E se fôssemos preparados para ver um heist movie e déssemos de cara com uma obra que nos faz refletir sobre a vida, especialmente sobre o modelo de vida centrado no trabalho no sistema capitalista? No trabalho que só consome e dá muito pouco em troca? Trabalhos para pagar as contas e se ter uns poucos dias de férias com muito pouco dinheiro para fazer uma viagem, por exemplo. É pensando nisso que Morán (Daniel Elías) resolve cometer um crime muito bem pensado: ele sabe que será preso (ele mesmo se entrega à polícia), sabe quanto tempo ficará na cadeia, e já escolheu a pessoa que ficará segurando o dinheiro enquanto ele estiver fora. Ao saírem, o dinheiro será repartido 50/50. O colega é Román (Esteban Bigliardi, LA FLOR), um homem casado que terá dificuldade de lidar com a situação de guardar uma mala cheia de dinheiro enquanto rola uma investigação em seu ambiente de trabalho.
Podemos dizer que OS DELINQUENTES (2023) é um típico filme lado A/lado B, ou seja, um filme que ganha novos contornos (se modifica bastante) quando o disco vira. E o modo como o diretor Rodrigo Moreno vira a chave (entra aqui outro termo não literal para descrever essa mudança) é brilhante, poético e com muita certeza do que pretende fazer e mostrar.
Mesmo a primeira parte do filme, que nos coloca dentro da situação do crime, já se diferencia bastante dos títulos mais convencionais desse subgênero. Daí a necessidade que uma obra como esta seja exibida numa sala destinada a filmes arthouse, já que num cinema de shopping não seria muito bem recebida por um público impaciente ou incompreensivo. Na segunda metade da narrativa, o filme se mostra mais lento e mais disposto a pedir que o espectador aprecie os planos longos, as escolhas pelo olhar cadenciado da câmera, em bela fotografia com uma diferente janela em 1,55:1.
É na segunda parte que começamos a perceber que a trilha sonora mais dramática (e romântica) que se ensaiava durante a primeira parte tem sua razão de ser. Há algo de misterioso até nos nomes dos personagens (Roman e Morán, Norma e Morna) e esse jogo de letras surge, não em vão, na brincadeira de se falar o nome de uma cidade com a derradeira letra da falada anteriormente. A divisão (por dois), que no início acontece apenas no dinheiro, passa a tomar conta de outros aspectos do filme (em split-screens reveladoras e delicadas, por exemplo) e dos personagens. Além do mais, há um convite ao mistério e à reflexão acerca da própria vida cotidiana de trabalhador que também me encantou muito. Certamente, uma das melhores surpresas do ano.
OS DELINQUENTES é o título que a Argentina escolheu para representar o Oscar de filme internacional. E acredito que tenha mais chances de chegar lá do que o igualmente ótimo RETRATOS FANTASMAS, de Kleber Mendonça Filho, muito por ser um filme de ficção, mas também pela elegância da direção e pelo aspecto universal do tema. O filme de Moreno é uma obra que questiona o modelo de trabalho no sistema capitalista, mas não como ARÁBIA, por exemplo, que traz um tom de melancolia aliado à raiva. Se é que a comparação faz sentido, na verdade.
O filme até tem sido criticado por alguns poucos como uma obra que mostra o dinheiro como algo sujo. Não vejo dessa maneira. Mas já vimos tantas histórias em tom de fábula em que o dinheiro tem essa conotação e os personagens ganham um final trágico, e a obra de Moreno mostra sentidos transcendentais para seus personagens e o espectador. Para isso, é necessário se deixar levar pelas tomadas mais longas, pelas imagens das montanhas – a gente quase respira aquele ambiente –, pelos encontros que surgem pelos caminhos dos protagonistas, em especial a trupe de três pessoas que fazem um filme artesanalmente.
A valorização da natureza, do bucólico, está claramente presente, mas não como sentido único: a arte, em especial a literatura e o cinema se atrelam à beleza da natureza. E há, antes de mais nada, o amor. O amor como grande catalizador do entusiasmo. E por mais que o final guarde um tom agridoce, o caráter revelador é tão compensador que todos os atos valem a pena. Até porque o horizonte, a imagem representativa do futuro, abre novas possibilidades para a vida.
+ DOIS FILMES
NARDJES A.
