quinta-feira, novembro 24, 2022

OS ASSASSINOS (The Killers)



Cada vez eu ando mais confuso com relação aos filmes a que eu realmente assisti, principalmente quando não tenho um registro deles. Na minha cabeça, por exemplo, eu já vi OS ASSASSINOS (1946), de Robert Siodmak, seguido de seu remake homônimo feito para a televisão por Don Siegel em 1964. De todo modo, rever o clássico agora de Siodmak foi como se o visse pela primeira vez. Até porque há um detalhe muito importante, que foi o quanto eu me deixei enganar, assim como o protagonista, pela femme fatale de Ava Gardner, o quanto também caí como um patinho, enfeitiçado por sua beleza arrebatadora, quando tudo, no roteiro, nas falas e até na música do Miklós Rózsa, já deixavam claro que aquela mulher representava a ruína do personagem de Burt Lancaster, assassinado logo no início do filme, e que depois surge como uma espécie de fantasma, a partir dos flashbacks de terceiros. A estrutura desses flashbacks, aliás, faz lembrar CIDADÃO KANE, mas eles são embaralhados em sua ordem cronológica.

Vale lembrar que o filme adaptou o conto de Ernest Hemingway e o fato de o escritor americano ter tirado a própria vida aos 61 anos pode trazer luz para o personagem do Sueco (Lancaster), o cara que, sabendo que está prestes a ser assassinado, fica esperando a morte chegar sem tentar se defender. Ou seja, logo de cara vemos que o filme é sobre desencanto, sobre desistir da vida. E imagino que isso já transpareça no conto de Hemingway. O que os roteiristas (um deles, John Huston, não creditado) tiveram que fazer após a morte do personagem Sueco foi usar muita criatividade para pensar em um grande motivo para esse desencanto do protagonista.

Quando vemos Ava Gardner, porém, tão cheia de beleza, no esplendor dos seus 23 anos, debutando finalmente como estrela em Hollywood, é fácil perceber os motivos desse homem ter caído em desgraça. Claro que não apenas pela beleza pura e simples da mulher, mas, como veremos ao longo dos flashbacks, pelo seu jogo duplo, pela falsidade, crueldade e egoísmo dela (a última cena com a personagem deixa bem claro esse aspecto de sua personalidade).

Interessante que o homem encarregado de investigar o caso, o corretor vivido por Edmond O'Brien, terceiro creditado, acaba tendo muito mais tempo de tela que Gardner e talvez até mais do que Lancaster, mas dá para entender que Lancaster é o protagonista, o dono da história, por assim dizer, ainda que um herói triste, enquanto O’Brien representa uma espécie de um quase espectador, entusiasmado por estar vivendo dentro de uma aventura noir investigativa.

Quanto aos 15 minutos iniciais do filme, que foi o que realmente esteve presente na obra literária de Hemingway, esses instantes são tão impressionantes que tudo o mais que viria a seguir parece menor. A cena é tensa e sufocante, as imagens têm uma beleza plástica de encher os olhos, desde os instantes iniciais, com apenas a sombra dos assassinos se aproximando do estabelecimento, ao som da música que antecipa o tom de ameaça. A cena é tão boa que inspirou o famoso quadro Nighthawks, de Edward Hopper. Além do mais, é importante lembrar que o grande Andrei Tarkóvski fez um curta-metragem no início de sua carreira inspirado no conto de Hemingway também.

Essencial para o ciclo dos filmes noir, OS ASSASSINOS já impressiona pelo preto e branco extremamente contrastante e expressionista e pela já citada trilha sonora carregada de violência e inspiração. Nem todo momento me pegou – acho que a segunda metade do filme tem um problema de ritmo –, mas quando o filme brilha é impressionante. Adoro o momento do encontro de Lancaster com Gardner, da conversa na prisão, do retorno para um novo e perigoso golpe, e de uma das últimas sequências, a do restaurante, que parece um último ato de uma ópera, e é quando o diretor brinca mais com os movimentos de câmera.

Quanto a Robert Siodmak (SILÊNCIO NAS TREVAS, 1946), o homem que é praticamente sinônimo de film noir, trata-se de um dos diretores alemães que fugiram da Europa durante a ascensão do nazismo. A lista de cineastas talentosos vindos da Alemanha nessa época traz nomes de peso como Billy Wilder, Ernst Lubitsch, Max Ophüls e Fritz Lang, e todos contribuíram para esse momento todo especial, para essa nova sensibilidade surgida em Hollywood, advinda tanto do espírito da época, de um mundo mais sombrio devido à eclosão da Segunda Guerra Mundial, quanto da influência do expressionismo alemão na plasticidade da fotografia dos filmes.

OS ASSASSINOS está presente no box Filme Noir Vol. 11, com alguns extras muito bons. Destaque para o que trata da música de Miklós Rózsa. Ver esse pequeno documentário me ajudou a valorizar ainda mais tanto o trabalho do músico quanto o filme em si. O grande cinema é uma arte que deve ser consumida não como fast food, mas como algo a ser degustado e apreciado com atenção, carinho e estudo.

+ DOIS FILMES

OS ANFITRIÕES (American Gothic)

Que filme estranho e assustador este! Que bom que não tinha lido nada a respeito ou visto o trailer (os trailers antigos são ainda mais cheios de spoilers). OS ANFITRIÕES (1987) começa com um grupo de jovens (três casais), cujo avião dá pane e eles acabam ficando presos em uma ilha. A "salvação" é representada por uma velha casa habitada por um casal de idosos e seus estranhos filhos. Um dos grandes méritos do filme é conseguir surpreender mesmo quando já havia mostrado cenas tão bizarras e incômodas. John Hough é um diretor que merece mais atenção. Neste ano vi o seu INCUBUS (1981), um slasher bem diferente. Este aqui, apesar de ser mais "faca na carne", tem um tom de pesadelo muito forte. Tanto que a protagonista é recém-saída de um hospital psiquiátrico e isso acaba fazendo toda a diferença no direcionamento para a conclusão. Rod Steiger e Yvonne De Carlo estão muito bem como esse casal idoso, e até me fizeram lembrar o recente X – A MARCA DA MORTE, de Ti West, ainda que as propostas dos dois filmes sejam bem distintas. Visto no box Slashers VIII.

O MILAGRE (The Wonder)

Eis um filme que tem uma ligação maior, dentro da filmografia de Sebastián Lelio, com DESOBEDIÊNCIA (2017). Ambos lidam com questões morais e com uma visão crítica das religiões que impedem a felicidade das pessoas. Mas O MILAGRE (2022) traz mais mistério em sua trama, que envolve uma menina de nove anos que está, supostamente, há quatro meses sem comer nada e, corre o boato, seria uma espécie de santa da comunidade, numa vila do interior da Irlanda, nos anos 1860. Florence Pugh é a enfermeira contratada para vigiar e prestar eventuais socorres à menina. Uma das forças do filme está nas imagens, seja pela movimentação estilizada da câmera, principalmente nas cenas externas, seja pela expressividade de Pugh, uma das mais talentosas atrizes de sua geração. A direção de fotografia é de Ari Wegner, a mesma responsável pelas lindas imagens de LADY MACBETH (2016), o filme que revelou Pugh para o grande público. O belo uso do azul no figurino da personagem é um elemento em comum em ambos os filmes.

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