Quarentena, dia 4. Confesso que não estou sabendo lidar muito bem com tudo isso. Não é só questão de estar se privando do cinema. Mas é todo uma preocupação e tristeza diante das impossibilidades do momento, diante do distanciamento entre as pessoas, diante da ameaça invisível. De todo modo, fico grato aos governantes locais, especialmente o Governador, que estão agindo com seriedade, ainda mais levando em consideração que praticamente estamos sem presidente. E fico grato, principalmente, aos amigos e familiares, pela força que estão dando neste momento, que é difícil, mas sabemos que quem pode estar em quarentena como eu está no grupo dos privilegiados.
No mais, elegi um filme para escrever do qual nem sei direito se entendi muito bem, mas que, como é um filme que lida também com mal estar e distanciamento físico, achei que poderia ser o adequado para hoje. Mais por identificação mesmo, já que estou tendo dificuldade de concentração para ver filmes em casa. Não sei o quanto vai durar essa sensação de aflição, essa incapacidade de me sentir bem com a solitude, que eu tanto valorizo e costumo usufruir com paz de espírito em dias normais.
DISFORIA (2019) é o primeiro longa-metragem de Lucas Cassales, do premiado curta O CORPO (2015), e conta duas histórias em paralelo, histórias que se encontram. Temos a história da menina que quebra o espelho do banheiro em um estranho surto. A menina mora com o pai viúvo e a avó. E temos a história do psicanalista que lida com uma situação também muito particular: sua esposa está internada em uma clínica psiquiatra e ele se sente muito sozinho.
As duas situações se cruzam quando o psicanalista recebe o caso da menina, e depois descobre que ela tem uma espécie de poder que leva as pessoas a confrontarem seus próprios demônios. Ele, naturalmente, fica assustado, mas segue frequentando a casa a pedidos do pai da garota, que se mostra cada vez mais ausente. Há momentos na narrativa em que vemos imagens gravadas do passado, de quando esse pai era feliz com a esposa, antes de ela morrer.
O forte do filme é a atmosfera, muito mais do que a trama, que é confusa, mas a confusão é bem-vinda quando a intenção é nos colocar na mente perturbada do protagonista, o psicanalista vivido por Rafael Sieg, utilizando recursos audiovisuais criativos. Há uma cena que me chamou muito a atenção e talvez seja uma das minhas favoritas do ano: o protagonista segue, em estado alterado, para uma espécie de festa na casa de sua amiga. Ao chegar lá, ele fica conversando com uma garota que começa a dançar, o que lembra tanto Audrey no piloto de TWIN PEAKS, de David Lynch, quanto Jong-seo Jun, dançando ao som de jazz em cena mais do que memorável de EM CHAMAS, de Chang Dong-lee. A ótima canção que embala a cena é "Artemísia", da banda indie Carne Doce.
A conclusão do filme talvez não seja tão boa quanto seu desenvolvimento, mas não deixa de ser também intrigante. De vez em quando é bom sair de um cinema de shopping depois de ter visto um objeto tão estranho como esse.
+ TRÊS FILMES
AÇÚCAR
De AMOR, PLÁSTICO E BARULHO (2013) para este novo filme, Renata Pinheiro, agora com um codiretor assinando, exibe um progresso gigante. A não ser pela conclusão que pouco impacto teve sobre mim, toda a apresentação dos personagens, as primeiras imagens da geografia da Zona da Mata com o retorno para a Casa de Engenho da personagem de Maeve Jinkins e o atrito delicado com a comunidade de negros que está ali ao lado, tudo isso é muito bom. Constrói-se um tipo de tensão que sentimos também em O SOM AO REDOR, do KMF, mas que aqui aparece em um ambiente rural. É mais um filme que mostra a burguesia branca que segue não querendo admitir a dívida histórica com os negros. E isso aparece também na forma de um universo fantástico que aparece para assombrar aquele lugar, que certamente deve estar cheio de espíritos esperando por justiça. Maeve Jinkins mais uma vez excelente, muitas vezes se mantendo sozinha como personagem branca, com um elenco de apoio também está ótimo. Direção: Renata Pinheiro e Sergio Oliveira. Ano: 2017.
A FEBRE
Filmes que abordam a realidade do índio brasileiro sempre são muito tristes. Este aqui até que escapa de ser tão triste quanto tantos outros, por centrar na vida de um indígena que trabalha em um porto em Manaus, mas que mantém uma família à parte que fala a língua nativa dentro de casa. Há o incômodo de fazer parte do mundo branco e também de ter esses costumes dos ancestrais. Não se pode servir a dois senhores, diz a Bíblia. A maior parte do filme não é falada em português e nos espantamos com o quanto o nosso país é gigante, rico e diverso. No filme, destaque para os ótimos desempenhos dos atores. Admirável mesmo. Fiquei em dúvida com a cena final. Caso alguém tenha visto, gentileza me explicar. Direção: Maya Da-Rin. Ano: 2019.
JESSICA FOREVER
Filme que sabe trazer a brutalidade para a sensibilidade. Gosto de como a personagem de Jessica é um pouco distante e quase uma santa para os homens, todos renascidos a partir do encontro com ela, para formarem uma espécie de exército contra a opressão de um regime autoritário em um mundo distópico. O passado de alguns poucos personagens, com seus traumas, é explorado. Ajuda a dar mais humanidade a esse jovens, assim como o rapaz que se apaixona por uma jovem da ilha, o que não seria uma boa ideia para um grupo que vive fora da lei. Direção: Caroline Poggi e Jonathan Vinel. Ano: 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário