segunda-feira, abril 05, 2021
SUPLÍCIO DE UMA ALMA (Beyond a Reasonable Doubt)
Briguei muito com ele [o produtor]. Fiquei muito desgostoso. Disse o que queria ao montador, Gene Fowler, e fui embora, sabendo que o filme estaria em boas mãos. Olhei para o passado - quantos filmes mutilados - e, uma vez que não tinha qualquer intenção de morrer de ataque cardíaco, disse a mim mesmo: "Acho que vou desistir disso". E decidi nunca mais filmar nos Estados Unidos.
(Fritz Lang, entrevista a Peter Bogdanovich, em Afinal Quem Faz os Filmes)
Essa foi a única coisa que Lang falou ao diretor/entrevistador a respeito de SUPLÍCIO DE UMA ALMA (1956), a despedida do realizador de Hollywood. O que é uma pena que tenha ocorrido, já que sua passagem pelos Estados Unidos não foi menos do que brilhante. Mas imagino que ter engolido tantos sapos não faz mal para ninguém. O curioso é que, apesar de todos os atritos, este seu último filme americano é ótimo, muitos o consideram uma obra-prima injustiçada.
Os dois últimos filmes de Lang nos Estados Unidos são obras de baixo orçamento, o que, aliás, é triste de notar, dadas as comparações que costumam fazer entre Lang e Alfred Hitchcock. Enquanto o inglês se tornou pop, trabalhando em produções caríssimas, praticamente um dono de Hollywood, Lang enfrentou uma série de dificuldades, pulando de estúdio para estúdio. Os dois últimos títulos são produções da RKO e são uma espécie de retorno às preocupações sociais que o cineasta havia trazido para os Estados Unidos em filmes como FÚRIA (1936) e VIVE-SE UMA SÓ VEZ (1937).
O tema do filme, a pena de morte, é mais uma prova do caráter humanista da obra languiana. Já no prólogo, quando vemos uma cena de execução na cadeira elétrica, a câmera não mostra o sofrimento do homem morrendo fritado, apenas as reações dos presentes. Quem já acompanhou os filmes de Lang sabe que ele segue essa tradição de, mesmo em filmes de temática violenta, evitar a violência gráfica.
SUPLÍCIO DE UMA ALMA, que ganhou uma refilmagem em 2009, por Peter Hyams, aqui no Brasil chamada de ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA, apresenta uma história no mínimo intrigante. O dono de um jornal (Sidney Blackmer), um cidadão contrário à pena de morte, pretende fazer uma experiência, provando que a justiça é falha e é capaz de matar um inocente por erros em processos legais. Seu genro, Tom Garrett (Dana Andrews), interessado também em fazer um estudo para seu segundo romance, aceita plantar provas de um crime, de modo que ele passe a ser, para a polícia, o responsável por um assassinato não solucionado de uma stripper.
O ponto de partida do filme é bastante empolgante e o filme é redondinho em seus 80 minutos de duração. Pena que o desenvolvimento não seja tão bom quanto a primeira metade da narrativa, ainda que, visto em retrospecto, SUPLÍCIO DE UMA ALMA seja uma obra mais do que digna. Inclusive o filme justifica a segundo parceria com Dana Andrews, cuja figura dúbia cai muito bem como alguém que é visto por um júri popular como um potencial assassino.
Uma das coisas que desagradaram os espectadores foi a mudança do protagonista, de uma figura inocente se passando por um culpado, para um sujeito que acreditávamos ser inocente sendo na verdade o grande culpado. Esse detalhe é mais interessante do que parece, é muito mais do que uma pegadinha, pois é Lang nos convidando a refletir sobre julgamentos, sobre a inocência e a culpa. Inclusive quando mostra a namorada de Garrett (Joan Fontaine) preferindo entregar o sujeito à polícia do que escondê-lo. Do ponto de vista moral, é perfeitamente compreensível, e, nós do lado de cá da tela também acabamos demonizando o protagonista, que nos enganou. Mas será que fazendo isso não nos tornamos tão cruéis quanto o próprio sistema que mata pessoas em uma cadeira elétrica?
