCONTRO (2017) e A BOA ESPOSA (2020). Este seu mais novo trabalho, A MUSA DE BONNARD (2023), conta com um dos melhores atores do cinema francês contemporâneo, Vincent Macaigne, que interpreta o pintor Pierre Bonnard. Cécile De France (que já tem no currículo trabalhos com os irmãos Dardenne, Clint Eastwood, Catherine Corsini, Emmanuel Mouret e até Wes Anderson) interpreta sua companheira e também sua musa em diversos trabalhos importantes. O que me deixou pouco empolgado com o filme, digamos assim, foi o modo como ele pintou a personagem, de uma maneira que não a torna tão querida da audiência. As próprias falas para a personagem não são as melhores e acabam estereotipando a mulher dentro do relacionamento. Gosto quando entra em cena Stacy Martin, como o pivô de uma traição, mas depois isso não é muito bem desenvolvido e acaba por se mostrar apenas necessária para o enredo. É como se faltasse ao filme mais coração. De todo modo, gosto muito de como a fotografia valoriza a natureza e os ambientes interiores. Isso ajuda um bocado em nossa relação de prazer com o filme. A propósito, gostei da projeção e do som da sala 2 do Cine Del Paseo.
MEU SANGUE FERVE POR VOCÊ
Muito legal ter a oportunidade de registrar uma história de amor tão bonita e tantas vezes contada pelo próprio Sidney Magal, agora em formato de ficção para os cinemas. Pena que o resultado em MEU SANGUE FERVE POR VOCÊ (2023) tenha sido um tanto insatisfatório, embora em nenhum momento deixe de ser um filme interessante em suas imperfeições. Inclusive, a coisa que mais funciona no filme é a relação que se estabelece entre dois personagens coadjuvantes. Sempre que eles se encontram sozinhos o filme ganha, em parte porque há química no casal, em parte porque o diretor Paulo Machline e os roteiristas parece saírem um pouco das amarras da história principal, que conta da paixão que o cantor tem por uma jovem de Salvador, em sua passagem pela cidade. Na época, 1979, Sidney Magal era um dos cantores mais populares do país e, por mais que alguns taxassem sua música de brega, há algo de muito especial em sua interpretação e em algumas canções memoráveis, em especial, a que dá título ao filme, que tantas vezes fez minha alegria na infância. Só hoje soube se tratar de uma versão brasileira de uma canção argentina de 1971. O filme perde a chance de brilhar justamente na execução dessa canção, assim como vai perdendo várias chances ao longo da narrativa, talvez por inexperiência do casal de protagonistas, ou talvez pela falta de um roteiro melhor elaborado. Não deixem de ver nos créditos finais uma participação muito especial de Emanuelle Araújo (AOS VENTOS QUE VIRÃO), que no filme faz o papel da mãe de Magali, o grande amor da vida de Magal. O interesse do filme por criar uma espécie de musical inspirado nos clássicos de Hollywood é boa e às vezes funciona, como na cena em que Caco Ciocler canta (e dança) uma certa canção de Johnny Hooker.
TUDO OU NADA (Rien à Perdre)
Um filme que deve muito à interpretação intensa de Virginie Efira, grande atriz que tem se dedicado a uma carreira de papéis bem diferentes uns dos outros e demonstrado o quanto sua versatilidade eleva as obras em que protagoniza. TUDO OU NADA (2023), primeiro trabalho de ficção no cinema de Delphine Deloget, carrega elementos do documentário que ajudam a passar mais realismo e crueza ao drama da mãe que tem seu filho mais novo tirado de si e que se vê num pesadelo kafkiano que vai ganhando proporções maiores ao longo da trama. É impressão minha ou o cinema francês tem dado espaço a obras que retratam a rotina de pessoas de classes menos desfavorecidas da sociedade? Gosto bastante do final.
