sábado, agosto 13, 2022

CRIMES OF THE FUTURE



Podemos perceber em alguns autores veteranos uma tendência a trazer uma reflexão mais explícita sobre o corpo envelhecido, à medida que o peso da idade traz, cada vez mais, uma mudança na maneira como nos comportamos ou sentimos o mundo, devido a insuficiências crescentes. Pedro Almodóvar fez um filme sobre suas doenças em DOR E GLÓRIA; Clint Eastwood vem abordando o peso do envelhecer desde pelo menos os anos 1980, mas isso fica ainda mais explícito no mais recente CRY MACHO – O CAMINHO PARA A REDENÇÃO; Jean-Claude Brisseau preferiu aprofundar suas reflexões entre o corpo e o espírito em QUE LE DIABLE NOUS EMPORTE; Martin Scorsese usa as novas tecnologias para trabalhar o rejuvenescimento dos corpos (nem sempre com sucesso) em O IRLANDÊS; e agora temos o retorno de David Cronenberg, abordando, à sua maneira, as transformações no corpo, especialmente ao apresentar um protagonista tão frágil, vivido pelo ator com quem ele mais trabalhou, Viggo Mortensen.

CRIMES OF THE FUTURE (2022) é a volta de Cronenberg ao universo do body horror e da ficção científica numa chave mais próxima da arthouse do novo milênio, como em COSMÓPOLIS (2012), do que de algo do entretenimento, como em A MOSCA (1986). Mesmo assim, é um poço de autorreferências de seus filmes dos anos 1980/90, e novamente com a estranheza da relação entre tecnologia e corpo humano. E reutilizando o título de um filme de sua fase pré comercial, o homônimo de 1970.

Cronenberg nos faz refletir sobre o aspecto cada vez mais artificial do homem, à medida que ele se afasta de seu lado animal. O homem é um ser cujo modo de vida está cada vez mais atrelado a modificações provocadas pela ciência e por fatores culturais. Hoje em dia, por exemplo, pode-se dizer que a maternidade, para o ser humano, é mais uma construção social do que um instinto. Além disso, a quantidade de remédios que tomamos hoje modifica praticamente todos os aspectos de nosso viver.

A trama de CRIMES OF THE FUTURE se passa num futuro em que as pessoas não sentem mais dor, sendo que algumas delas pagam para poder sentir um pouco. Afinal, sentir dor é sentir-se vivo também. Enquanto isso, um homem (Mortensen) começa a ter órgãos estranhos nascendo e crescendo dentro de seu corpo. O que nos faz lembrar do útero mutante da personagem de GÊMEOS – MÓRBIDA SEMELHANÇA (1988). O protagonista do novo filme usa essa peculiaridade de seu corpo para fazer espetáculos de arte com sua parceira (Léa Seydoux). Nas apresentações, ela é a agente ativa, abrindo o corpo dele, para retirar os tais órgãos, que ainda por cima surgem com tatuagens. “Cirurgia é o novo sexo”, diz a personagem de Kristen Stewart, após assistir a uma dessas performances. E de fato enquanto ele está sendo cortado e mexido por dentro, Mortensen deixa notar um prazer próximo do gozo do sexo.

Muito do magnetismo do filme vem das duas moças, Léa e Kristen Stewart. E eu diria que a cena mais erótica (envolvendo Kristen) chega a se aproximar (de maneira mais bizarra, até) da carga sensual de CRASH – ESTRANHOS PRAZERES (1996). Na tal cena, ao pedir, com lágrimas nos olhos e com a voz falhando, que Mortensen faça uma cirurgia nela em uma de suas performances, fica muito claro que aquilo é a representação linda de uma jovem implorando para fazer sexo com aquele homem. E isso é sublime de ver. O sentimento, a fragilidade e o desejo, juntos.

Por isso CRIMES OF THE FUTURE alcança muito mais força quando lida com as cirurgias, as performances e esse novo sexo. Como Cronenberg adora trazer à tona situações em que o desconforto anda de mãos dadas com o prazer, as cenas provocam esse misto de sentimentos. A cena do zíper, por exemplo, é genial no modo como explicita a feminilização do corpo de Mortensen e a masculinização do comportamento de Seydoux. (Claro que vivemos em um momento particularmente mais complexo quanto às definições do que é masculino ou feminino, mas tais noções ainda são adotadas para definir ações ou papéis.)

Há alguns momentos que me tiraram um pouco do filme – em especial as cenas com um detetive de polícia (Welket Bungué) –, mas tudo o mais parece muito interessante e por vezes empolgante. Também adoro a trilha sonora de Howard Shore, parceiro do diretor em diversos trabalhos. Em vários momentos, Shore amplifica os nossos sentimentos e sensações. Além do mais, não é sempre que temos um Cronenberg novo nos cinemas. Celebremos.

+ DOIS FILMES

BUIO OMEGA

Finalmente vi o lendário BUIO OMEGA (1979), de Joe D’Amato, um dos títulos selecionados por Carlão Reichebach para integrar as até hoje muito lembradas sessões do Comodoro. O próprio Carlão era muito entusiasta deste exploitation. Recentemente vi o filme original, O TERCEIRO OLHO (1966), e gostei bastante. D'Amato pega a história e reconstrói de modo a torná-la mais violenta e explícita. Vejo BUIO OMEGA até mais devedor de PSICOSE do que o filme de 1966, já que Franca Stoppi, a governanta bruxa, parece muito mais com a "sra. Bates", que chega para fazer a limpeza quando o rapaz, Frank (Kieran Canter), mata mais uma de suas vítimas. Há, inclusive, uma relação meio edipiana entre os dois, sendo que ela é apaixonada por ele, enquanto ele só quer saber da noiva empalhada, deitada inerte na cama. Grandes momentos: a cena da autópsia/empalhamento; o embate final entre Frank e a governanta; e, principalmente: o momento da carona, depois do recolhimento do corpo no cemitério. Filme visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Italiano.

SONHOS ALUCINANTES (Let’s Scare Jessica to Death)

Eis um daqueles filmes que, por algum motivo, eu jurava ter visto, e que por ocasião de um comentário elogioso de um amigo percebi que não tinha visto e que estava de fácil acesso vê-lo. SONHOS ALUCINANTES (1971), de John D. Hancock, é uma obra que bebe muito da atmosfera do cinema da virada da década de 1960 para os anos 1970, com algo de lisérgico em seu andamento e na composição da personagem principal, Jessica, que acabou de sair de um sanatório e está se mudando para uma cidade do interior, uma cidade desconhecida e que tem aquela estranheza bizarra já mostrada em vários filmes americanos que tratam de pessoas do meio rural como algo desconhecido e que por isso mesmo cabe dentro do gênero. O fato de Jessica não confiar naquilo que vê funciona como um elemento conflituoso para o espectador. Outra coisa muito legal é que SONHOS ALUCINANTES não se vende como um filme do subgênero específico que fazia sucesso na época (não vou dizer qual é para não dar spoiler). Além do mais, há uma beleza na atuação dos quatro atores e atrizes que o afasta da categoria dos exploitation movies. O crítico de cinema que fala nos extras do DVD até o compara a títulos dirigidos por Robert Altman na época, para se ter uma ideia do seu aspecto mais sofisticado. Filme visto no box Obras-Primas do Terror 13.

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