sábado, fevereiro 17, 2024

O BARÃO AVENTUREIRO (The Baron of Arizona)



Ainda estou me acostumando com o cinema de Samuel Fuller. Por enquanto, meu favorito ainda é seu filme de estreia, EU MATEI JESSE JAMES (1949), já que certos títulos dos anos 1960 que pude ver dele, como PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) e O BEIJO AMARGO (1964), vi talvez sem estar preparado ou sem uma noção maior de sua poética, ou mesmo uma noção das circunstâncias e motivações pelas quais suas obras foram feitas. Das produções dos anos 1980 que pude ver, AGONIA E GLÓRIA (1980) e CÃO BRANCO (1982) também precisam de revisão. Esses e todos os filmes que pretendo conseguir do realizador estarão na minha peregrinação. Não são tantos assim. 

Seguimos agora com seu segundo filme na direção, O BARÃO AVENTUREIRO (1950), em que Fuller mais uma vez abraça as pessoas deploráveis, demonstrando um humanismo poucas vezes visto no cinema. Depois de nos fazer solidários de um covarde em seu longa-metragem de estreia, ele agora nos faz simpáticos a um forjador, um falsificador de ambições imensas, um homem praticamente despojado de sentimentos nobres. A história é muito interessante e é impressionante que seja hoje tão pouco conhecida: um homem, James Reavis, conseguir forjar antigos documentos de modo a possuir todo o território do Arizona, isso é incrível.

No filme, ele é vivido por Vincent Price. Diria que para o bem e para o mal, pois nem sempre Price consegue uma atuação muito convincente (adorei quando ele fez o terrível caçador de bruxas no filme de 1968, por exemplo, mas talvez seja um caso especial). Aqui nesta produção do chamado beco da pobreza de Hollywood, Fuller faz um western bem estranho, com toques às vezes pesados de melodrama, acentuados pela trilha sonora, mas com outros muito divertidos de suspense e aventura (nas cenas do protagonista na Espanha). Chegam a ser engraçadas as cenas em que ele repete uma fala para conquistar as mulheres que passam por sua vida num curto espaço de tempo. 

O fato de esse personagem, esse herói estranho passar vários anos num mosteiro para realizar seu intento é representativo de alguém que acredita no fruto de seu trabalho. Seu trabalho consiste em usar tintas especiais e forjar caligrafias nos livros guardados a sete chaves nesse mosteiro. Imagina só: passar todo esse tempo fingindo ser um sacerdote, enquanto a então menina cresce e se transforma numa mulher. Uma vez que ela se torna “legalmente” (a partir do que ele consegue forjar) baronesa, ele pede a moça em casamento, não importando a diferença de idade. Ele tinha certeza de que havia criado para si uma figura de um mito para aquela menina que crescera suja, brincando com porcos, antes de ele trazer essas fake news de que ela era herdeira de muitas terras.

O BARÃO AVENTUREIRO foi uma produção barata. Suas filmagens duraram apenas 15 dias, ainda que cinco a mais que EU MATEI JESSE JAMES. Apesar da pobreza de recursos, na ficha técnica, a obra conta com um dos mais respeitados diretores de fotografia da história de Hollywood, o chinês James Wong Howe, que fez questão de trabalhar com Fuller. Na época, Howe já havia trabalhado em obras de prestígio, como OS CARRASCOS TAMBÉM MORREM, de Fritz Lang, e UM PUNHADO DE BRAVOS, de Raoul Walsh.

Lendo textos sobre Fuller, diretor nascido no jornalismo, assim como Richard Brooks, vejo críticos falando de suas imperfeições, e de como elas fazem parte de sua grandeza como cineasta. E que falam também de seu senso de urgência narrativa. Confesso que, depois de O BARÃO AVENTUREIRO, fiquei ainda confuso e acredito que seus próximos filmes me farão compreender melhor suas obsessões, suas intenções, sua estética. Por isso, aguardem para breve meu texto sobre CAPACETE DE AÇO (1951).

+ DOIS FILMES

JAMAL

Quando o curta-metragem JAMAL (1981), de Ibrahim Shaddad, começou, fiquei me perguntando se aquele som era do camelo ou do carro de bois - ou seja lá que máquina é aquela que o pobre animal usa. Lembrei-me do som constante de VIDAS SECAS, de Nelson Pereira dos Santos. Mas ao que parece, em JAMAL, é o som do camelo mesmo e o filme busca trazer uma conscientização dos maus tratos sofridos pelos animais, apelando até mesmo para uma espécie de antropomorfização do camelo perto do final. E é triste pensar que é preciso esse tipo de coisa, de fazer comparação do homem como um escravo, rodando vendado uma roda o dia inteiro, para tornar esse sofrimento compreensível. O filme tem uma crueza muito própria de um país que devia ainda estar lutando muito para ter um nível de prosperidade minimamente digna.

A GRANDE TESTEMUNHA (Au Hasard Balthazar)

A revisão de A GRANDE TESTEMUNHA (1966), de Robert Breson, desta vez foi no cinema e em 35 mm. Havia visto pela primeira vez quase 18 anos atrás e desta vez muito me incomodou, além da questão envolvendo o burrinho sendo passado de mão e mão e sofrendo maus tratos e falta de respeito, algo relacionado à personagem de Anne Wiazemsky (A CHINESA). Ela é Marie, cujo nome provavelmente tem um simbolismo cristão, sendo Bresson um cineasta católico. Ela larga a família para viver uma relação abusiva com um jovem deliquente, muito provavelmente o personagem mais odioso do filme. Este é um dos trabalhos do Bresson que mais tive dificuldade de acompanhar e compreender o enredo, por causa da grande quantidade de personagens e das elipses, já que a intenção do cineasta é reduzir tudo ao essencial, não apenas as emoções e os diálogos, mas também o que é apresentado na tela. Então é uma marca do diretor certa obsessão pelas mãos, como muito bem podemos lembrar do maravilhoso UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU (1956), uma obra muito mais otimista em sua conclusão. De A GRANDE TESTEMUNHA só podemos esperar o mais rápido possível fim do sofrimento daqueles personagens, seja Balthazar, Marie, o bêbado Arnold, ou os pais de Marie. Neste filme não há salvação neste plano de existência. Uma cena que muito me chamou a atenção desta vez: os campos e contracampos de Balthazar com os bichos aprisionados no circo.

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