sexta-feira, novembro 13, 2020

BOCA DE OURO



Um mundo muito estranho este da pandemia. Sair de casa, como diz uma canção do Los Hermanos, já é uma grande aventura. E ir ao cinema, que é uma atividade que a maioria dos meus amigos cinéfilos deixou de fazer, por conta do perigo de contato com o vírus, pra mim ainda é uma tentação, por mais que tenha diminuído bastante as idas. Mesmo assim, lá fui eu ver como anda a situação no Cineteatro São Luiz, que anda exibindo uma série de filmes brasileiros que não estão no cardápio das demais salas. Um filme como BOCA DE OURO (2019), por exemplo, com um elenco estelar, tempos atrás teria ótimas chances de conseguir uma boa bilheteria.

Assim, estacionei onde costumo e gosto de estacionar quando vou ao Centro, tentei vender uns quadrinhos no sebo de HQs (sem sucesso), comprei o ingresso, contemplei a Praça do Ferreira, que contava com um homem evangélico pregando, entrei no Café Santa Clara, que fica na esquina do Edifício São Luiz, cumprimentei as duas moças que trabalhavam no café do Dragão, antes de fecharem por causa da pandemia, e tomei um café, enquanto olhava a praça, a minha favorita da cidade. O que mais me deixou triste, antes e durante a sessão, foi o aumento absurdo de pedintes nas ruas. De fato, estamos vivendo uma tragédia nacional sem precedentes.

No cinema, o esquema de distanciamento é semelhante ao das salas do Cinema do Dragão, com lugares impossibilitados de sentar e uma pessoa para nos guiar, além de checagem de temperatura. Quando cheguei na sala, havia só mais duas pessoas dentro daquele cinema enorme. Quando saí da sessão (já que costumo me sentar lá na frente), vi que havia um número um pouco maior de espectadores.

O meu interesse por BOCA DE OURO vem por diversos motivos. Há o texto de Nelson Rodrigues, que é um autor que costuma garantir o sucesso de vários filmes adaptados de suas peças e contos; há a volta de Daniel Filho na direção, depois de um hiato longo - seu trabalho anterior é o divertido SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO (2014); e há um elenco muito atraente (a volta de Malu Mader e a presença de nomes como Marcos Palmeira no papel-título, Guilherme Fontes, Fernanda Vasconcellos, Anselmo Vasconcelos, além do próprio Daniel Filho). Mas quem se destaca mais no filme é mesmo a jovem Lorena Comparato, no papel de Celeste, a mulher casada que cai nas graças do gângster de dentes de ouro. Outro ator jovem, mais conhecido pelas telenovelas, Thiago Rodrigues, faz o papel de seu marido, Leleco, que na versão de Nelson Pereira dos Santos (1963) havia sido feita pelo próprio Daniel Filho - já nem lembrava disso.  

A estrutura é igual à do filme de Nelson Pereira dos Santos, uma espécie de RASHOMON, com a personagem de Malu Mader contando três histórias diferentes, ao mesmo tempo contraditórias e complementares sobre o temido Boca de Ouro, bicheiro que acabou de ser encontrado morto. A dupla de repórteres que entra na casa de Guigui (Mader) para colher depoimentos, acaba por ouvir essas três histórias, mudadas de acordo com o humor ou a vontade da narradora. As histórias se equilibram em momentos muito bons e outros menos interessantes, mas todas elas são atraentes e poderosas no uso da violência rodrigueana e que agora pode ser vista de maneira mais explícita.

Daniel Filho segue um caminho de sangue e nudez, que já era um caminho trilhado pelos melhores especialistas em adaptações de Nelson Rodrigues, Neville D'Almeida e Braz Chediak. Mas aqui ela é mais gráfica, mais derivada do cinema de horror, e mais bonita plasticamente. E é uma violência que vai além do visual, já que Boca de Ouro é um personagem extremamente perturbador, seja quando procura estuprar a mulher e matar o marido; seja quando faz concurso de seios mais bonitos; seja quando planeja a execução de uma mulher em sua casa. Assim, há espaço para fazer bombear fortemente o coração do espectador diversas vezes, com os atos cruéis desse fascinante personagem da literatura brasileira.

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