terça-feira, outubro 31, 2023
ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES (Killers of the Flower Moon)
Tive que assistir a ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES (2023) duas vezes no cinema. Digo “tive” não no sentido de ser obrigado. Ninguém é obrigado a nada. A questão é que na primeira vez que vi o filme estava num estado de sono que me deixava com a mente nublada, embora eu não tenha de fato dormido em nenhum momento. A crise alérgica, que provoca uma sonolência muito particular, já estragou muitas sessões minhas. E olha que tento de tudo: muita cafeína, extrato de própolis, sucos que ajudam a aumentar a temperatura corporal (uva e laranja) e até uma refeição dentro da própria sala de cinema (um sanduíche ou um calzone). Às vezes funciona, viu? Lembro que antigamente chegava a levar dentes de alho para ficar mordendo, e o cheiro empestava o ambiente. Depende de uma série de coisas, sendo que uma delas é o horário do dia e outra é o contato com o ar condicionado. E eu havia conseguido o ingresso muito cedo e perambulei por horas no shopping Iguatemi para ver o filme na sala IMAX (o que significou mais tempo respirando no ar condicionado).
Aliás, um pequeno adendo: vi o filme na sala IMAX, mas não se trata de uma obra que se destaca especificamente nessa sala. Na verdade, as imperfeições da cópia, com uma imagem meio lavada, acabaram me incomodando um pouco. Isso é um problema que tenho percebido em alguns desses filmes feitos pensando inicialmente no lançamento em streamings. Para o lançamento nos cinemas, podiam ter pensado numa cópia de melhor qualidade. Nem precisaria ser em 4K, não. Isso acaba prejudicando a apreciação da fotografia de Rodrigo Prieto.
Essa coisa de rever um filme num intervalo de tempo pequeno (uma semana, por exemplo) nem sempre é algo tão positivo, embora eu tenha, sim, tido alguns exemplos muito positivos em minha história de cinéfilo – lembro, por exemplo, de A VILA, de M. Night Shyamalan, de MAGIA AO LUAR, de Woody Allen, e das três vezes que vi PARAÍSO PERDIDO, de Monique Gardenberg, e, mais recentemente, de CAPITU E O CAPÍTULO, de Júlio Bressane. Sem falar nas experiências que fiz questão de repetir com meus amigos na aurora da minha cinefilia, como UMA NOITE ALUCINANTE, de Sam Raimi, e CORRA QUE A POLÍCIA VEM AÍ, do trio Zaz.
O problema é que ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES tem a duração como um fator que pode depor contra a apreciação mais ligada ao prazer da obra. Nessa segunda vez, senti mais o peso do tempo, assim como senti ainda mais o sentimento de impotência com a questão dos indígenas – há uma série de filmes brasileiros que tratam dessas questões que me deixam muito triste, inclusive me privando de ter raiva, sentimento que provoca mais ação que a tristeza. É sempre uma história de covardia. O filme do Scorsese me fez lembrar, inclusive, de CREPÚSCULO DE UMA RAÇA, de John Ford, um pedido de desculpas do cineasta após tantos westerns mostrando os nativos americanos como vilões.
Scorsese, como bom escorpiano, gosta de histórias de perdas, de amores envenenados, de pessoas consumidas pela culpa e perdidas nos abismos mais profundos de suas almas, de injustiças. Hoje eu vejo que até um filme mais juvenil como A INVENÇÃO DE HUGO CABRET (2011) também se encaixa nessa categoria – não se trata apenas de um filme sobre uma homenagem, uma declaração de amor ao cinema. Quando o personagem de Leonardo DiCaprio se vê, ao final, frente à pergunta definitiva de sua esposa, vivida por Lili Gladstone, ele percebe que ainda terá que conviver com a culpa por muito mais tempo, guardando semelhança com o personagem de Robert De Niro em O IRLANDÊS (2019), inclusive.