Karim Aïnouz, ao usar uma câmera de smartphone, consegue adentrar multidões sem que as pessoas se incomodem e isso acaba gerando reações naturais, exceto talvez da protagonista, a jovem militante argelina cuja jornada acompanhamos por um dia. O diretor tem um olhar muito especial e por isso algumas imagens têm uma beleza toda própria, como a cena em que a multidão é vista dentro de uma espécie de túnel. Além do mais, senti um tom de Nouvelle Vague francesa no registro, especialmente quando a personagem passeia à noite, após a manifestação. (O fato de o filme ser falado em francês boa parte do tempo acaba contribuindo para essa semelhança.) NARDJES A. (2020) valoriza o espírito juvenil e sua energia para efetuar as devidas mudanças na sociedade. Nesse sentido, é uma obra que se complementa com MARINHEIRO DAS MONTANHAS (2021), que apresenta personagens mais maduros e um pensamento mais no passado que no futuro.
MARINHEIRO DAS MONTANHAS
Um dos melhores filmes de Karim Aïnouz, MARINHEIRO DAS MONTANHAS (2021) é sua obra mais pessoal, remetendo a um de seus primeiros curtas, SEAMS (1993), que já tratava de sua família, ou melhor, das mulheres de sua família. Aqui ele mergulha nas profundezas desconhecidas de suas origens paternas, ao viajar para o vilarejo onde nasceu seu pai, no interior da Argélia, e filmar o que acontece a cada passo dado. Karim conta em tom de diário poético suas andanças pelo país. Ao mesmo tempo, ele conversa com a mãe morta, e de vez em quando conhecemos um pouco da história pregressa da genitora, de quando ela conheceu seu pai, engravidou e teve que criá-lo sozinha. Talvez por isso o sentimento de rejeição seja algo presente em boa parte da obra do realizador das mais diferentes maneiras, como em O ABISMO PRATEADO (2011), PRAIA DO FUTURO (2014) e A VIDA INVISÍVEL (2019). Também é destaque em seus filmes o deslocamento de seus personagens, ou a busca ou o desejo desse deslocamento, como em O CÉU DE SUELY (2006). Aqui é o próprio cineasta que se desloca, que rememora a mãe, e busca seus parentes naquele cenário tão diferente.
+ DOIS FILMES
NARDJES A.
Karim Aïnouz, ao usar uma câmera de smartphone, consegue adentrar multidões sem que as pessoas se incomodem e isso acaba gerando reações naturais, exceto talvez da protagonista, a jovem militante argelina cuja jornada acompanhamos por um dia. O diretor tem um olhar muito especial e por isso algumas imagens têm uma beleza toda própria, como a cena em que a multidão é vista dentro de uma espécie de túnel. Além do mais, senti um tom de Nouvelle Vague francesa no registro, especialmente quando a personagem passeia à noite, após a manifestação. (O fato de o filme ser falado em francês boa parte do tempo acaba contribuindo para essa semelhança.) NARDJES A. (2020) valoriza o espírito juvenil e sua energia para efetuar as devidas mudanças na sociedade. Nesse sentido, é uma obra que se complementa com MARINHEIRO DAS MONTANHAS (2021), que apresenta personagens mais maduros e um pensamento mais no passado que no futuro.
MARINHEIRO DAS MONTANHAS
Um dos melhores filmes de Karim Aïnouz, MARINHEIRO DAS MONTANHAS (2021) é sua obra mais pessoal, remetendo a um de seus primeiros curtas, SEAMS (1993), que já tratava de sua família, ou melhor, das mulheres de sua família. Aqui ele mergulha nas profundezas desconhecidas de suas origens paternas, ao viajar para o vilarejo onde nasceu seu pai, no interior da Argélia, e filmar o que acontece a cada passo dado. Karim conta em tom de diário poético suas andanças pelo país. Ao mesmo tempo, ele conversa com a mãe morta, e de vez em quando conhecemos um pouco da história pregressa da genitora, de quando ela conheceu seu pai, engravidou e teve que criá-lo sozinha. Talvez por isso o sentimento de rejeição seja algo presente em boa parte da obra do realizador das mais diferentes maneiras, como em O ABISMO PRATEADO (2011), PRAIA DO FUTURO (2014) e A VIDA INVISÍVEL (2019). Também é destaque em seus filmes o deslocamento de seus personagens, ou a busca ou o desejo desse deslocamento, como em O CÉU DE SUELY (2006). Aqui é o próprio cineasta que se desloca, que rememora a mãe, e busca seus parentes naquele cenário tão diferente.
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