quarta-feira, agosto 19, 2020

A PRIMA SOFIA (Une Fille Facile)

Alguns filmes que nos ganham a simpatia acabam por se tornarem ainda mais queridos quando passamos a saber de eventos extra-filme, ou pelo menos só conhecidos de quem leu alguma matéria em jornal ou quem está bastante familiarizado com determinado ator ou atriz, como é o caso de Zahia Dehar, que faz a personagem-título, que é bastante conhecida na França e cuja escalação pode ser vista como ousada para este A PRIMA SOFIA (2019), de Rebecca Zlotowski, diretora do charmoso e torto ALÉM DA ILUSÃO (2016).

Antes de falar um pouco da atriz/modelo, gostaria de falar um pouco sobre o sentimento que ela (a personagem/a atriz) me passou enquanto via o filme. Sua hiper-sexualidade beirando o vulgar traz algo de conflitante no modo como vemos a expressão de sua liberdade, de sua nudez, de suas transparências ou a facilidade ou vontade com que ela deseja satisfazer seus desejos. Mexe também com algo que talvez esteja relacionado a algo de mais sombrio em nosso ser, algo que está relacionado a um tipo de moralismo hipócrita e machista.

Por isso vi uma semelhança da personagem com outra mulher que lida bastante com a hiper-sexualidade em um filme de algumas décadas atrás, A MULHER PÚBLICA, de Andrzej Zulawski. Não por acaso, há uma coincidência (ou não existem coincidências?) com o fato de a diretora de A PRIMA SOFIA ser de ascendência polonesa e de ter nome até parecido com o do referido cineasta.

A polêmica em torno de Dehar se dá por ela ser bastante conhecida na França. Ela abrilhantou em 2010 os noticiários sobre escândalos envolvendo os jogadores de futebol franceses Franck Ribéry e Karim Benzema, que foram acusados de pagá-la com serviços de garota de programa quando ela ainda tinha 17 anos. Os jogadores se safaram na justiça ao afirmarem que não sabiam que ela era menor de idade. Posteriormente, ela acabou por se tornar famosa como modelo, como designer e agora como atriz também no filme de Rebecca Zlotowski.

Seu papel em A PRIMA SOFIA guarda muita similaridade com sua vida real, trazendo uma brincadeira metalinguística desconhecida de quem não é francês ou de quem desconhece os bastidores. Ela é a prima que surge na cidade de Cannes de surpresa para visitar a jovem Naïma (Mina Farid), de 16 anos, que a recebe com muita alegria e entusiasmo. Há algo nessa prima que veio de Paris que passa a ser objeto de fascínio por Naïma, como seu sex appeal, sua tranquilidade em se expor de top less e também seu ar de liberdade em relação ao aproveitar a vida. Ela tem uma tatuagem acima do bumbum com a frase em latim "Carpe diem".

Em determinado momento, as duas estão tomando sol na praia e aparecem dois rapazes, atraídos pelo corpo exuberante de Sofia. E a garota não se importa com os rapazes. Ao contrário: deixa-os desconfortáveis ao aproximar a mão de um deles em seu seios e depois falar de sua pele macia e de outra parte do corpo dela ainda mais macia. O comportamento da prima deixa Naïma um pouco escandalizada, mas seu exemplo de liberdade faz com que, mais e mais, ela se torne um exemplo de vida.

Em entrevista para o site The Hot Corn, Zahia Dehar afirma: "eu não acredito que você pode se chamar de feminista se você coloca outras mulheres em jaulas". Depois, ela diz que admira as chamadas bad girls, já que são essas mulheres as mais fortes e as mais livres. Essa percepção da sociedade em torno da personagem é muito clara no filme, a cada vez que Sofia passa, com seus trajes provocantes, seja um vestido totalmente transparente para a noite, seja um vestido leve e florido, como o que ela usa para ir a um palacete na Itália, com os rapazes que ela conhece.

Essas cenas na Itália são deliciosas, inclusive, ao lidar com a questão do julgamento, do preconceito. Em determinado momento, Sofia, na roda de pessoas ricas que estão ali, afirma que aquele lugar lhe faz lembrar Marguerite Duras. Uma das mulheres (Clotilde Courau) ri e desconfia que aquela garota com jeito de prostituta não sabe nada da escritora e faz perguntas sobre quais livros ela gosta mais de Duras. Além do mais, nada mais simbólico do que ter em cena Courau, casada com o Príncipe de Veneza, nesta cena. Outro acerto de casting de Zlotowski.

A PRIMA SOFIA é também um conto sobre a brutalidade do homem, ainda que narre isso de maneira relativamente leve - afinal, já vimos coisas como VINTE ANOS, de Fernando Di Leo, que lida com essa brutalidade diante da beleza e da liberdade sexual feminina de maneira infinitamente mais agressiva. Mas talvez tenha resultado assim, de maneira muito menos exploratória, por ser narrado por uma mulher. Além do mais, por mais que Sofia atraia demais as atenções, a história é de Naïma, do quanto ela aprende naquele breve período de férias de verão, e no quanto ela aprende para sua vida, para o seu futuro. É um filme cujas semelhanças com A COLECIONADORA, de Éric Rohmer, têm sido citadas em algumas críticas. E tem mesmo tudo a ver.

P.S: Ouçam o podcast do Cinema na Varanda desta semana. A discussão em torno do filme é muito interessante.

+ DOIS FILMES

MULHERES QUE MATAM (Women Who Kill)

Em uma das edições do For Rainbow (de 2016), vi este filme interessante, um thriller sobre duas podcasters obcecadas por assassinos seriais de mulheres. Elas foram ex-namoradas e há ainda uma chance de ainda terem sentimentos uma pela outra. Infelizmente não anotei nada sobre o filme e as lembranças dele ficaram nebulosas demais. Lembro que gostei razoavelmente e é curioso que é um desses filmes que permaneceram inéditos no país, até onde sei. Então talvez tenha sido uma das raras exibições no país. Direção: Ingrid Jungermann. Ano: 2016.

A CIDADE DO FUTURO

Outro filme que muito me agradou na programação do For Rainbow de 2016, este filme da dupla Cláudio Marques e Marília Hughes, depois de terem ganhado força com o relativo sucesso do anterior, DEPOIS DA CHUVA (2013), foi bem recebido e talvez o melhor da mostra competitiva, pelo que me lembro. Na trama, vemos uma família formada por dois homens e uma mulher no interior da Bahia. É um filme que poderia ter tido uma repercussão maior no circuito alternativo. Ano: 2016.

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