Como alguém que gosta de chafurdar a lama da história americana, sendo GANGUES DE NOVA YORK (2002) um outro exemplo, Scorsese nos apresenta também, ainda que indiretamente, em rápidas pinceladas, aos crimes cometidos contra os negros, assim como a influência política da Ku Klux Klan e da maçonaria nos destinos do país. Aliás, é por isso que a extrema direita é tão difícil de combater: ela estava desde o início na construção desse país.
Ver um filme do Scorsese tendo recepção semelhante a obras mais pop não deixa de ser muito bom. 2023, inclusive, está trazendo algumas surpresas, com filmes de super-heróis quebrando a cara, enquanto certos filmes de autor conseguem uma recepção muito boa, por mais que estejamos falando de obras com um investimento em marketing gigante, como foi o caso de BARBIE, de Greta Gerwig, e de OPPENHEIMER, de Christopher Nolan. Afinal, os filmes da Marvel e da DC também não investem horrores em propaganda?
Ter um filme de três horas e meia lotando uma sala grande e com os espectadores todos ali quietinhos e acompanhando bonitinho a sessão, nessa era de vídeos curtos e vícios em redes sociais quase inúteis, é um alívio. Representativo disso é a cena em que a personagem de Lily Gladstone pede para que o personagem de Di Caprio pare tudo o que está fazendo para ouvirem a tempestade.
Na trama, a tribo Osage, que hoje, depois de ter perdido um imenso território, vive num condado no estado de Oklahoma, sofre a opressão do estado americano. Após várias tratativas, a tribo resolve ficar com um pedaço de terra muito ruim. Acontece que é nesse pedaço de terra que eles encontram petróleo e ficam muito ricos. Com o tempo, são os brancos que passam a ser empregados deles, enquanto eles se vestem com roupas caríssimas e frequentam os melhores espaços da sociedade. O problema é que os brancos não iam largar o osso e logo eles se aproximam da tribo e arranjam casamentos com mulheres indígenas, como forma de enriquecimento. A morte de centenas de pessoas dessa etnia começa a se tornar comum. Além das doenças que o homem branco trouxe, havia uma aparente predisposição dos Osage de viverem até mais ou menos os 50 anos.
Depois do prólogo, com a imagem dos Osage descobrindo o petróleo, algo que se tornaria uma maldição para eles, o filme começa com imagens que simulam pequenos documentários, para em seguida nos mostrar Ernest Burkhart (Di Caprio) chegando de trem e conhecendo o vasto território que fica próximo das reservas de petróleo. Lá habita o autodenominado “Rei” William Hale (Robert De Niro), um homem que conquistou a confiança dos Osage, mas que logo vemos se tratar de uma raposa. E dessas pessoas que usam palavras de conforto cristãs e aprendem a língua daqueles que pretende destruir aos poucos, como um câncer comendo por dentro.
Ernest é um sujeito muito mais burro que malvado, embora essas duas "qualidades" costumem andar juntas. Está muito longe do ardiloso "King", um homem que representa o que se costuma chamar de "progresso", quando os nomes mais apropriados para o que ele faz são genocídio, estupro e destruição. O casamento de Ernest com a osage Mollie (Lilly Gladstone) aconteceria tanto pelo fato de que ambos se gostavam, quanto por questões envolvendo dinheiro, e muito bem acordado com William Hale. Aos poucos, a mãe e as irmãs de Mollie começam a morrer, de doença ou assassinato. E isso fará com que o incipiente FBI comece a investigar o caso. O livro homônimo em que o filme se baseia, de autoria de David Grann, é mais centrado nas investigações do FBI do que nos personagens que o filme explora. A mudança de ponto de vista acabou sendo uma decisão com a cara de Scorsese, que lida como ninguém com essa descida aos infernos de pessoas que adentram o mundo do crime ou enfrentam a morte como vítimas.
+ DOIS FILMES
A NOITE DAS BRUXAS (A Haunting in Venice)
Não sou muito fã de whodunits, ainda mais os que não passam de pequenos jogos racionais que convidam o público a adivinhar quem é o assassino. Mas gostei deste A NOITE DAS BRUXAS (2023). Kenneth Branagh, depois da pataquada que foi MORTE NO NILO (2022), fez certo em não desistir do personagem Hercule Poirot, especialmente ao trazer uma história que traz toques de horror gótico bem acentuados, um pouco de elegância (o que é aquele castelo que serviu de locação, meu Deus?!) e um pouco de vulgaridade charmosa, que até me fez lembrar o cinema de gênero italiano (em especial em determinada cena com Kelly Reilly). O filme surpreende, pois há determinados momentos em que também passamos a questionar a tal da racionalidade como forma de explicar todas as coisas, tão defendida por Poirot. Branagh opta por recursos visuais que saltam aos olhos, como os ângulos de câmera diferentes, ora de cima, ora de baixo. Como se trata de um filme com muitas falas (e que cansa um pouco lá pelo final), tentar fazer uma montagem mais dinâmica às vezes ajuda, mas às vezes contribui com o cansaço. Ainda assim, pelo charme, pelo belo elenco, por aquela locação maravilhosa e pelos toques de horror, Branagh faz seu melhor filme desde HAMLET (1996). Não que seja algo tão bom quanto, claro. Afinal, o diretor e ator já havia perdido a mão há um bom tempo. Foi ótimo ter visto numa sala IMAX: valorizou bastante os cenários e tudo o mais.
RESISTÊNCIA (The Creator)
Quarto longa-metragem de Gareth Edwards, RESISTÊNCIA (2023) é visualmente bonito e isso ajuda a chamar a atenção da audiência, junto com a trama intrigante envolvendo uma guerra entre humanos e robôs de alta inteligência no ano de 2060. John David Washington (INFILTRADO NA KLAN) é uma grande aquisição como um agente duplo, um homem com uma prótese no braço e outra na perna, apaixonado pela líder da resistência da I.A. (Gemma Chan, ETERNOS). O filme sofre com a longa duração, com um ritmo problemático e um final desinteressante. Algo que eu gosto é o modo como os robôs se comportam fisicamente, sendo tão frágeis quanto os humanos quando alvejados com armas. Isso faz que eles se pareçam mais com pessoas desabrigadas ou outra minoria social. Infelizmente o filme também não consegue emocionar quando a intenção é essa e em certo momento bate uma saudade de A.I. – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, ficando claro que Edwards está longe demais de ser um Spielberg.
sexta-feira, outubro 27, 2023
O ASSASSINO (The Killer)
Cineasta surgido do mundo dos videoclipes, então em alta, assim como Jonathan Glazer, Spike Jonze e Michel Gondry, David Fincher, quando estreou no cinema, com ALIEN 3 (1992), pouco se esperaria que se tornasse um dos mais importantes cineastas “nascidos” naquela década catártica. Fincher está de volta com um filme minimalista, de certa forma surpreendente numa carreira em que o diretor privilegiou as ambientações – talvez o filme mais próximo deste novo seja O QUARTO DO PÂNICO (2002), por se passar num único lugar. No caso deste novo O ASSASSINO (2023), ele se passa em vários lugares, mas esses lugares são muito pouco explorados. E isso é feito de forma deliberada.
Não vejo isso como um problema. Na verdade, é um dos charmes do filme, que não deixa de exibir o virtuosismo do cineasta e ainda trazer uma trama que pode servir como uma alegoria da própria atividade do cineasta, de sua busca pela perfeição e de como às vezes é aquilo que sai dos trilhos que acaba fazendo a diferença e trazendo mais humanidade para o projeto. No caso do assassino sem nome vivido por Michael Fassbender, o erro de ter atirado na pessoa errada durante uma de suas operações faz com que o filme exista e pulse.
Quem se incomoda um pouco com narrações em voice-over pode não gostar tanto assim do filme, que tem a voz metódica interior do protagonista muito presente. Ao longo da narrativa, ouvimos seu "mantra" diversas vezes: “atenha-se ao plano; não tenha empatia; antecipe, não improvise” etc. Isso deixa claro um posicionamento frio diante da vida e uma frieza necessária para a execução de seus planos. Acontece que o erro (humano) do personagem é o que faz o espectador se aproximar dele: fugir de moto sem que seja pego pela polícia, respirar ofegantemente e procurar não deixar rastros. Nessas sequências mais tensas se destaca a trilha sonora da dupla Trent Reznor e Atticus Ross, parceiros do cineasta desde A REDE SOCIAL (2010). Inclusive, a dupla costuma se engrandecer nos trabalhos com Fincher.
Não vai demorar muito para o filme estar disponível para mais espectadores na Netflix, mas poder vê-lo no cinema não tem preço. (São poucas as cidades brasileiras que o estão exibindo nos cinemas e fico feliz que Fortaleza seja uma delas.) É David Fincher afiadíssimo e fazendo aquilo que sabe tão bem: o filme criminal. Trata-se do melhor trabalho do diretor desde GAROTA EXEMPLAR (2014) – se bem que entre um e outro só houve trabalhos para a televisão, como a excelente e saudosa MINDHUNTER (2017-2019), e o divisivo e ambicioso MANK (2020).
Em O ASSASSINO, a onipresença de Fassbender não tira o brilho dos coadjuvantes nos momentos em que ele contracena com eles. Até a nossa Sophie Charlotte, quase irreconhecível, tem uma atuação muito boa na cena do hospital. Há um ator pouco conhecido e aparentemente estreante (Gabriel Polanco), que faz um taxista, e tem seu momento de brilho. Mas nada como a cena em que Fassbender dialoga com Tilda Swinton num restaurante. Fincher fez bem em valorizar uma atriz tão genial.
Tudo no filme é de tirar o chapéu: a condução, a fotografia, a direção de arte e até uma coreografia de luta (numa cena que me deixou impressionado). Baseado na graphic novel The Killer, de Alexis Nolent e Luc Jacamont, o novo filme parece ser uma das obras menos ambiciosas do diretor, mas, a exemplo de VIDAS EM JOGO (1997), certamente vai estar carinhosamente na lista de favoritos de muitos de seus fãs.
+ DOIS FILMES
NOSTALGIA
Como é bom poder ver um belo filme italiano sem ter que revisitar uma obra de décadas atrás (ou sem que seja um novo Bellocchio ou um novo Moretti). E o barato deste NOSTALGIA (2022), de Mario Martone, é vê-lo sabendo o mínimo possível da trama. Basta saber o que diz a sinopse: o retorno de um homem a Nápoles depois de uma ausência de 40 anos. O diretor Mario Martone, além de saber trabalhar com os sentimentos do protagonista (de saudade, de dor, de confusão), mostra uma Nápoles tão decadente e perigosa que parece um lugar saído de um filme de horror. Inclusive, é até possível lembrar do gênero em certos momentos. A beleza plástica é outro destaque, com momentos que parecem remeter a pinturas clássicas, como a cena em que o protagonista carrega a mãe nos braços para dar-lhe um banho, ou outro momento muito importante, na igreja, com a câmera só revelando o ocorrido aos poucos. Uma bela surpresa que infelizmente está sendo pouco vista em nossos cinemas e merece a nossa atenção.
TERRA DE DEUS (Vanskabte Land / Volaða Land)
Acho corajosos esses filmes que trazem um protagonista antipático logo de cara, o que já nos deixa torcendo mais para a natureza do que para ele ou qualquer personagem humano no caso deste aqui. Mas TERRA DE DEUS (2022), de Hlynur Pálmason, talvez seja um filme mais interessado numa visão um pouco distanciada por parte do espectador. Nisso, acho fascinante sua primeira metade, principalmente, que mostra o difícil percurso que o padre faz de uma ponta a outra da Islândia, passando justamente pela zona não populosa, mais selvagem e terrível. Ou terrivelmente bela. Fazer isso sem falar o islandês, mal sabendo andar a cavalo e sendo frágil demais para aguentar aquele clima nas montanhas da grande ilha vulcânica é muita burrice. A segunda parte do filme é boa, mas talvez a duração tenha prejudicado um pouco meu envolvimento. O antagonista deixa de ser a natureza e passa a ser o próprio vilarejo, principalmente o pai de uma das duas jovens, mas também um velho islandês. Gosto muito da fotografia e da opção elegante pela janela "clássica" (1,33:1), com bordas arredondadas.
