sábado, junho 06, 2020

MARTIN EDEN

A princípio, quando comecei a ver MARTIN EDEN (2019), lembrei-me bastante de SYNONYMES, de Nadav Lapid, filme do mesmo ano. A semelhança entre os dois se dá pelo fato de ambos os protagonistas serem figuras de certa forma ingênuas e muito dispostas a aprender. No entanto, as intenções do aprendizado de ambos é bastante distinta. Enquanto o israelense do filme de Lapid quer esquecer sua nacionalidade e se tornar um francês, Martin Eden, o protagonista do filme adaptado do romance homônimo de Jack London, se encanta com a educação de uma linda mulher, mas também se encanta com a alta literatura, a ponto de querer se tornar um escritor. Ele, que nem terminou o primário e conjuga verbos de forma errada. Ninguém acredita em Martin. Só ele.

O diretor Pietro Marcello já tem um currículo com 13 títulos, entre curtas e longas-metragens. É um cineasta que veio do documentário e MARTIN EDEN é seu segundo filme de ficção. Em entrevista à revista Cinema Scope, ele diz que o fato de ter vindo do documentário teve um efeito bastante particular na narrativa do filme. Diz que por isso não segue uma tradição tipicamente anglo-saxã de um roteiro bem-estruturado. Para o roteiro, ele contou com a parceria de Maurizio Braucci, que havia trabalhado com Abel Ferrara em NAPOLI, NAPOLI, NAPOLI (2009) e com Matteo Garrone em GOMORRA (2008). Curiosamente, são dois filmes que abordam a máfia napolitana.

A cidade de Nápoles é também cenário de MARTIN EDEN, um filme que causa estranheza por nunca se situar temporalmente. Ora parece anos 50, às vezes anos 70 ou 80, e outras vezes, no período anterior a uma das grandes guerras. A política também é fundamental para o aspecto complexo de Martin, um homem que se diz individualista, que faz críticas a um grupo de trabalhadores grevistas, mas que acaba por ser visto como um socialista pela família neoliberal da namorada. O filme me deixou confuso em diversos momentos, por causa desses aspectos.

Há duas mulheres importantes em cena. A primeira delas surge logo no início do filme. Margherita trabalha como garçonete e transa com Martin quando o conhece em uma festa. Porém, no dia seguinte, o protagonista conhece Elena, pertencente a uma família aristocrata. É Elena que trará sede de conhecimento para Martin, um homem bruto, mas bastante insatisfeito com o trabalho braçal a que precisa se submeter. Assim que bota na cabeça que quer ser escritor, essa insatisfação só aumenta.

O ator que interpreta Martin Eden, Luca Marinelli, confere ao personagem uma verdade admirável nos diversos momentos de sua vida. Seja na fase ingênua, passando pela crise financeira e tentativa hercúlea de conseguir espaço para seus textos em revistas, até o final, de riqueza financeira, mas de completa amargura, tudo isso é sentido com muita dor. O filme, inclusive, não dá muito espaço para que sintamos um pouco da alegria de amar durante os melhores momentos de Martin com Elena. Afinal, ele gosta de sair viajando, e se comunica com ela muitas vezes através de cartas.

Assim, o filme não é nem uma história de amor, nem uma história de superação ou uma narrativa sobre a história política italiana, embora possa ser um pouco disso tudo também. Pode ser um filme sobre o prazer do conhecimento e da cultura, e de como essa cultura acaba por não trazer ao protagonista a felicidade almejada, ou algum tipo maior de satisfação. Talvez pelo fim do relacionamento com Elena, mas também por causa do suicídio de um amigo, o tom de depressão e morte da alma antes da morte física se mostre tão presente.

MARTIN EDEN foi filmado em 16 mm, o que faz com que algumas das cores, especialmente o vermelho, fiquem estouradas, mesmo em uma televisão. Certamente, na tela do cinema o aspecto granulado da fotografia se torna ainda mais explícito. Pena que o filme estreou em fevereiro nos cinemas brasileiros e não chegou a entrar em cartaz em Fortaleza. Na segunda quinzena de março, os cinemas fecharam e agora só Deus sabe quando retornarão. Creio que a apreciação desse filme no cinema o tornaria ainda mais grandioso, com suas imagens, suas músicas e seu tom apaixonado.

+ TRÊS FILMES

A ODISSEIA DOS TONTOS (La Odisea de los Giles)

Terceira parceria de Ricardo Darín com o diretor de UM CONTO CHINÊS (2011). Para mim foi uma surpresa saber que o que ocorreu com o Brasil na época do Collor aconteceu dez anos depois na Argentina, e tendo consequências ainda mais devastadoras, já que o país estava na merda, com uma moeda nacional que não valia nada. É no meio desse cenário que acontece a trama do filme, quando um grupo de pessoas que junta dinheiro para formar uma cooperativa e depois vê o seu dinheiro roubado pelo banco/banqueiros/hijos de puta que já sabiam o que ia acontecer. Mas o foco do filme se concentra no que eles fazem para tentar recuperar os dólares perdidos. Roteiro redondinho, um grupo de atores afiados, há pouco do que reclamar. Direção: Sebastián Borensztein. Ano: 2019.

O OUTRO LADO DA ESPERANÇA (Toivon Tuolla Puolen)

Impressionante como um autor pode tornar a sua assinatura inconfundível. O filme é outra delícia do cineasta, em tons trágicos e cômicos, dessa vez abordando a questão dos refugiados da Síria. Mais uma vez lindo trabalho de direção de arte. Direção: Aki Kaurismäki. Ano: 2017.

AFTERIMAGE (Powidoki)

Conheço bem pouco da filmografia do Andrzej Wajda, mas o pouco que conheço dá pra perceber o quanto ele valoriza o humano em detrimento do governo. Aqui ele faz uma ode à arte em tempos em que os artistas dos países comunistas eram obrigados a seguir uma cartilha. Ano: 2016.

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