
Os últimos dias não têm sido fáceis. Sinto falta de escrever: a última vez que consegui produzir um texto maior foi no dia 15 de junho. O restante do mês foi como se eu estivesse sendo atropelado por um trem, com o perdão da hipérbole. E tudo ficou mais tenso com o internamento de minha mãe. Aliás, escrevo neste momento na enfermaria, do lado dela, mesmo sabendo que serei interrompido daqui a pouco.
Desses dias que tenho passado aqui, desde o dia 23 de junho, revezando principalmente com minhas irmãs e meu sobrinho, um momento que me deixou especialmente feliz ontem foi quando a Giselle subiu para visitar minha mãe por uns minutos. A Giselle tem uma energia incrível, uma alegria contagiante e eu fiquei muito feliz ao ver minha mãe surpresa, feliz e sorrindo quando a viu. E, mais ainda, ao ouvir as palavras de fé e de esperança que minha noiva trouxe a ela, emprestando um pouco de sua fortaleza à minha mãe, que esteve bem mais lúcida e melhor ao longo do dia, mas também bastante sonolenta e sem expressar um sorriso sequer.
Por isso, para retomar meus textos para o blog, e escrevendo do celular mesmo, escolho, dentre os filmes vistos recentemente, JUNE E JOHN (2025), de Luc Besson. Isso porque a personagem de June (vivida por Matilda Price) é um pouco do que a Giselle representa pra mim, no sentido de se acordar mais para a beleza do mundo real, e não só a beleza, mas também os aspectos mais sombrios até então invisíveis, e sair um pouco do torpor e do automatismo cotidiano. June tem “essa pressa de viver” descrita por Belchior em “Coração Selvagem”. E também guarda um segredo.
Nunca fui grande fã de Besson - e acho que a maioria dos cinéfilos não é -, mas de vez em quando um filme dele mexe comigo, como aconteceu com NIKITA – CRIADA PARA MATAR (1990) e JOANA D’ARC (1999). Dos mais recentes, gosto de LUCY (2014) e VALERIAN E A CIDADE DOS MIL PLANETAS (2017). E uma coisa que dá para perceber em suas obras é sua opção por destacar mulheres jovens, belas e fortes. June ajuda a trazer fortaleza a John, mas também carinho, amor e excitação em vivenciar aventuras.
O que me encantou em JUNE E JOHN foi o quanto ele é uma representação não só do amor louco, da paixão ardente, mas também de libertação. Da libertação do jovem funcionário de um banco (Luke Stanton Eddy) que vive uma vida à base de remédios para ansiedade e muita solidão. Até o dia que ele encontra, justo num daqueles dias que dá tudo errado, numa estação de metrô, uma jovem mulher de cabelos vermelhos chamada June. Não dá tempo de pegar o telefone dela, mas ele consegue contornar esse problema com a ajuda da internet e de muita força de vontade.
Vejo June como uma espécie de versão espelhada da femme fatale dos noirs dos anos 1940/50, ou seja, ela é a mulher que representa a destruição da vida do rapaz. Mas uma destruição bem-vinda, no caso, já que para renascer é preciso morrer, ainda que simbolicamente. O filme rende também muitas risadas e muita diversão, especialmente quando vira um road movie, e esse rir é também uma porta de entrada para outras emoções que virão na terça parte final. Acho especialmente linda a cena do casamento.
JUNE E JOHN também retrata a situação da Los Angeles dos dias atuais, lotada de sem-tetos vivendo nas mesmas calçadas onde se erigem arranha-céus de megamilionários. Nesse sentido, o filme também funcionará no futuro como um documentário sobre esse tempo.
Quanto à história principal, a história de amor entre o jovem comedido John e a promessa de felicidade June, é tão simples quanto bela. As cenas finais, em Las Vegas e no deserto do sudoeste americano, são lindas demais. E o filme sabe acabar no momento certo. Para além da estética publicitária e de videoclipe, Besson aqui está todo coração. E é uma coisa linda demais de ver. Tão belo quanto o sorriso de Matilda Price, tão deliciosamente incerto quanto a estrada que atravessa o deserto cheio de Joshua Trees.
Texto dedicado a meu grande amor, Giselle.
+ TRÊS FILMES
LEVADOS PELAS MARÉS (Feng Liu Yi Dai)
O último longa de ficção de Jia Zhang-ke havia sido AMOR ATÉ AS CINZAS (2018), um filme que já não havia me conquistado no quesito "importar-se com os personagens". E talvez até por isso, e por aceitar LEVADOS PELAS MARÉS (2024) como um projeto muito mais experimental, aceitei de bom grado o distanciamento para apreciação do filme, que contém cerca de 2/3 de imagens aproveitadas de dois outros títulos de Jia, PRAZERES DESCONHECIDOS (2002) e EM BUSCA DA VIDA (2006), ambos com as presenças de Tao Zhao e Zhubin Li. Eu estava gostando da brincadeira da colagem de filmes para criar uma nova história, e até gostaria que entrassem também cenas de outros filmes do diretor, como UM TOQUE DE PECADO (2013), mas entendo que a tentativa tornaria a colagem mais problemática. Ter uma terça parte final mais amarga com os dois ex-amantes se reencontrando num mundo ainda vivendo sob a pandemia da Covid-19 foi muito interessante. O personagem masculino, com sequelas de um AVC, surge mais frágil nesse momento, em comparação com a personagem feminina, forte o suficiente para participar de uma corrida nas ruas, o deixando "a rua deserta", como diria Caetano Veloso. Pena que essa colagem, por mais interessante que seja, não possui uma liga orgânica suficiente para que essa história de amores partidos seja cruel ou desoladora. O que senti foi mesmo indiferença. E não vejo isso como algo positivo, por melhor que seja rever imagens de filmes de Jia, além de trechos documentais interessantes, como a cena do sujeito que resgata um retrato pintado de Mao Tsé-Tung. De todo modo, LEVADOS PELAS MARÉS funciona como uma ótima apresentação de uma China em constante transformação, sempre alvo de críticas por parte do diretor, mas hoje uma nação digna de admiração pela gigante que conseguiu se tornar no mundo hoje.
AINDA NÃO É AMANHÃ
A opção de Milena Times em AINDA NÃO É AMANHÃ (2024) é contar uma história de maneira simples sobre uma jovem optando pelo aborto, sendo que é uma opção nada fácil, lembrando que o Brasil ainda é um país em que a interrupção da gravidez ainda é crime. Falo em simples, pois não há a intenção de fazer um libelo feminista como UMA CANTA, A OUTRA NÃO, de Agnès Varda; ou um drama extremamente tenso como O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan; ou uma tragédia de dimensões clássicas como 4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS, de Cristian Mungiu; ou uma jornada extremamente delicada, como NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE, de Eliza Hittman. A história de Janaína é mais comum, mais ordinária, no sentido de que acontece o tempo todo no Brasil, só que é algo muito pouco comentado. Na cena em que Janaína conta para a colega de classe que está grávida, ela fica admirada ao saber que a colega também já passou por isso antes. O que a diretora mais destaca em seu filme é a sororidade, é o quanto a mulher mais recebe ajuda de suas amigas e familiares do sexo feminino do que do namorado. Não que o filme vilanize a figura do rapaz, mas no fim das contas essa é uma história em que a mulher é a protagonista. Embora talvez não devesse ter que ser sempre assim.
EVIDÊNCIAS DO AMOR
Filme divertido que opera (bem) mais na chave da comédia, mas que também pode ser visto como uma história dramática sobre um homem em busca dos motivos por que seu relacionamento se perdeu. Para isso, o destino lhe dá o mecanismo de acessar as memórias a partir da audição de "Evidências", clássico dos karaokês. EVIDÊNCIAS DO AMOR (2024) começa, aliás, num karaokê, em que os personagens de Fábio Porchat e Sandy Leah se conhecem e engatam um namoro. Sobre a natureza fantástica do filme, lembrei-me de CLICK, com Adam Sandler, em alguns momentos, inclusive. A brincadeira em torno da canção é divertida, e, por mais que Porchat e Sandy não tenham tanta química juntos como casal, como eles passam a maior parte do tempo separados, o drama da separação acaba funcionando. (Curiosamente, Porchat funcionou muito bem quando trabalhou como par romântico de Miá Mello nos dois MEU PASSADO ME CONDENA, mas talvez isso se dê devido a uma natureza diferente dos filmes). No caso do filme de Pedro Antônio, há uma leve estranheza que me agrada e me fez ficar interessado do início ao fim - a montagem é acertada, mal se vê o tempo passar. Quando a sessão acabou, teve até coro de espectadores cantando "Evidências" enquanto subiam os créditos.