A demora na pós-produção e posterior lançamento de PIEDADE (2019), ocorrido apenas no Festival de Gramado, no fim do ano passado, poderia ser um indicativo de que se tratava de uma obra problemática. Não problemática no sentido de cenas polêmicas, como até se poderia esperar de Cláudio Assis, mas de tentar montar uma narrativa satisfatória a partir do material bruto conseguido. Na verdade, porém, Assis teve um AVC após as filmagens e isso foi um dos principais motivos da demora.
Em tempos de pandemia, o filme, que estava programado para lançamento nos cinemas em abril deste ano, está tendo um pré-lançamento online no festival de pré-estreias que o Espaço Itaú de Cinema está promovendo. A esperança dos realizadores e das distribuidoras (e também dos espectadores, claro) é que esses filmes sejam exibidos em salas de cinema assim que possível.
Ainda assim, por mais que possa ser considerada a obra menos inspirada de Assis, seu quinto longa-metragem já carrega a força das realizações de um diretor em pleno domínio de seu ofício, embora seja paradoxal que tenha resultado em um produto irregular.
O curioso é que minha primeira impressão do filme foi suas semelhanças com a trama da telenovela global AMOR DE MÃE: temos uma história de uma mãe em busca de um filho por décadas e temos também a luta contra uma grande e poderosa corporação que tem feito males terríveis ao meio-ambiente. E ainda temos em comum também a participação de Irandhir Santos, que em vez de vilão (como na novela) aparece aqui como Omar, o filho atencioso de Dona Carminha (Fernanda Montenegro).
Quem aparece invicto como parceiro eterno de Assis é Matheus Nachtergaele, que interpreta Aurélio, o representante da Petrogreen, empresa interessada em comprar/indenizar o terreno onde fica o bar de Dona Carminha, à beira-mar. Tanto por causa da poluição quanto por constantes ataques de tubarão, o pequeno comércio tem sido obrigado a comprar peixe em outro lugar para poder sobreviver.
Aliás, é curioso como o filme parece apontar no início para uma luta dos jovens contra a megacorporação através de ações cibernéticas, mas isso acaba se dissipando. O que se torna mais importante é a questão familiar, que parece ter muito mais de Hilton Lacerda, um dos roteiristas, do que do próprio Assis. Lembrando que uma relação carinhosa entre pai e filho já havia sido mostrada em um trabalho recente de Lacerda, FIM DE FESTA (2019), que conta pontos a favor por mostrar cenas muito mais bonitas entre pai e filho em momentos em que um misto de tranquilidade e melancolia se apresenta. Em PIEDADE, o pai e o filho são Sandro (Cauã Reymond) e Marlon (Gabriel Leone).
O filho acompanha os pais no negócio, um cinema pornô com cabines eróticas, que faz algum sucesso para o público masculino da cidade fictícia. Ecos de BAIXIO DAS BESTAS (2006), o filme mais intenso de Assis, se fazem presentes neste lugar, tanto por uma exibição em película na sala do filme em si (a controversa cena de gang bang/estupro coletivo com Dira Paes), quanto pela utilização de um plongée do ambiente somado a uma luz vermelha que cita o referido filme de Assis. Imagens de cartazes de filmes exploitation da época da Boca do Lixo também estampam o espaço, enfatizando um ar de decadência.
Um dos destaques positivos do filme é a bela fotografia, a cargo de Marcelo Durst, que havia trabalhado com Assis em BIG JATO (2016). A beleza das cores é de dar gosto, assim como as movimentações de câmera - podemos destacar a reunião da comunidade para definir a aceitação ou não dos termos da corporação, com a opção do cineasta por ir mostrando aos poucos a quantidade de pessoas presentes.
Talvez o momento mais problemático do filme sejam as cenas de sexo. Talvez Assis tenha ficado um pouco desconfortável em filmar sexo homossexual - em especial em uma cena no hotel. Quem sabe se ele resolvesse codirigir o filme com Hilton Lacerda o resultado fosse mais positivo nesse sentido.
A narrativa também se prejudica de certos buracos nas ações, dando a impressão de que muita coisa ficou na sala de montagem. Ainda assim, o desfecho um tanto brusco tem a sua beleza, e a única cena de Cauã com Fernanda Montenegro tem um brilho singular. Assim, por mais que estejamos diante de um filme cheio de imperfeições, ainda assim é uma obra fundamental especialmente para os apreciadores do cinema de Cláudio Assis. Inclusive, o filme é dedicado à mãe do cineasta. Assim, nada como trazer Fernanda Montenegro em toda sua glória para personificar a imagem de uma matriarca querida.
+ TRÊS FILMES
ORGANISMO
Belo filme sobre a difícil fase de transição na vida de um homem que ficou tetraplégico. Pode ser só mais uma história sobre o tema, mas não é. O filme foca na questão do ser, a partir de memórias e do encarar as próprias falhas através da visão do protagonista e de sua namorada. Outro grande momento de Rômulo Braga e também de Bianca Joy Porte. Acertada estreia na direção e no roteiro de Jeorge Pereira. Ano: 2017.
GABRIEL E A MONTANHA
As ambições de Fellipe Barbosa com este longa talvez não tenha atingido a sensibilidade necessária. Ou é só impressão minha. Mas é uma obra especial, sem dúvida, tanto pela abordagem, quanto pela reconstituição e convite à viagem e ao perigo. E Caroline Abras está um amor. De novo. Ano: 2017.
AS DUAS IRENES
É impressão minha ou tem aparecido bastante filmes de coming of age brasileiros? MULHER DO PAI, O FILME DA MINHA VIDA e este AS DUAS IRENES, que é uma beleza. As duas meninas são ótimas, principalmente a primeira Irene. Algumas soluções bem pouco óbvias do roteiro são também louváveis. Quando se pensa que algo vai acontecer, acontece diferente. Isso é muito bom. Um dos melhores brasileiros do ano. Direção: Fabio Meira. Ano: 2017.
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