Como os dois títulos brasileiros são menos conhecidos do que o original, tratemos CORAÇÃO DE APACHE (1934), como, ao que parece foi o título que originalmente o filme recebeu quando lançado nos cinemas brasileiros - CORAÇÃO VADIO, talvez em um lançamento posterior, não sei dizer onde ou em que bitola - como LILIOM, o título original, mais famoso e nome do personagem principal, aqui interpretado por Charles Boyer, que em Hollywood ficou famoso quando fez DUAS VIDAS, de Leo McCarey, e À MEIA LUZ, de George Cukor, entre outros.
Sobre LILIOM, o célebre filme francês de Fritz Lang, chamado de interlúdio, pois foi rodado entre a primeira fase alemã e a fase americana do cineasta, confesso que tive meus problemas, embora goste de muitos aspectos do filme. O que mais me incomodou foi a questão da violência doméstica. Sei que Lang é um humanista, mas, como costumam dizer que ele é um cineasta misógino, em LILIOM tem-se um prato cheio, já que o protagonista agride a esposa, uma esposa amorosa e cuidadosa. E isso me incomodou um bocado.
Principalmente quando vi as cenas finais, com a filha perguntando à mãe: "Há tapas que não doem, mãe?", e a mãe responde que sim, lembrando do marido morto. Claro que não é tão simples assim e o filme explora um pouco da psicologia mais complexa de Liliom, de certa forma. Mas sobram momentos de malandragem do personagem e faltam mais momentos de carinho por parte dele. Assim, todo o amor, toda a entrega na relação, parece vir sempre de Julie (Madeleine Ozeray), que se recusa a deixar um marido que não quer trabalhar.
Aliás, não deixa de ser curioso ver tanto ela quanto a outra mulher, a Madame Muscat, dizerem que Liliom era um artista, que merecia tratamento diferente da sociedade. E entramos aí em outra questão interessante: a de como a sociedade é injusta para as pessoas mais pobres. Assim na Terra como no céu, inclusive. Mesmo no céu, Deus não está disponível para um homem pobre como ele; o céu como espelho da justiça da Terra.
Outro aspecto positivo de Liliom se manifesta no momento em que ele recebe uma espécie de ultimato de sua patroa/namorada e prefere largar o emprego sem nenhum tostão e ir embora com as duas moças, um tanto tocado pelo doce olhar de Julie. Além do mais, ele não deseja ser considerado propriedade de ninguém. É um posicionamento nobre. Ainda mais para um perigoso sedutor de mulheres, como afirmou o policial na cena do banco de praça. É lá que Julie diz: "Quando eu amo alguém, eu não tenho medo de nada."
LILIOM é adaptação de uma peça de Ferenc Molnár, e que já recebeu algumas tantas adaptações para o cinema e para a televisão. Para cinema, as mais famosas são esta do Lang, uma anterior, de 1930, dirigida por Frank Borzage, e uma chamada CARROSSEL, de Henry King, lançada em 1956. Não sei se essas outras versões entregam (ou não) logo no início que o filme trará momentos que sairão do território do realismo.
Como produção para cinema, percebe-se que se trata de uma obra de orçamento pequeno. Do parque de diversões do início, por exemplo, é mostrado muito pouco. Só o carrossel, a bilheteria e um ou outro brinquedo. Mas isso faz parte da magia do cinema. No entanto, isso acaba por impedir um momento de virtuosismo de Lang no uso da câmera, algo que já podíamos presenciar em O TESTAMENTO DO DR. MABUSE (1933), para citar uma obra imediatamente anterior.
Para não dizer que não elogiei o filme (na verdade, enquanto eu escrevo sobre ele, mais eu gosto), preciso lembrar do momento mais bonito: a morte de Liliom. Um dia desses, aliás, estava vendo outro filme (um brasileiro, chamado ILHA) e um homem pergunta ao outro como ele desejaria morrer. E eu fiquei pensando: morrer nos braços da mulher amada seria uma morte doce. E é o que ganha Liliom, nesta cena belíssima que destaca mais uma vez o amor gigantesco de Julie.
+ TRÊS FILMES
O MEDO DEVORA A ALMA (Angst Essen Seele Auf)
Nada como um cineasta gay para tratar da questão do preconceito com tanta propriedade. Se aqui não temos o preconceito da relação entre duas pessoas do mesmo sexo, há um casal talvez ainda mais controverso: o de um homem muçulmano com uma senhora alemã vinte anos mais velha que ele. Rainer Werner Fassbinder reconstrói o melodrama sirkiano do jeito dele, com um jeito mais seco, com quase ausência de música e um trabalho visual lindo (fotografia, direção de arte). Talvez tenha faltado a mim mais empatia para me colocar no lugar dos personagens. Tanto que, quando o sujeito vai até o apartamento da loira, até acho que ele está tomando a decisão certa, já que chega um momento em que a relação entre o casal parece não evoluir para algo de cunho mais romântico ou sexual. Mas o diretor sabe lidar com todos esses problemas complexos. Ano: 1974.
O DIA MAIS FELIZ DA VIDA DE OLLIE MÄAKI (Hymyilevä Mies)
Uma das coisas mais belas deste filme é o amor do boxeador Olie Mäaki pela namorada. Tudo o mais, inclusive o boxe, fica em segundo plano. Em tempos em que o amor romântico vem sendo problematizado e subvalorizado eu ainda gosto de filmes assim. Direção: Juho Kuosmanen. Ano: 2016.
ELON NÃO ACREDITA NA MORTE
Filme admirável tecnicamente. Lembra um pouco alguns trabalhos dos irmãos Dardenne com a aproximação da câmera. A atuação de Rômulo Braga é espetacular. Mas falta alguma coisa para o filme alcançar a excelência. Direção: Ricardo Alves Jr. Ano: 2016.
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