segunda-feira, agosto 10, 2020

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER (The Unbearable Lightness of Being)

Na época que A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER (1988) foi lançado nos cinemas, ele foi festejado como uma das produções americanas que melhor ousaram tratar do sexo de maneira tão aberta. Tanto que nem parece filme americano. A trinca de atores principais não é americana: Daniel Day-Lewis é inglês, Juliette Binoche é francesa e Lena Olin é sueca. Mesmo o diretor, Philip Kaufman, americano, depois deste filme, começou a namorar mais a cultura europeia, em HENRY & JUNE - DELÍRIOS ERÓTICOS (1990) e CONTOS PROIBIDOS DO MARQUÊS DE SADE (2000). Seu filme mais celebrado pela crítica talvez ainda seja OS ELEITOS (1983), presente em diversas listas de melhores dos anos 1980.

Mas minha intenção era fazer um texto daqueles mais memorialistas, já que este filme foi um dos mais importantes para o início da minha cinefilia. Enquanto aguardava o lançamento nos cinemas (o filme estreou em minha cidade no saudoso Cine Fortaleza), eu lia o romance de Milan Kundera e ficava muito intrigado em como seria feita a adaptação, já que não se trata de um romance tão focado na trama, mas mais em discussões filosóficas. A trama e seus personagens são mostrados com o carinho devido, mas é como se fossem um meio para que o escritor tcheco pudesse nos apresentar discussões sobre o mito do eterno retorno, o kitsch, a representação da imagem de Deus, entre outros tantos debates interessantes.

Alguns desses debates são colocados no filme na boca dos personagens em alguns momentos, e até podem parecer por vezes artificiais, mas foi uma forma que Kaufman e o célebre roteirista Jean-Claude Carrière encontraram para colocar um pouco do muito que há de questões filosóficas no livro de Kundera. Por outro lado, há coisas no filme que são de natureza extremamente cinematográfica, como a linda cena em que as duas mulheres, Tereza (Binoche) e Sabina (Olin), fazem sessões fotográficas de seus corpos nus. Tereza sabia que Tomas (Day-Lewis) era amante de Sabina e ter a oportunidade de ver em detalhes o corpo nu daquela mulher provavelmente traria muitos sentimentos conflitantes em sua mente. E o filme explora isso de maneira muito bonita, destacando tanto a sensualidade e a autoconfiança de Sabina, quanto a timidez e a difícil entrega de Tereza à nudez.

Na época que vi o filme, em 1989 ou 1990, não lembro exatamente, estava na escola ainda e minha excitação em vê-lo se dava por diferentes motivos: havia já um texto excelente do Eugenio Bucci publicado nos áureos tempos da revista SET que me serviu como um aperitivo, havia o interesse pelos corpos nus daquelas mulheres lindas e pelo erotismo, havia a admiração pelo aspecto sedutor de Tomas e havia o interesse em fazer essa comparação entre a obra literária e a obra cinematográfica. Mal sabia eu que eu faria um mestrado em literatura comparada décadas depois e estudaria o assunto para a minha dissertação.

Rever o filme neste fim de semana foi novamente muito prazeroso, por mais que estivesse bem mais distante da memória da obra de Kundera. Ainda assim, admirei a sensibilidade com que Kaufman e Carrière fecharam a narrativa, antecipando a tristeza para, em seguida, nos deixar apenas com a eternidade da felicidade do casal Tomas-Tereza. Achei que deram muito pouco espaço para Franz, personagem importantíssimo do livro, mas talvez tivessem que fazer isso por causa da duração - o filme tem quase três horas, talvez muita coisa tenha ficado na mesa de edição, um problema comum em se tratando de adaptações de romances.

Uma coisa que ainda me deixa muito impressionado é o luxo do filme. E quando falo em luxo nem me refiro à direção de arte, que é sim muito boa, mas em poder contar com artistas de primeiro escalão como Daniel Day-Lewis, que na época ainda não tinha se consagrado com três Oscars e sido considerado um dos melhores do mundo; Juliette Binoche, que talvez ainda fosse só vista como um rosto (e corpo) bonito, mas que depois seria respeitada como uma atriz fantástica que é; e nomes de peso, tanto no roteiro (Carrière, mais conhecido como parceiro de Luis Buñuel na fase francesa), quanto na direção de fotografia (Sven Nykvist, colaborador habitual do grande Ingmar Bergman). Ou seja, não dava para dizer que eles não contavam com gente de primeiríssima linha na equipe.