É interessante notar que o que Lang faz em SUPLÍCIO DE UMA ALMA é uma inversão de algo que ele havia feito em A GARDÊNIA AZUL (1953). Novamente, o tema da culpabilidade de uma pessoa é posta em prova, usando uma inteligente elipse para enganar o espectador. Mas com todo o respeito.
+ DOIS CURTAS E UM MÉDIA
A VOZ HUMANA (The Human Voice)
Pedro Almodóvar não para. Está filmando outro longa e tem mais três trabalhos em pré-produção. Infelizmente li pouco dos escritos que ele publicou no início da pandemia, mas, do pouco que li, era tudo tão bom e cheio de intensidade. Gosto também do tom memorialista que ele adota, tanto nos escritos quanto em vários de seus filmes. A VOZ HUMANA (2020) parece feito para soltar os demônios, libertar-se daquilo que fica engasgado, ainda mais quando se está em confinamento. A personagem vivida por Tilda Swinton não está em confinamento por causa da Covid, mas porque espera o ex-marido (ou ex-namorado?) voltar. Espera angustiada, com tentativas de dormir para acalmar o espírito com pílulas, e de acordar com café para se manter ativa. A linda fotografia do sempre presente colaborador José Luis Alcaine continua alinhada com as cores vivas de Almodóvar e o calor de seus sentimentos. E falar em calor sobre este filme não é usar uma figura de linguagem.
O DESPERTAR DE WOTON (Woton's Wake)
Se em MURDER À LA MOD (1968) havia um experimentalismo forte, para o que ficaríamos acostumados a ver nos filmes do De Palma a partir dos anos 1970, é de se esperar que seus primeiros curtas fossem experiências ainda mais livres. Este seu terceiro curta, O DESPERTAR DE WOTON (1962), tem os elementos da comédia e da paródia, além do interesse por crimes, coisas que apareceriam com frequência nas obras mais "comerciais" do diretor. Achei meio bagunçado, mas é interessante. Apresenta o protagonista, Woton, um maníaco que se veste como Jack, o Estripador, que caça suas vítimas e coleciona seus apetrechos roubados. Há também o gosto por máscaras, uma obsessão do diretor, que aparece forte aqui. A dificuldade que eu tive de entender a narrativa talvez se resolva com uma revisão. É interessante também notar a brincadeira que ele faz com O SÉTIMO SELO, de Bergman, e o modo como ele já antecipa uma contracultura que era ainda bastante tímida no cinema americano. Assim, a bomba atômica parece ser mais saída do espírito dos anos 1950, enquanto a orgia dos jovens antecipa, com ousadia, o cinema da Nova Hollywood, prestes a desabrochar.
UM DIA NO CAMPO (Une Partie de Campagne)
Eu preciso ter vergonha na cara e parar de ver os filmes de Jean Renoir como desculpas indiretas. No ano passado vi dois filmes magníficos dele por causa de Fritz Lang. UM DIA NO CAMPO (1936/1946), eu vi por causa de LA FLOR, de Mariano Llinás, que presta uma homenagem meio torta. Achei de uma beleza fenomenal. O sentimento de gratidão e de apreciação da vida, da natureza, e que também se manifesta na escapulida que mãe e filha dão com dois rapazes que conhecem, tudo isso é algo de celebração. Ao mesmo tempo, há algo da aproximação do sujeito à jovem, meio que à força, pelo menos a princípio, que me incomodou um pouco e me causou sentimentos mistos. Ainda tem aquela imagem linda da chuva no rio (sempre as águas nos filmes de Renoir) e o momento de silêncio e de contemplação da natureza dentro do barco. Uma pequena obra-prima inacabada. 40 minutos que passam voando.
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