domingo, novembro 20, 2022
ANJO NEGRO (L’Ange Noir)
Talvez ANJO NEGRO (1994) seja o filme mais diferente da carreira de Jean-Claude Brisseau. Por diferente, digo, diferente do que ele havia realizado até então. E do que realizaria nos anos seguintes, embora já antecipasse um tipo de erotismo de imagens e fetiches que estariam presentes a partir de COISAS SECRETAS (2002). ANJO NEGRO quebrou minhas expectativas por ser, pelo menos de maneira superficial, um filme de crime e investigação. Mas também me surpreendeu por ser uma homenagem explícita a UM CORPO QUE CAI.
Aliás, vale lembrar o quanto alguns ótimos diretores já buscaram o clássico de Alfred Hitchcock para fazer tributos ou quase atualizações. Brian De Palma, com TRÁGICA OBSESSÃO; Paul Verhoeven, com INSTINTO SELVAGEM; David Lynch, com CIDADE DOS SONHOS; Christian Petzold, com PHOENIX. Certamente há mais exemplos que por enquanto desconheço, mas acho lindo quando grandes cineastas se veem na posição de saudar o grande mestre a partir de sua própria poética. A mitologia do mestre do suspense a serviço de novas poéticas.
ANJO NEGRO começa com uma cena impactante: uma mulher loira (a cantora Sylvie Vartan) descarrega a arma em um homem e o mata. Depois disso, uma outra mulher entra em cena para rasgar a roupa da mulher loira, meter-lhe uns tapas e quebrar vários móveis do quarto. Fica claro que a intenção ali é simular uma tentativa de estupro. À medida que a trama vai se desenrolando (e se enrolando também), o advogado vivido por Tchéky Karyo, Paul Delorme, vai descobrindo mais coisas sobre essa mulher por quem ele é apaixonado.
Tudo isso ao som da música poderosa de Jean Musy, colaborador frequente de Brisseau, ao detalhe do coque no cabelo que faz lembrar instantaneamente o citado filme do Hitch, a uma paleta de cores que enfatiza um vermelho lindíssimo, a muitas tomadas externas do carro do advogado que age como detetive, e a uma mulher que esconde sua verdadeira identidade. Ou seja, a inspiração hitchcockiana parece óbvia.
Stephane, a personagem de Vartan, é uma mulher de passado desconhecido. Casada com um juiz respeitado (Michel Piccoli, em participação pequena, mas luxuosa), ela tem como principais figuras em sua casa uma governanta (María Luísa García, a montadora e atriz de vários filmes do diretor) e a jovem filha Cécile (Alexandra Winisky), ambas mulheres que possuem segredos a ser revelados ao longo do filme. Não deve ser à toa que Brisseau usa as principais figuras femininas como dotadas de um grande mistério, na mesma medida que possuem um incrível fascínio e sex appeal. Aliás, há imagens eróticas, de mulheres nuas, que aparecem ao longo da investigação do advogado que surgem como se fossem figuras etéreas. Brisseau, mesmo em uma obra que parece ser mais devedora do cinema de gênero, segue sendo o cineasta que lida com a espiritualidade e a carnalidade com a mesma intensidade.
Se em um dos filmes anteriores do realizador, BODA BRANCA (1990), Brisseau havia explorado os mistérios de uma adolescente, o que dizer de uma mulher adulta, que tem uma história de vida maior? Então, as investigações de Paul e os bilhetes que ele recebe pelo caminho que o direcionam para pessoas que o ajudam a montar o quebra-cabeças têm a intenção de responder às perguntas: quem é Stéphane Feuvrier?, Quem é o homem que ela matou?, O que houve entre eles?, etc. A narrativa que o diretor constrói, herdeira do filme noir clássico americano, é também contaminada por uma câmera que parece ir por um caminho oposto ao da violência explicitada desde o começo.
Embora a violência surja com frequência nas obras de Brisseau, o amor e a espiritualidade acabam vencendo o mal. Em ANJO NEGRO, isso não parece ocorrer. O que permanece puro no filme é o amor dos dois homens por Stéphane, principalmente do marido, que sequer quer saber a verdade sobre ela. Quer apenas ir embora com ela, estar junto dela. Quase como uma sombra do personagem de Bruno Cremer em BODA BRANCA.
Quanto à juventude rebelde, tão comum nas obras de Brisseau, ela comparece sim aqui, mas principalmente perto do final, na figura de Cécile. ANJO NEGRO é provavelmente a produção mais cara do realizador, com direito a Piccoli e aos figurinos luxuosos da protagonista, criados por Christian Dior. No final, assim como acontece em BLACKOUT – SENTIU A MINHA FALTA?, de Abel Ferrara, é a partir de uma imagem em vídeo que o mistério será descortinado. Como se o velho tivesse que ser confrontado pelo novo para que encare, finalmente, a verdade.
Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.
+ DOIS FILMES
I TOUCH A RED BUTTON
Ter um filme "novo" de David Lynch para ver é sempre motivo de alegria. Mesmo quando o filme novo em questão é na verdade um videoclipe. Acontece que Lynch não faz vídeos musicais tradicionais. Quando ele foi convidado para fazer um clipe para a banda Interpol da canção "Lights" talvez os caras da banda nem soubessem que ele entregaria uma animação tão básica e suja, mostrando apenas repetidamente um ser parecido com um monstro apertando um botão vermelho. O botão, aliás, é a única coisa colorida do vídeo. Tudo o mais em I TOUCH A RED BUTTON (2011) é preto, branco e cinza. A canção é muito boa - não conhecia - e tem uma guitarra que segue num crescendo que combina bem com a animação feita por Lynch.
HOLLYSHORTS GREETING
Outro curta especial de David Lynch, este aqui ele fez por ocasião de uma premiação, o Hollyshorts 2008 Visionary Award. Em HOLLYSHORTS GREETING (2008), o diretor apresenta a si mesmo em cenário em preto e branco, mas emulando a red room de TWIN PEAKS (1990-1991), inclusive com a imagem e o som sendo rodados ao contrário, como o anão da série fazia, com um misto de simpatia e horror. Não há muita novidade neste curta e também não creio que o diretor tenha tido a vontade de ser tão inventivo, mas para os fãs é agradável e familiar. E sempre tem algo que a se prestar atenção. Inclusive algo que pode ser a chave para compreender sua obra: quando ele mostra um donut e diz para que olhem para o donut e não para o buraco.
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