quinta-feira, outubro 12, 2023
GUERRA SEM CORTES (Redacted)
Quase duas semanas sem postar neste espaço. Isso me dá uma aflição, que vocês nem imaginam. Gosto de poder publicar, mesmo quando o texto não fica tão bom. Pelo menos eu tive uma boa desculpa no fim de semana passado, já que viajei com a Giselle para Salvador. Uma viagem rápida, mas muito proveitosa e adorável, saindo da rotina ao adentrar uma cultura tão distinta e bela quanto a baiana. Mas vamos de cinema, vamos de Brian De Palma, que essa peregrinação por sua obra está mais longa e preguiçosa do que eu imaginava que seria. Acredito que tudo começou a piorar quando adentrei os anos 2000, quando o cineasta entrou num momento pouco inspirado de sua carreira tão brilhante.
GUERRA SEM CORTES (2007) foi um filme que não foi exibido nos cinemas locais, assim como aconteceu com os outros dois seguintes do realizador. Isso não significa falta de qualidade, não tem nada a ver, mas significa que é algo que diminui as chances de suas obras serem apreciadas e criticadas por uma parcela maior da audiência. Eu já não gostei muito do filme quando o vi na primeira vez (tem texto aqui no blog) e continuo não gostando tanto. Mas é um filme que é bem mais querido pela crítica brasileira do que o anterior, DÁLIA NEGRA (2006), e talvez até mais que MISSÃO: MARTE (2000) e FEMME FATALE (2002) também. Talvez por ser complexo no modo como traz um tom entre o leve e o perturbador diante do que apresenta sobre a Guerra do Iraque.
E é possível encontrar vários caminhos para defender o filme, já que o diretor problematiza a imagem e não deixa de ser fiel a suas próprias obsessões, e ainda teve a coragem de sair do seu lugar esperado de autor de planos elegantes e sincrônicos, de travellings e cortes bem pensados, e geralmente com música quase operística composta por algum grande maestro (Pino Donaggio, Ennio Morricone, Ryuichi Sakamoto, Bernard Herrmann etc). Em GUERRA SEM CORTES, o que vemos são imagens feias, brutas, com aspecto amador, que, claro, tem tudo a ver com a proposta de imagens geradas por não-profissionais.
De Palma volta ao tema do estupro na guerra, bem-sucedido em PECADOS DE GUERRA (1989), mas aqui aproveitando a moda dos found footage movies, que àquela altura já havia cansado um bocado. Em ambos os filmes, as tropas matam uma garota numa tentativa de acobertar o crime anterior. Vejo como um problema o filme não me deixar minimamente interessado pelos personagens, nem os tornar críveis como criaturas supostamente reais. Costuma-se reclamar de 15H17 – TREM PARA PARIS, de Clint Eastwood, e das atuações dos não-atores, mas o velho Clint se saiu muito melhor com seu elenco amador e sua experimentação com sabor de novidade (comparar os dois filmes pode não ser tão inteligente, mas por alguma razão vejo esses dois trabalhos como semelhantes dentro das filmografias de seus realizadores). Não é isso que eu vejo em GUERRA SEM CORTES, por mais que, sendo De Palma, eu comece a relevar e repensar algumas coisas à medida que vou lendo e escrevendo a respeito. Não há como negar isso dos grandes mestres.
