“I want to see if we can really film dreams - our fears, our regrets, our nostalgia.”
Abel Ferrara
Para quem costuma reclamar dos filmes do Abel Ferrara produzidos no novo milênio e tem saudade dos trabalhos gloriosos do cineasta na década de 1990, SIBÉRIA (2020) vai trazer de maneira ainda mais forte essa sensação. Afinal, o diretor, por mais que aparentemente tenha deixado as drogas, aqui opta por uma experiência muito parecida com uma bad trip ou algo parecido. Estamos em um território onde o espaço e o tempo são confusos como em um pesadelo ou um sonho desconfortável. O filme é inspirado no Livro Vermelho, de Carl Jung, e certamente será melhor compreendido por quem estudou psicologia, estudou Jung.
Há algo de Browning (ou de Lynch) na jovem anã na cadeira de rodas ou na anciã sangrando na cama. Há um excesso de simbolismos que faz do filme um prato cheio para a psicanálise. Nunca a presença do parceiro de roteiro de Ferrrara, Christ Zoist, pareceu tão explícita. Zoist tem colaborado com o diretor ítalo-americano desde ENIGMA DO PODER (1998), justamente o filme que representa a transferência de cetro de Christopher Walken para Willem Dafoe, os dois maiores atores-fetiche e/ou alter-egos do cineasta. Com SIBÉRIA, Dafoe e Ferrara firmam parceria pela sexta vez.
Muitas vezes este novo filme passa a impressão de ser a obra mais pessoal do diretor, principalmente por mostrar sua relação com os pais e com o irmão, sua infância e também mostrar um casamento que não deu certo, e no quanto há de remorsos a ser trabalhados nesse auto-exílio.
A ânsia pela espiritualidade aparece de maneira torta, como é comum nos filmes do realizador - aqui o protagonista busca aprender práticas de magia negra. Quanto às imagens, poucos filmes do realizador trazem imagens tão belas. A experiência deve crescer bastante na telona. Eu, que vi e revi quase todos os filmes de Ferrara em casa neste tão singular 2020, nunca senti uma necessidade tão grande da telona como neste trabalho. Então, fica uma vontade grande de rever no cinema, até como uma nova oportunidade de penetrar na obra.
Na trama, Dafoe é Clint, um homem torturado pelo passado e que trabalha em um bar remoto em um local gelado. Ele não sabe falar a língua da grande maioria das pessoas que aparecem no bar: vemos esquimós, russos e há uma cena que se destaca entre clientes. Trata-se da cena com uma senhora idosa chegando no bar com sua filha bastante grávida, vivida pela bela Cristina Chiriac, atual esposa de Ferrara, e coprotagonista de TOMMASO (2019), seu filme anterior, ainda não visto por mim. A filha dos dois, aliás, a pequena Anna, também aparece no filme, o que só aumenta ainda mais a impressão de se tratar de uma obra muito pessoal do realizador.
Vale destacar que a tal cena com a mulher grávida talvez seja a mais sensual e bonita já filmada por Ferrara, por mais que a concorrência seja difícil, se lembrarmos de Asia Argento no já citado ENIGMA DO PODER, as cenas do metrô no segmento "Love on the A Train" (1997) ou o striptease de Melanie Griffith em CIDADE DO MEDO (1984).
Ainda assim, dos dois filmes do diretor exibidos na Mostra, o menos ambicioso e mais jazzístico SPORTIN' LIFE (2020) me ganhou muito mais facilmente. Mas, nada que uma revisão não possa mudar essa impressão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário