quinta-feira, julho 06, 2023

O CONTADOR DE CARTAS (The Card Counter)



A vida é feita de escolhas. Às vezes a gente demora demais a escolher e acaba deixando passar o bonde. E depois surge outra janela de oportunidade em que é possível que novas escolhas sejam feitas. Isso a gente aprende com a vida, mas quem conhece um pouco de astrologia também sabe disso. E dentro das escolhas há o momento do sim. Quando você diz “sim”, o mundo se abre para você. E mesmo que você esteja ainda hesitante, você percebe que fez bem em dizer “sim”.

Recentemente (no ano passado, na verdade) me veio a frase “amar é uma escolha”, dita por uma diretora da escola em que trabalho. Fiquei meditativo sobre a frase, já que para mim amar era algo que era tudo, menos uma escolha. Depois, isso começou a fazer sentido para mim. Para eu começar a amar o cinema, por exemplo, eu escolhi, eu tomei uma decisão. Isso aconteceu lá em 1989, quando eu vi nas bancas a capa da revista SET com o Clint Eastwood. A partir daquele momento, eu decidi que abraçaria o cinema. E esse amor cresceu e rendeu ótimos frutos e o cinema estaria presente na minha vida por muitos e muitos anos. E provavelmente está acontecendo atualmente no terreno afetivo também, essa questão da escolha.

Comecei a escrever sobre essa coisa de escolha, inicialmente pensando ontem na minha busca por um filme para assistir. Pensei em NASHVILLE, de Robert Altman, como uma opção, como uma maneira de preencher uma das várias lacunas que tenho desse realizador. Pensei em algum filme clássico de samurai. Pensei em revisar A MORTE NUM BEIJO, de Robert Aldrich. Pensei em ver um novo filme que me chamou a atenção (SANCTUARY, de Zachary Wigon). Mas me chegou, por assim dizer, O CONTADOR DE CARTAS (2021), de Paul Schrader, para me lembrar que esse era um filme que eu precisava ver. Inclusive, há até um novo filme do diretor que já caiu na rede, MASTER GARDENER (2022), que pretendo ver em breve também.

O fato de eu ter ganhado de presente uma edição da revista Sight & Sound (de junho de 2023) do meu amigo Luiz, uma edição que traz Schrader na capa, com uma longa e interessante (e às vezes controversa) entrevista, também pesou. Acabei vendo o quanto andei subestimando ou deixando passar os filmes do realizador e roteirista, mesmo tendo adorado FÉ CORROMPIDA (2017). Na verdade, FÉ CORROMPIDA foi uma espécie de nova guinada na carreira de Schrader, já que não se esperava algo tão bom assim; o próprio cineasta já supunha que sua carreira seria descendente, levando em consideração sua idade. E não foi isso o que aconteceu.

Agora, vendo os três mais recentes filmes (ainda não vi o último, mas sei que há elementos em comum), é claramente perceptível que o diretor resolveu abraçar de vez o seu amor pelo cinema de Robert Bresson. Em especial, o seu amor por O BATEDOR DE CARTEIRAS. A trajetória do personagem de O CONTADOR DE CARTAS é bastante similar à do jovem ladrão, e o final do filme de Bresson é homenageado. Lendo a citada entrevista descubro que esse final também havia sido homenageado nas conclusões de GIGOLÔ AMERICANO (1980) e O DONO DA NOITE (1992). Ou seja, cada vez mais é preciso resgatar e ver com atenção a carreira de Schrader.

Se em FÉ CORROMPIDA podia-se pensar de imediato em DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA, em O CONTADOR DE CARTAS, o modelo está principalmente (e explicitamente) em O BATEDOR DE CARTEIRAS. Temos aqui a figura do homem atormentado a ponto de não se sentir merecedor do amor e das coisas boas da vida material. O ponto de partida desses novos filmes de Schrader, inclusive o mais recente MASTER GARDENER, é dar ao protagonista apenas uma profissão, pelo menos a princípio. E cada profissão tem um simbolismo bem acentuado.

Esse homem muito bom em jogos de baralho (Oscar Isaac), que quer ser chamado de William Tell, como forma de apagar o passado e seu nome original, tem muitos segredos guardados, memórias que o atormentam e uma rotina que funciona como algo próximo de um sacerdócio, tanto na prisão, quanto na vida livre de ganhar em apostas pequenas para não chamar a atenção. O encontro com duas pessoas, uma mulher (Tiffany Hadish) e um rapaz (Tye Sheridan), muda essa rotina.

Ver O CONTADOR DE CARTAS sabendo o mínimo da trama ajuda bastante o espectador a se envolver e a se deixar levar pela tensão de certos momentos. A cena do primeiro pesadelo do protagonista, saído de seus dias trabalhando numa prisão, parece vinda de um filme de horror bem pesado. A opção por um tipo de lente especial, por uma música pesada, e imagens perturbadoras, aliadas a uma confusão de nossa parte sobre o que está acontecendo, tudo isso contribui para que, a partir desse momento, o filme ganhe camadas mais incômodas, ganhe uma expectativa de que tudo pode acontecer.

Há que se trazer também um pouco da questão moral que nasce das raízes religiosas do diretor. Criado numa comunidade excessivamente puritana de calvinistas, ele só veria o primeiro filme aos 17 anos de idade. Bacharel em filosofia com especialização em teologia, ele estava prestes a se tornar um reverendo, mas optou pela crítica de cinema. O sentimento de culpa é nascido nesse tipo de formação e por isso há conteúdos tão perturbadores em obras de diretores criados em famílias acentuadamente cristãs, sejam eles protestantes (Ingmar Bergman, Carl Theodor Dreyer, Terrence Malick) ou católicos (Martin Scorsese, Alfred Hitchcock, Abel Ferrara, Manoel de Oliveira, Éric Rohmer, John Ford, Clint Eastwood).

Schrader usa a culpa como um aspecto quase doentio da personalidade de seu personagem. William Tell, por exemplo, diz que só vai fazer sexo novamente quando o garoto que ele trouxe consigo voltar a viver com a mãe e largar de vez os pensamentos tóxicos de vingança. Ou seja, ele atrela o seu prazer e a sua alegria a uma boa ação que traria para si algum tipo de redenção, sendo ele tão pecador.

Quanto à dramaturgia, por mais que Schrader se aproxime de Bresson, ele não consegue se distanciar do naturalismo da cinematografia americana. Felizmente Schrader, além de grande roteirista, tem também um cuidado visual que nos encanta. E isso não é novidade. É só lembrar de filmes como GIGOLÔ AMERICANO e MISHIMA – UMA VIDA EM QUATRO TEMPOS (1985), para citar dois do início da carreira do cineasta.

+ DOIS FILMES

POR TRÁS DA LINHA DE ESCUDOS

A ideia de fazer um documentário tentando entender o ponto de vista dos policiais do choque é até interessante. E Marcelo Pedroso (BRASIL S/A, 2014) se esforçou duas vezes para que o acaso e os entrevistados, junto com a edição, trabalhassem a favor de seu filme. A primeira vez foi em 2017, quando POR TRÁS DA LINHA DE ESCUDOS (2023) saiu em festivais e teve uma recepção negativa. Como não vi essa versão de 2017 não sei o quanto houve de mudança nesta nova, editada e com modificações. De todo modo, só de vermos um filme fazendo referência ao anterior já chama a atenção. Pergunta-se: o que houve de tão problemático assim para que o documentário de Pedroso fosse rechaçado? Um dos aspectos honestos do filme é ver o próprio diretor buscando o tempo todo algo muito difícil: se aproximar do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco de tal forma que fizesse com que os policiais entrevistados começassem a baixar um pouco a guarda e falassem algo que não fosse parecido com um discurso oficial. O filme tem seus bons momentos e a montagem é boa o suficiente para que não sintamos a passagem do tempo. Vale ser visto.

LA PARLE

Filmado com câmera de iPhone e com quatro diretores, que são os mesmos quatro protagonistas, este LA PARLE (2022), de Gabriela Boeri, Simon Boulier, Fanny Ledoux-Boldini e Kevin Vastaen, tem um tipo de sensibilidade bem particular. O filme tateia seus próprios caminhos, usando mais a intuição que uma inteligência racional, a fim de obter seus resultados. Na trama, ou quase trama, acompanhamos três jovens franceses (uma moça e dois rapazes) que são recebidos por uma jovem brasileira numa casa na costa basca da França. Aos poucos, somos apresentados a cada personagem. Acredito que as personagens femininas são as mais ricas e interessantes, por lidarem com problemas mais tangíveis e por apresentarem emoções mais à flor da pele. A brasileira escreve cartas para uma avó que está sofrendo de perda de memória, enquanto a francesa destaca sua luta recente contra um câncer. Acredito que, por ser um produto coletivo, o filme parece carecer de uma maior coerência ao longo da narrativa, em estilo livre e muito próximo de um tom documental. LA PARLE foi rodado em 2018, finalizado em 2020 e estreou na França em 2022, acredito que em circuito limitado.

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