sexta-feira, fevereiro 10, 2023

OS BANSHEES DE INISHERIN (The Banshees of Inisherin)



Uma das recordações mais bonitas que guardo é a do funeral do meu avô. Como ele foi uma pessoa muito querida, notava-se no ar o carinho que todas aquelas pessoas presentes em sua despedida nutriam por ele, por sua história de vida, pelo seu bom humor. Eu costumava dizer que gostava mais de meu avô que de meu pai, por exemplo, embora a comparação possa ser injusta. Afinal, as pessoas são diferentes. Mas ver aquelas pessoas batendo palmas para o meu avô enquanto os homens finalizavam sua sepultura me deixou muito comovido e acreditando que sua passagem pela Terra foi para trazer luz, bondade e um exemplo a ser seguido, que valia a pena ser bom, fazer o bem. Meu avô não era letrado e não deixou nada escrito. Nenhum poema, conto ou canção (embora ele adorasse tocar violão). Mas isso faz de sua passagem por esse mundo menos importante? De um ponto de vista mais frio, e analisando as obras deixadas para a posteridade, talvez sim. Esse é um dos pontos que OS BANSHEES DE INISHERIN (2022), quarto (e melhor) longa-metragem de Martin McDonagh, traz.

Filmes sobre amizades foram se tornando frequentes ultimamente. Já havia um punhado na velha Hollywood (Howard Hawks explorava bastante, por exemplo), mas a partir da Nova Hollywood esses exemplares pareceram aumentar, já que o foco passou a ser mais nos personagens do que nas tramas. Mais recentemente, até criaram o termo bromance, para falar de amizades masculinas tão carinhosas que se aproximam de um romance. O que temos neste filme de McDonagh talvez possamos chamar de bromance tóxico. E eu jamais podia imaginar o quanto isso mexeria comigo. Acho que por eu valorizar muito minhas relativamente poucas amizades verdadeiras. 

Na trama, Colin Farrell é Pádraic Súilleabháin, um sujeito que mantém uma amizade duradoura com um homem mais velho que ele, Colm Doherty, vivido por Brendan Gleeson. Acontece que, em determinado dia, Colm decide não falar mais com Pádraic. O rapaz, que trabalha como pastor de bois, não entende o motivo, acha que o amigo está com algum problema. Mas Colm acaba deixando claro que não quer mais a companhia de Pádraic, pois não aguenta mais jogar conversa fora com alguém que nada acrescenta em sua vida. Diferente da irmã Siobhán (Kerry Condon), também solteira, que vive na mesma casa que ele, Pádraic não possui hábitos de leitura e tampouco é famoso por sua sabedoria ou esperteza.

Essa situação é potencializada pelo fato de esses personagens morarem numa ilha pequena da Irlanda dos anos 1920, época de guerra civil no país. Logo, não há tantas opções de amizades naquele espaço desolado, por mais que a bela paisagem do local pareça algo que traz certo refrigério para o espírito. Mas de nada adianta a paisagem tão bem explorada pela linda fotografia de Ben Davis (TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME, 2017), pois Pádraic se sente não apenas abandonado pelo melhor amigo, mas também consciente do pouco respeito que o povoado tem por ele.

A situação do personagem de Colin Farrell, mesmo dolorosa, a princípio traz momentos de humor, graças ao roteiro tão bem construído e às interpretações inspiradas do excelente elenco (Farrell faz o papel da vida dele aqui). O personagem de Gleeson é também fascinante. Inclusive por levar suas decisões a consequências assustadoras. Tanto que, em certo momento, a história ganha contornos de cinema de horror, o que a torna ainda mais desconcertante.

Não é um filme com personagens que agem com prudência ou inteligência, mas justamente por isso gera um enredo tão cheio de intensidade, com direito a uma personagem idosa semelhante a uma bruxa e que justifica o título que remete a lendas do folclore irlandês. Adoro a personagem de Kerry Condon, que faz essa contraparte feminina, sensível e inteligente num mundo de homens brutos. O filme seguir num crescendo de angústia contribui para que provoque um aperto no coração. É tão belo quanto cruel, e um desses exemplares singulares que ficam nos assombrando por muito tempo.

+ DOIS FILMES

FALANDO SOBRE ÁRVORES (Talking about Trees)

E eis que um dos filmes mais bonitos sobre o amor pelo cinema que eu já tive o prazer de ver na vida vem do Sudão, um país que está longe de ter uma tradição (conhecida) em se tratando de cinema. Em FALANDO SOBRE ÁRVORES (2019), de Suhaib Gasmelbari, misto de documentário e encenação, quatro amigos diretores de cinema vivendo a terceira idade compartilham seu amor pelo cinema e têm o projeto de trazer de volta uma sala fechada e abandonada há décadas. Aos poucos, vamos conhecendo mais da triste história do Sudão e de como o fechamento dos cinemas no país teve razões políticas. O país passou por guerras civis e ditaduras entre momentos supostamente democráticos e o que sobrou para o cinema foi o abandono e o esquecimento das obras de seus realizadores. É difícil não sair da sessão com um aperto no peito (o que são aquelas cenas das latas de filme abandonadas?), mas também feliz de ter conhecido esses senhores. Feliz por eles terem compartilhado conosco esse amor mútuo.

UMA VEZ MAIS (Once More / Encore)

Com apenas dois filmes (da década de 1980) vistos de Paul Vecchiali (por mim), é possível notar um gosto pela tragédia, pela celebração do amor de forma dramática. Saio dos prostíbulos parisienses do lindo ROSA LA ROSE, GAROTA DE PROGRAMA (1986) e entro na vida proibida e ambientada em guetos dos grupos de homossexuais sacrificados pela epidemia da AIDS na década de 1980. Na trama de UMA VEZ MAIS (1988), Jean-Louis Rolland é um homem que se vê insatisfeito com o casamento que leva e com o fato de não amar a esposa. Resolve sair de casa e é desses homens facilmente amados por outras pessoas, inclusive um homem, por quem se apaixona. Para tornar as emoções ainda mais à flor da pele, a dramaticidade é acentuada e há espaço para belas canções. Curiosamente, costumo associar os musicais (hollywoodianos) à alegria, mas a minha experiência com o musical francês é associada com frequência à tristeza. Minha homenagem a Paul Vecchiali (1930-2023) foi conferir mais um filme desse realizador que merece um maior reconhecimento.

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