Há uma cena que vale destacar: um dos rapazes da companhia, McCoy, encontra-se com seus amigos como um herói amargurado e cheio de traumas de guerra, mas sua tentativa de falar sobre o horror do que viu é vista como uma ação que quebraria o clima de festa e é logo censurada. A fotografia tirada dele sorrindo por encontrar seus amigos é uma evidência da mentira de um documento, da mentira da imagem, algo que parece contrário ao que estamos acostumados a ver na obra do realizador, quando os registros de sons e imagens constituem verdades, como é o caso de UM TIRO NA NOITE (1981) ou de sua própria experiência de vida, quando tirou fotos do pai traindo a mãe em seu consultório médico. Desse modo, funciona também como uma crítica às imagens criadas pelo governo americano para vender a narrativa da invasão ao Iraque por causa das tais armas de destruição em massa. Mas o filme é pessimista quando vemos a pessoa disposta a contar toda a verdade para seus superiores e essa verdade não é aceita, é inconveniente demais.
Diferentemente de PECADOS DE GUERRA, que foi baseado em fatos reais inspirados num artigo publicado na New Yorker em 1969, mas apenas transformados em filme 30 anos depois, GUERRA SEM CORTES foi lançado enquanto a Guerra do Iraque ainda estava “quente” (a guerra durou de 2003 a 2011) e com o intuito de combater as mentiras impostas pelo governo americano. Mentiras que não duraram muito, em tempos de redes sociais. Tanto que quando Paul Greengrass lançou ZONA VERDE em 2010 todas as questões em torno das mentiras das armas de destruição em massa pareciam óbvias e até desinteressantes.
Para um filme de custo tão barato, para os padrões das produções do realizador, apenas 5 milhões de dólares, é de pensar que GUERRA SEM CORTES não obteve prejuízo. Errado: o filme arrecadou nos Estados Unidos apenas U$ 65.000 e no mundo todo apenas U$ 780.000. Ou seja, a tradição do fracasso de bilheteria, comum em grande parte de suas obras, ainda perseguia De Palma.
+ DOIS FILMES
MIRANTE
O debate pós-sessão de MIRANTE (2019), conduzido por Diego Benevides, no Cinema do Dragão, foi bastante frutífero para ajudar a pensar melhor o filme, uma obra de natureza mais experimental, feita ao longo de onze anos, com imagens sempre feitas a partir das janelas do apartamento do diretor, mas que acaba por retratar, de certa forma, a história recente do Brasil até 2018, antecipando, inclusive, os filmes de apartamento, tão comuns durante e após a pandemia. Rodrigo John tem uma carreira no cinema de animação e isso acaba sendo percebido no filme, seja pela própria utilização de stop-motion em certos momentos, mas principalmente pelo uso marcante da música para conduzir suas imagens, que me fizeram recordar das animações antigas que via quando criança. Mas o que me chamou mais a atenção foi a cena em que o diretor tenta conversar via Skype com uma moça e o resultado é semelhante a um filme de David Lynch. E também tem a ver com um tipo de comunicação mais travada que é característico do filme, e é escolha do realizador. Isso gera certo desconforto, mas acredito que a intenção é essa, mesmo.
O MISTÉRIO DE MAYA (Take Care of Maya)
O título original diz mais do que o filme apresenta que o brasileiro, e pensar em seu significado para essa história difícil e dolorida arrepia e emociona. O MISTÉRIO DE MAYA (2023), de Henry Roosevelt, é daqueles documentários de casos reais escabrosos que os americanos estão se especializando em fazer, e que fazem muito bem, embora acabem virando um modelo. De vez em quando, um deles fura a bolha e me interessa, como aconteceu no ano passado com A GAROTA DA FOTO. Aqui temos o caso de uma família lidando com uma doença rara da filha mais nova, uma doença que faz com que ela sinta dores intensas e perca habilidades motoras nos braços e principalmente nas pernas. Como desgraça pouca é bobagem, a menina acaba ficando sob a custódia do estado. Difícil não derramar lágrimas ao acompanhar os desdobramentos do caso. O que dizer da cena do (não) abraço na corte? É pensar e se emocionar.