ERA UMA VEZ EM TÓQUIO (Ozu, 1953)
PERSONA (Bergman, 1966)
A REGRA DO JOGO (Renoir, 1939)
O CONFORMISTA (Bertolucci, 1970)
UM CORPO QUE CAI (Hitchcock, 1958)
MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (Peckinpah, 1969)
METRÓPOLIS (Lang, 1927)
O PODEROSO CHEFÃO (Coppola, 1972)
AS TRÊS NOITES DE EVA (Sturges, 1941)
+ TRÊS FILMES
A MUSA DE BONNARD (Bonnard – Pierre et Marthe)
Martin Provost não é um cineasta dos mais prestigiados, mas tem feito filmes que têm alcançado os circuitos internacionais e sempre com um elenco classe A, como foram os casos de O REENCONTRO (2017) e A BOA ESPOSA (2020). Este seu mais novo trabalho, A MUSA DE BONNARD (2023), conta com um dos melhores atores do cinema francês contemporâneo, Vincent Macaigne, que interpreta o pintor Pierre Bonnard. Cécile De France (que já tem no currículo trabalhos com os irmãos Dardenne, Clint Eastwood, Catherine Corsini, Emmanuel Mouret e até Wes Anderson) interpreta sua companheira e também sua musa em diversos trabalhos importantes. O que me deixou pouco empolgado com o filme, digamos assim, foi o modo como ele pintou a personagem, de uma maneira que não a torna tão querida da audiência. As próprias falas para a personagem não são as melhores e acabam estereotipando a mulher dentro do relacionamento. Gosto quando entra em cena Stacy Martin, como o pivô de uma traição, mas depois isso não é muito bem desenvolvido e acaba por se mostrar apenas necessária para o enredo. É como se faltasse ao filme mais coração. De todo modo, gosto muito de como a fotografia valoriza a natureza e os ambientes interiores. Isso ajuda um bocado em nossa relação de prazer com o filme. A propósito, gostei da projeção e do som da sala 2 do Cine Del Paseo.
MEU SANGUE FERVE POR VOCÊ
Muito legal ter a oportunidade de registrar uma história de amor tão bonita e tantas vezes contada pelo próprio Sidney Magal, agora em formato de ficção para os cinemas. Pena que o resultado em MEU SANGUE FERVE POR VOCÊ (2023) tenha sido um tanto insatisfatório, embora em nenhum momento deixe de ser um filme interessante em suas imperfeições. Inclusive, a coisa que mais funciona no filme é a relação que se estabelece entre dois personagens coadjuvantes. Sempre que eles se encontram sozinhos o filme ganha, em parte porque há química no casal, em parte porque o diretor Paulo Machline e os roteiristas parece saírem um pouco das amarras da história principal, que conta da paixão que o cantor tem por uma jovem de Salvador, em sua passagem pela cidade. Na época, 1979, Sidney Magal era um dos cantores mais populares do país e, por mais que alguns taxassem sua música de brega, há algo de muito especial em sua interpretação e em algumas canções memoráveis, em especial, a que dá título ao filme, que tantas vezes fez minha alegria na infância. Só hoje soube se tratar de uma versão brasileira de uma canção argentina de 1971. O filme perde a chance de brilhar justamente na execução dessa canção, assim como vai perdendo várias chances ao longo da narrativa, talvez por inexperiência do casal de protagonistas, ou talvez pela falta de um roteiro melhor elaborado. Não deixem de ver nos créditos finais uma participação muito especial de Emanuelle Araújo (AOS VENTOS QUE VIRÃO), que no filme faz o papel da mãe de Magali, o grande amor da vida de Magal. O interesse do filme por criar uma espécie de musical inspirado nos clássicos de Hollywood é boa e às vezes funciona, como na cena em que Caco Ciocler canta (e dança) uma certa canção de Johnny Hooker.
TUDO OU NADA (Rien à Perdre)
Um filme que deve muito à interpretação intensa de Virginie Efira, grande atriz que tem se dedicado a uma carreira de papéis bem diferentes uns dos outros e demonstrado o quanto sua versatilidade eleva as obras em que protagoniza. TUDO OU NADA (2023), primeiro trabalho de ficção no cinema de Delphine Deloget, carrega elementos do documentário que ajudam a passar mais realismo e crueza ao drama da mãe que tem seu filho mais novo tirado de si e que se vê num pesadelo kafkiano que vai ganhando proporções maiores ao longo da trama. É impressão minha ou o cinema francês tem dado espaço a obras que retratam a rotina de pessoas de classes menos desfavorecidas da sociedade? Gosto bastante do final.
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