quinta-feira, março 19, 2020

O OFICIAL E O ESPIÃO (J'Accuse)

O interessante de ver um filme de Roman Polanski tratando do tema da inocência, do fato de alguém ser julgado e condenado por um crime que não cometeu, é que ficamos nos perguntando o quanto o cineasta pode ter se espelhado nessa história, já que o cerco em torno dele aumentou consideravelmente, com o crescimento do #metoo, com as acusações posteriores de estupro/assédio que surgiram para manchar ainda mais a biografia do diretor franco-polonês.

O OFICIAL E O ESPIÃO (2019) é mais um filme da fase tardia de Polanski que traz um tipo de dramaturgia mais calcado nos diálogos, algo bastante enfatizado em dois trabalhos desta década, ambos baseados em peças de teatro. Refiro-me aos ótimos DEUS DA CARNIFICINA (2011) e A PELE DE VÊNUS (2013). O filme seguinte, BASEADO EM FATOS REAIS (2017), de menor impacto na obra do diretor, segue uma linha de thriller um pouco mais convencional. O novo filme também apresenta similaridades com outro filme recente do diretor, O ESCRITOR FANTASMA (2010), que, aliás, é baseado também em um romance de Robert Harris.

O OFICIAL E O ESPIÃO, formalmente falando, seria um pouco um misto desses trabalhos, em certo sentido, já que tanto é centrado em conversas e contém poucas cenas de ação, como também cria uma atmosfera de suspense e apreensão, levando em consideração o quanto o protagonista, o Coronel Georges Picquart (Jean Dujardin), se vê em um jogo de cartas marcadas por membros do corpo de superiores do exército francês, ao descobrir e tentar consertar a injustiça que foi terem mandado para a prisão um oficial acusado de alta traição (Alfred Dreyfuss, vivido por Louis Garrel).

O caso é bastante conhecido e o título original se refere a um artigo escrito pelo romancista Émile Zola de mesmo nome, que denuncia a injustiça da prisão (sozinho, na Ilha do Diabo) de Dreyfuss. Isso ainda custaria a liberdade de Zola por um tempo. O artigo foi publicado no jornal francês L'Aurore, em 13 de janeiro de 1898, e pode ser encontrado facilmente na internet. O artigo, porém, foi publicado depois de três dias que o verdadeiro traidor, Esterhazy (no filme vivido por Laurent Natrella), foi inocentado pela justiça, o que acabou por prejudicar sua força.

Há muitos méritos no trabalho de Polanski. Não deixa de ser uma satisfação poder ver mais um trabalho de um diretor de primeiro escalão e que tem um corpo de trabalho tão rico e tão próximo do universal. Assim, o que vemos é um filme que tem a segurança e a experiência de um grande diretor, aliado a um elenco de apoio extraordinário.

O filme é também muito atual em tempos de fake news, de pós-verdade. Aquilo que deve ser considerado verdade ocorre por imposição de forças superiores e essencialmente más. No filme, não basta apenas manchar e maltratar a vida de um inocente; é preciso também humilhá-lo. E aqui entra também a questão do antissemitismo, que na época já era algo muito forte, mas que tenderia a crescer ainda mais no início do século que viria.

Escrevo sobre este filme tentando estabelecer uma rotina nesses tempos de quarentena. É apenas o segundo dia e já estou angustiado, tanto pela situação inédita e muito perturbadora pelo que passamos, quanto pela falta de contato humano maior. E olha que eu sou craque nesse lance de recolhimento. Sempre recebi com aceitação os conselhos dos astrólogos, mas o recolhimento agora é global. E necessário. Que tudo isso passe rápido e que o cinema, agora restrito aos nossos lares, nos conforte.

+ TRÊS FILMES

MEU NOME É SARA (My Name Is Sara)

Curiosamente, segundo o IMDB, o Brasil é o primeiro país do mundo a exibir este filme (além, claro de exibições em dois festivais no ano passado). É o primeiro filme de ficção do diretor e tem o seu valor, embora não mostre nada que já não tenha sido mostrado em outros filmes sobre a Segunda Guerra, com foco na maldade dos nazistas e na fuga dos judeus. Aqui temos a menina Sara que consegue se passar por não-judia em um povoado da Ucrânia e passa a morar em uma casa, recebendo como pagamento apenas comida e teto. No elenco, destaque para a polonesa Michalina Olszanska, que faz a mulher que abriga Sara. Ela tem um sex appeal interessante. Baseado em uma história real, o filme, de certa forma, ao final, serve mais uma vez para lembrarmos a monstruosidade que é o nazismo (nunca é demais dizer, ao que parece), mas até a escolha de ser falado em inglês, nos dias de hoje, parece estranho e antiquado. Direção: Steven Oritt. Ano: 2019.

LUTA POR JUSTIÇA (Just Mercy)

Por mais que seja um filme convencional de tribunal e de luta por justiça para um condenado por um crime que não cometeu, aqui já temos a vantagem de ter um ator tão bom quanto o Michael B. Jordan no papel do advogado de defesa do personagem de Jamie Foxx. Ele passa a dor de tentar peitar um sistema totalmente corrompido e racista, que é o do estado do Alabama, que parece não ter se livrado do espírito da era da escravidão. Se não fosse uma história real, até podia parecer tudo caricato, mas tendo em vista os políticos toscos que estão no poder hoje em dia, sabemos agora que pessoas cheias de maldade de fato existem. As máscaras caíram. E um filme como esse tem essa função de denunciar as injustiças cometidas principalmente a pretos e pobres e as tantas falhas nas condenações à morte um homem. Direção: Destin Daniel Creton. Ano: 2019.

O PREÇO DA VERDADE - DARK WATERS (Dark Waters)

Curioso Todd Haynes ter feito um projeto assim tão careta, por mais nobre que seja. Não que ele não tenha namorado o clássico-narrativo mais convencional, mas talvez nunca de maneira tão explícita. Em um filme que lembra as obras investigativas dos anos 70 (inclusive pela utilização de uma fotografia granulada bem bonita), DARK WATERS conta a história de um advogado de empresas químicas que passa a advogar na causa de vítimas de uma empresa que envenena a água de uma cidade. Na verdade, de muito mais do que uma cidade. É o tipo de filme que nos dá aquela sensação terrível de impotência, por mais que haja alguns momentos de vitória. Mas são tão poucos, e os grandes são tão poderosos, que é fácil desanimar. Ano: 2019.

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