sexta-feira, junho 09, 2023

FEMME FATALE



E cheguei ao momento em que já temos texto de filme de Brian De Palma (visto no cinema na época) no blog. Inclusive, até eu fiquei surpreso com minha recepção com o filme, tendo o colocado em meu top 20 de 2003 – FEMME FATALE (2002) estreou aqui em janeiro de 2003. E achei até divertido ler o meu texto sobre o filme da época, pois o blog tinha um caráter ainda mais de diário despretensioso do que nos dias de hoje. Por outro lado, o que eu reclamei, de maneira tímida, do filme, que é a falta de emoção, já representa um ponto negativo que também senti nesta revisão.

A verdade é que o século XXI não começou muito bem para De Palma. Embora tenha dividido opiniões com o belo MISSÃO: MARTE (2000), a volta a seu estilo mais característico de produção, com sensualidade, voyeurismo, homenagens explícitas a Hitchcock, split-screens e uma música orquestrada que evidencia o mistério (novamente a cargo do grande Ryuichi Sakamoto), não é tão bom quanto seus grandes trabalhos de suspense das três décadas passadas. Ainda por cima, mesmo tendo custado apenas 35 milhões de dólares, não arrecadou nem a metade nas bilheterias, o que representou um golpe para um cineasta que já não estava conseguindo apoio de Hollywood.

Na revisão, incomodou-me seu roteiro fraco (especialmente as falas dos personagens) e um casal de atores que não tem química. Também senti falta de um teor mais perverso por parte da protagonista, como as femme fatales clássicas. Além do mais, a cena de striptease no bar carece de tesão. No entanto, vendo como um filme sobre segundas chances, FEMME FATALE tem, sim, uma importância na evolução do trabalho de Brian De Palma.

Para começar, vale destacar a questão da rivalidade entre os irmãos Brian e Bruce, que assombra boa parte da filmografia do diretor. Assim como ele já anteciparia em MISSÃO: MARTE, o tom adotado agora é de reconciliação familiar. Temos a figura do duplo, no caso duas mulheres, Laure, a protagonista, vivida por Rebecca Romijn-Stamos, e uma sósia dela, Lily, que Laure testemunhará impassível enquanto a jovem tira a própria vida com uma bala de revólver. Laure se aproveita da situação para lhe tomar a identidade, de modo a se livrar de seus perseguidores, após o orquestrado roubo no banheiro de uma sala de cinema luxuosa do Festival de Cannes. 

Na referida cena, uma das mais memoráveis (e uma das poucas que guardei lembranças), vejo mais erotismo por conta da modelo com braceletes e sutiã de ouro e diamantes, que não se importa de caminhar pelos corredores do local com os mamilos à mostra e excitada pelo convite da suposta fotógrafa sensual para o encontro secreto. É como se De Palma estivesse tentando ressuscitar a volúpia de filmes como VESTIDA PARA MATAR (1980) e DUBLÊ DE CORPO (1984), e falhando no processo. Claro que isso é uma visão que hoje tenho do filme; na época do lançamento, não cheguei a reclamar de forma alguma. A cena do roubo traz toques de espionagem e lembra as agruras de Ethan Hunt em MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996).

Depois desse momento, FEMME FATALE perde um pouco o ritmo e causa certo desinteresse, até ficar novamente interessante quando a protagonista vai parar na casa de sua sósia, confundida por um casal de idosos. Na primeira vez que eles a viram, Laure usava uma peruca morena, por cima de seu cabelo loiro, como no disfarce de Madeleine em UM CORPO QUE CAI.

Para uma obra que tenta homenagear os filmes noir, a começar por uma cena do essencial PACTO DE SANGUE, de Billy Wilder, o que FEMME FATALE nos apresenta é algo que a princípio não lembra tanto assim os velhos clássicos do período – não que fosse uma obrigação dele. Na verdade, em entrevista, De Palma confessa que queria mesmo virar do avesso as convenções do gênero e transformar uma mulher perversa e autodestrutiva, com algo de fálico e masculino, numa mulher com capacidade de ter empatia e união entre seus pares. E o que temos é um final feliz, algo bizarro em se tratando de Brian De Palma. E mais uma amostra do quanto o cineasta queria usar o cinema para encontrar a própria redenção e se livrar da culpa de se sentir passivo em relação a uma situação envolvendo seu irmão mais novo, Barton.

