Coisas que nos aborrecem acontecem o tempo todo. Mas quando elas acontecem justamente nesses dias de confinamento, afetam ainda mais a tentativa de paz que queremos ter. Mas isso é só um pequeno desabafo e uma forma de iniciar a escrita, que estava travando por causa desse pensar naquilo que me incomoda e naquilo que precisa ser feito para trazer um pouco mais de alento para o espírito. Pois bem, falemos então de algo que, apesar do conteúdo um tanto pesado e às vezes até mórbido, é o que tem me trazido mais ânimo para continuar atualizando este espaço.
Falemos de mais um filme de Abel Ferrara revisto, OS CHEFÕES (1996), última parceria do cineasta com seu roteirista de longa data Nicholas St. John. Na época que o filme foi lançado, ele foi abraçado por muitos não-fãs de Ferrara, por ser um trabalho mais próximo de um formato mais acadêmico, por tecer mais as relações entre os personagens em uma estrutura mais ou menos convencional, por assim dizer, e também por dar um tremendo espaço para o excelente elenco. Ou seja, se o Oscar fosse um prêmio menos careta, este filme estaria lá nas categorias principais.
Aliás, se eu já havia me admirado com o elenco de O REI DE NOVA YORK (1990), o que temos aqui é algo fenomenal: Christopher Walken, Chris Penn, Annabella Sciorra, Isabella Rossellini, Vincent Gallo, Benicio Del Toro, Gretchen Mol e Victor Argo, para citar os mais conhecidos. Ou seja, se em O REI DE NOVA YORK o forte estava no elenco masculino, aqui a presença feminina também é brilhante, até para fazer um contraste com o sangue quente da família, em especial as personagens de Sciorra e Rossellini.
Porém, antes de mais nada, assim como vários outros trabalhos de Ferrara, OS CHEFÕES (acho um horror este título brasileiro genérico) reflete sobre a vida e a morte. A morte aparece de maneira muito mais realista e chocante, nunca banalizada. Assim, a imagem da chegada de um caixão na casa de uma família já é por si só um momento de muito impacto, já que vemos também o choro das mulheres da família. E um maior clamor ainda quando veem o rosto do morto, o jovem Johnny, vivido por Vincent Gallo.
Os diferentes momentos de encarar a morte, seja na posição de pessoa prestes a morrer, seja na de executor, são muito angustiantes também. E há aquele momento muito especial em que a família de gângsteres leva o personagem de Del Toro para olhar para o rosto do morto, ainda prostrado na sala, à espera do momento do funeral. E em todos esses momentos, Ray, o personagem de Christopher Walken, se mostra extremamente admirável e até mesmo adorável, na sua maneira de tentar compreender os motivos de tal pessoa ter cometido o crime.
Ao se preparar para matar um rapaz ele diz que já sabe que vai queimar no inferno e que a melhor coisa a fazer é se acostumar com a ideia. Há toda essa relação muito associada ao pecado como maldição para aquela família. O padre diz em determinado momento: "a única maneira de qualquer coisa mudar é esta família passar por uma total transformação".
Outro momento que mostra o quanto seus personagens têm uma noção de bem e mal está na cena de Chez (Chris Penn) tentando convencer uma jovem a ir para casa com cinco dólares, em vez de enveredar pelo mundo da prostituição. Quando ela diz que prefere receber 10 e transar com ele, Chez age de maneira extremamente violenta com a garota. Afirma que ela vendeu sua alma. Aliás, a personalidade de Chez daria para fazer todo um artigo a respeito, já que em outro momento ele é visto como louco pela própria esposa, vivida por Isabella Rossellini, que dá a ele uma ideia de ir a um hospital especializado e supostamente abençoado por uma santa.
Cada cena, cada conversa, em especial as que se passam em momento pós-morte de Johnny, são carregadas de grande força dramática. Já os flashbacks focados em Johnny, que trazem luz para quem ele foi, não possuem a mesma força e talvez sejam o calcanhar de Aquiles do filme. Nesses momentos, vemos sua presença em reuniões comunistas, sua tentativa de entender a vida de maneira filosófica e seu amor pelo cinema e pelas artes (a frase "A vida não faz sentido sem o cinema" sai da boca dele). E o filme começa com sua imagem dentro de uma sala de cinema, vendo Humphrey Bogart em A FLORESTA PETRIFICADA, o que ajuda a contextualizar o momento da narrativa: década de 1930. E há também um momento-chave da infância de Johnny que é destacado.
Há quem ache o final brusco demais. E talvez seja mesmo. Mas os cortes e a violência brutal e o tom trágico só tornam o filme mais impressionante e cheio de força e vigor, acentuando o ar de maldição da família. Perfeitamente coerente com o espírito do cinema de Ferrara.
+ TRÊS FILMES
MILLENNIUM - A GAROTA NA TEIA DE ARANHA (The Girl in the Spider's Web)
Acho que a história, mesmo sendo até um pouco convencional, daria pano pra manga para um super filme. E até que não faltou uma produção boa, mas faltou inventividade. A gente percebe que há dinheiro, mas tem horas que parece um supercine, de tão genérico. Em alguns momentos a construção do mito Lisbeth parece razoável, mas depois perde a força, com a trama. E o que é aquela trilha sonora qualquer coisa? Ao menos eu achei charmosa a vilã de vermelho. Parece coisa de quadrinho italiano. Direção: Fede Alvarez. Ano: 2018.
O DOUTRINADOR
Pra começar, o filme traz um herói que vê a saída para acabar com a corrupção matando os bandidos. Mas o filme tem outros problemas. Personagens ruins, roteiro ruim, vilões caricatos... Pena, pois o Bonafé tinha codirigido o ótimo LEGALIZE JÁ - AMIZADE NUNCA MORRE (2017). quando o roteirista traz para a realidade brasileira, o teor direitista se intensifica. Há o colega do policial que questiona os seus atos e oferece alguma contrapartida na discussão, mas tudo é muito simplista, carregado. Direção: Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça. Ano: 2018.
A PRIMEIRA NOITE DE CRIME (The First Purge)
Destaque para o elenco de negros e também para o teor mais político e mais interessante, levando em consideração a nova ordem mundial, com essa onda de ode à violência como necessidade para combater os problemas do mundo. Direção: Gerard McMurray. Ano: 2018.
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