O espírito do tempo (1968) é mostrado em cenas da invasão dos tanques às ruas estreitas da cidade, na mistura de cenas em preto e branco documentadas com cenas filmadas incluindo Tomas e Tereza, destacando as tentativas (vãs) da população de tirarem os invasores de seu país. A versão tcheca de "Hey Jude", dos Beatles, é cantada por Marta Kubišová, muito popular na época em seu país e com canções que se tornaram símbolos da resistência, tanto que seus álbuns foram todos banidos das lojas tchecas em 1969. Quem viu o filme NO INTENSO AGORA, de João Moreira Salles, vai logo se lembrar da cena dos tanques e da proibição das fotografias e filmagens no país.

Se eu fosse citar as cenas de que mais gosto, gastaria muito tempo aqui, embora já tenha destacado a cena da sessão de fotos. Mas toda a interpretação de Day-Lewis como Tomas é brilhante. Faz-nos ter um pouco de inveja dele, de seu personagem, de seu olhar capaz de, tão facilmente, levar para a cama mulheres dos mais variados tipos. No romance, a mulher que se encanta com ele enquanto ele está lavando janelas é citada como de pescoço de girafa. Ou seja, ele gostava também da variedade. As cenas de intimidade de Tomas, tanto com Sabina, uma amiga-amante adorável, quanto com Tereza, sua esposa um tanto triste com suas saídas com outras mulheres, mas lindamente carinhosa, são também destaques.

Adoro uma cena em que ela acorda de um sonho ruim e Tomas a abraça, dizendo: "Você pode dormir, durma em meus braços, durma como um passarinho". É lindo isso. E há a cena do retorno dele a Praga, mesmo um tanto contrariado com a fuga da esposa, com o fato de agora os dois estarem presos em um país com um regime totalitário cruel, agora que os russos tomaram de conta. O olhar dele, o dela. A cachorrinha Karenin correndo para buscá-lo na porta. Aliás, o quanto Karenin é representativa do amor que o filme traz, hein. Belíssima obra, que cresceu ainda mais na revisão, e mais ainda agora enquanto estou lhe dedicando essas linhas.

Agradecimentos à Paula, que mais uma vez topou ver um filme da minha "curadoria", em esquema simultâneo.

+ TRÊS FILMES

EMMA.

Que bom que o pessoal do Cinema na Varanda resolveu escolhê-lo para a discussão da semana, já que foi o empurrãozinho que eu precisava para dar-lhe uma segunda chance (havia desistido depois de uma noite de impaciência). EMMA. é um filme que vai se tornando melhor à medida que a trama se desenrola, que os personagens deixam de se esconder atrás de afetações e leves arrogâncias para se mostrarem como realmente são. Como é o caso principalmente de Emma, tão lindamente interpretada por Anya Taylor-Joy, tão radiante quanto a bela fotografia, que destaca o amarelo das flores e o verde da grama. A maior parte das cenas se passa durante o dia, inclusive. Muito sol. Mas o filme me ganhou mesmo nas cenas em que alguns personagens mostram ao máximo suas fragilidades e uma diretora então especializada em videoclipes se mostra bem sensível aos espíritos apaixonados. Direção: Autumn de Wilde. Ano: 2020.

A CAUDA DO ESCORPIÃO (La Codda dello Scorpione / The Case of the Scorpion's Tail)

Não há como negar o charme deste belo giallo e as surpresas que ele traz com os caminhos que a trama vai tomando, à medida que os assassinatos vão se somando. O ideal é ver o filme sem saber nada a respeito, para não estragar um pouco essas surpresas. A trama inicialmente acompanha uma mulher que é beneficiada com uma soma em dinheiro de um milhão de dólares, do seguro deixado pelo marido, morto em um acidente aéreo. Curiosamente, este seria o filme que eu veria em homenagem a George Hilton, falecido no ano passado, mas que acabei não vendo por algum motivo. Foi bom só ter visto agora, pois só depois surgiram cópias restauradas. A cópia constante no box Giallo Vol. 6, da Versátil, está lindona. Há ainda dois extras sobre o filme para ver. Quanto às mulheres, destaque para a sueca Anita Strindberg, que no ano seguinte faria outro filme com Martino, NO QUARTO ESCURO DE SATÃ (1972). Direção: Sergio Martino. Ano: 1971.

PEDRO SOB A CAMA

Filme pequeno, mas com potencial para gerar emoções fortes envolvendo a distância e a reaproximação de um pai na vida de seus dois filhos. Os meninos estão muito bem, e Fernando Alves Pinto também. Na trama, Pedro é um menino sonhador que não fala, abandonado pelo pai tão logo nasceu. Ao saber que o pai retornou à cidade, ele toma uma decisão ousada: invade a casa dele e se esconde debaixo da cama, a fim de acompanhar um pouco a rotina do homem que pouco conhece. Visto no Cine Ceará de 2017. Direção: Paulo Pons. Ano: 2017.

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