Na época do lançamento de FEMME FATALE, muitas comparações foram feitas com CIDADE DOS SONHOS, de David Lynch. E de fato, há similaridades e paralelismos. Ambos os filmes se passam quase que inteiramente num sonho. Mas, se o sonho de Lynch era uma fuga da realidade terrível, no filme de De Palma, o sonho é um pesadelo que funciona como uma dica para uma segunda chance e uma melhor sorte na vida real. Porém, apesar dessas semelhanças narrativas, em termos de força e impacto, é até covardia fazer comparação entre os dois.

No mais, é bom destacar que eu escrevi o texto até o momento sem sequer mencionar o personagem e a atuação de Antonio Banderas, tão apagado que está no papel – aliás, não me lembro de outro papel dele fora do cinema espanhol que tenha sido um grande sucesso. De todo modo, seu personagem é o segundo mais importante e conta com algumas cenas memoráveis. Ele, assim como sua contraparte feminina, tem algo do homem Brian De Palma, que agora muda de perspectiva e tem uma visão mais iluminada da vida. A última imagem do filme é uma colagem feita com fotografias tiradas por Barton De Palma, seu irmão mais novo. 

+ DOIS FILMES

TERRIFIER

Sujo, sangrento, sem uma explicação ou origem do comportamento violento do palhaço e quase sempre mantém o interesse do espectador, especialmente na primeira metade. Depois disso, há uma queda no ritmo e os exageros de violência gráfica doentia aparentemente já haviam ultrapassado todos os limites em determinada cena, que de fato é um tanto perturbadora. É interessante que TERRIFER (2016), de Damien Leone, é um filme que só ficou mais famoso por causa de sua sequência, que estreou nos cinemas americanos no ano passado e causou um rebuliço pelos excessos de violência do palhaço. Aliás, muito bem pensado o visual do vilão, com o rosto pintado de preto por baixo da máscara em preto e branco. Agora é ver se o filme é representativo de uma nova tendência de ressurgimento dos slashers, até porque este aqui tem uma pegada bem oitentista, só que bem mais violento que a grande maioria dos exemplares da fase áurea do subgênero.

TERRIFIER 2

Muito boa a sensação que certos filmes produzidos recentemente estão trazendo, ao usar o tom dos filmes de horror dos anos 1980, com direito a uma fotografia mais suja, uma trilha sonora com sintetizador e um excesso de violência gráfica que já passa pelo filtro de nossa experiência com o torture porn dos anos 2000. Assim, acabamos ficando um pouco anestesiados com esse tipo de violência tão exagerada que se aproxima mais do delírio do que do realismo. Até porque, como visto no primeiro filme, o palhaço Art não é exatamente uma figura que morre facilmente. Semelhante a Jason Voorhees e Michael Myers, ele é praticamente imortal. Por isso, Damien Leone utiliza a fantasia para trazer uma intervenção possível da suposta final girl do filme, Sienna (Lauren LaVera), como oposição ao palhaço maníaco e sádico. Interessante notar que Leone já havia derrubado as regras/expectativas das final girls de slashers no primeiro TERRIFIER. Então já sabemos que tudo é possível nesta sequência, que explora mais a cidadezinha e também amplia o mito de Art, sem se preocupar com alguma origem ou coisa do tipo. Curiosamente, como o próprio filme se vende como extremamente chocante, este segundo acabou provocando menos choque em mim do que o primeiro, embora seja mais longo e com mais cenas de violência com membros e pele arrancados. Um dos trunfos de TERRIFIER 2 (2022) é não ter medo de voar em seu clímax, e isso tira um bocado de vulgaridade da obra. Ah, e há uma cena pós-créditos relativamente longa que eu quase perdi.

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