domingo, maio 10, 2020
ESTA RUA TÃO AUGUSTA
É tentador escrever sobre um filme de Carlos Reichenbach sem se apegar a memórias afetivas de nossos encontros com esse que é um dos mais importantes cineastas brasileiros de todos os tempos. Isso se deve à forma generosa com que o diretor gaúcho, mas de espírito paulistano, lidava com as pessoas, não importando se eram jovens cinéfilos ou técnicos de cinema com ainda pouca bagagem cultural acumulada. O que mais lhe interessava eram a paixão e a sede de cultura.
Essa relação de proximidade com as pessoas também era combustível para a realização de seus filmes. Para enriquecer os diálogos de seus personagens, o cineasta costumava pegar ônibus e escutar conversas de trabalhadores (operárias, professoras etc.). E por isso é possível perceber uma diferença entre o que ele fazia em seus longas, em geral melodramas da linha de Rainer Werner Fassbinder e Valerio Zurlini, e o que ele gostava de colocar na maioria de seus curtas, que tinham um caráter mais experimental, quase sempre afastados da forma narrativa mais clássica.
E já que vamos falar de um primeiro filme de um diretor, podemos começar com a seguinte pergunta: seria a obra de estreia de um cineasta-autor a síntese em estado bruto do que veríamos posteriormente em sua filmografia? No caso de ESTA RUA TÃO AUGUSTA (1968), pode-se dizer que essa afirmativa é verdadeira. Ainda que o próprio Carlos Reichenbach tenha finalizado o filme por insistência de seu mentor Luiz Sérgio Person, e que só tenha começado a criar um pouco de gosto pelo trabalho quando conheceu o pintor naif Waldomiro de Deus, que possuía uma irreverência que chocava a burguesia que frequentava o local, com sua minissaia, botinhas e pinturas provocantes; apesar dessa espécie de rejeição do próprio pai à sua cria, ESTA RUA TÃO AUGUSTA foi ganhando o respeito e a admiração de críticos e cinéfilos.
Eis, portanto, um primeiro elemento em comum entre esse curta e as demais obras de Carlão: o elemento humano. Foi por causa de Waldomiro de Deus e também pela figura do poeta cult Lindolf Bell que ESTA RUA TÃO AUGUSTA deixou de ser apenas uma paródia de um documentário institucional sobre uma das ruas mais famosas de São Paulo para se tornar principalmente uma homenagem aos artistas apresentados.
Se em seus longas-metragens, o diretor tem um evidente interesse por dramas de pessoas de diferentes classes sociais, em especial de classes menos favorecidas, na maioria de seus curtas Carlão aproveitou a oportunidade para fazer um elogio à arte. Vejamos: em ESTA RUA TÃO AUGUSTA, um pintor e um poeta; em SANGUE CORSÁRIO (1979), o poeta, ator e amigo Orlando Parolini; em O M DA MINHA MÃO (1979), o acordeonista Mario Gennari Filho; em OLHAR E SENSAÇÃO (1994), a arquitetura da megalópole paulista; e em EQUILÍBIO E GRAÇA (2003), ele traz música, dança e pintura para compor mais um exercício de sensibilidade.
A exceção de seus curtas talvez seja apenas SONHOS DE VIDA (1979), que funciona como uma espécie de gênese para os filmes de Carlão sobre mulheres da classe operária, ANJOS DO ARRABALDE (1986), GAROTAS DO ABC (2003) e FALSA LOURA (2007).
Carlão é um cineasta humanista, portanto. Porém, é importante destacar Reichenbach como sendo um dos diretores que mais enaltecem a grande megalópole brasileira, ao lado de Walter Hugo Khouri e Luiz Sérgio Person. Assim, ao longo de sua obra, é possível notar o modo como a cidade de São Paulo é mostrada com carinho. Portanto, não é apenas o aspecto humano que se destaca em seu primeiro filme, e que se faria presente em suas obras seguintes, mas também a arquitetura da cidade.
Começando com um trecho do famoso discurso de Martin Luther King, ESTA RUA TÃO AUGUSTA destaca o trecho “We can never be satisfied as long as the Negro is the victim of the unspeakable horrors of police brutality.” As citações de grandes homens (poetas, filósofos, políticos etc.) seriam outra marca dos filmes de Carlão e já é algo presente em seu filme de estreia. Não por acaso, a citação do militante pastor americano traz relação com a figura do pintor negro que ousa transgredir os costumes e a religião em prol de sua arte.
O texto entregue para a narração de Oswaldo Calfat, famoso por apresentar diversos documentários institucionais, confere ao filme um contraste com o que é visto nas imagens. O cinema brasileiro e as artes como um todo já haviam chegado a um novo patamar de modernidade naquele momento, últimos anos da década de 1960. A cena dos jovens dançando ao som de “Day tripper”, dos Beatles, ajuda a mostrar as profundas transformações daqueles anos na sociedade. A disputa entre conservadorismo e progressismo estava bem acirrada.
No entanto, isso não impediu que Waldomiro de Deus fosse embora do Brasil para mostrar sua arte na Europa, como podemos ver na cena que encerra ESTA RUA TÃO AUGUSTA. Vê-se que nosso país está longe de ser tão generoso quanto Carlão foi para os artistas.
Texto originalmente publicado no livro Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais, produzido pela Abraccine, com organização de Gabriel Carneiro e Paulo Henrique Silva. Disponível para venda.
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