domingo, março 22, 2020

JOIAS BRUTAS (Uncut Gems)

Que bom quando eu consigo, em meio a este período tão difícil, me concentrar na leitura de alguma coisa e que, ainda por cima, vai ajudar a repensar e a relembrar as sensações e pensamentos que tive quando vi JOIAS BRUTAS (2019), quarto longa-metragem dos irmãos Bennie e Josh Safdie, e que foi lançado no Brasil e na maior parte dos países do mundo diretamente na Netflix, no início desde fatídico 2020.

Eu acredito que ter visto na Netflix, em vez de em uma boa sala de cinema, pode ter prejudicado um pouco minha apreciação. Afinal, o filme é bastante irritante, claustrofóbico, incômodo. Embora tudo isso seja deliberado, uma vontade de seus realizadores, no cinema eu ficaria mais disposto a embarcar, sem pausas, nessa viagem, por mais que saísse da sala um pouco tonto.

Hoje aproveitei o dia para ler o que saiu sobre o filme nas revistas Cinema Scope (ed. 81) e Film Comment (vol. 55). Na Cinema Scope saiu uma apresentação seguida de uma entrevista com os irmãos de seis páginas. Muito esclarecedora e agradável de ler. A Film Comment fez apenas uma crítica de duas páginas, mas também muito boa. Sinto falta demais de boas revistas de cinema impressas no Brasil. Essas eu consegui, aproveitando a ida de minha irmã e meu cunhado aos Estados Unidos no início do ano. Então, ler esse material e conseguir me concentrar foi muito recompensador, assim como está sendo escrever a respeito aqui, tentando ignorar um pouco o mal estar do momento.

Na entrevista da Cinema Scope, os irmãos Safdie começam falando bastante sobre basquete, e como não sou um fã de esportes e sou totalmente alheio ao mundo da NBA, procurei aprender um pouco, mas só as informações mais básicas. Soube que JOIAS BRUTAS é o filme mais centrado na NBA desde SPACE JAM - O JOGO DO SÉCULO, de 1996. Em JOIAS BRUTAS, fui apresentado a Kevin Garnett, que agora está aposentado, mas que em 2012, que é quando se passa a história, ainda é um dos grandes astros do basquete. Ele é essencial para a trama e interpreta a si mesmo, por assim dizer.

O foco do filme é mesmo Adam Sandler, que teve uma interpretação elogiadíssima, coisa que não acontece talvez desde sua parceria com Paul Thomas Anderson em EMBRIAGADO DE AMOR, em 2002. Sandler, ao longo dos anos, ganhou a fama de estrelar comédias de gosto duvidoso e por isso foi um presente para ele e para nós vermos o quanto o ator é capaz de ser muito bom. Eu, pelo menos, esqueci que era o Sandler, e comprei o personagem do judeu viciado em jogo e dono de uma joalheria Howard Ratner.

O filme tem uma introdução no mínimo interessante, começando com imagens do acidente em uma mina na Etiópia e indo literalmente para dentro do protagonista, que está fazendo um exame de colonoscopia. Ele tem medo de estar com um câncer. Depois disso, é tudo muito delirante, muito estonteante, já que somos arremessados no meio da ação, dentro da joalheria de Howard, e em um tipo de narrativa que parece embebida de cocaína.

Nesse início, Howard recebe a encomenda preciosa (a tal joia bruta do título) quando o Kevin Garnett está em sua loja. Ele aceita que Garnett, que fica fascinado com a pedra multicolorida, deseja ficar com ela para dar sorte. O jogador acredita que ela tem um poder derivado de seus ancestrais. Ele poderia ficar com ela por uma noite apenas. Howard pega como caução o anel do jogador, e o penhora por U$ 21.000 em cash para apostar. É importante lembrar que muito do desconforto e da ansiedade que o filme provoca vem não apenas do uso da câmera inquieta, mas principalmente do modo histérico com que os personagens lidam com as coisas da vida, a começar pelo onipresente protagonista.

Nesse sentido, o filme lembra bastante a obra de John Cassavetes, talvez o cineasta que mais tenha influenciado os irmãos Safdie. Há essa agressividade presente a todo momento, mas também essa força nas atuações e na dramaturgia e no estudo de personagem. No caso, o que há de mais fascinante em Howard é o quanto ele é um homem infantilizado, ao querer tudo e não se dar por satisfeito em perder ou nas consequências de seus atos, um homem que não vê o valor em nada - objetos, dinheiro, pessoas - se ele não pode arriscar perdê-los.

Algo que me deixou muito intrigado ao ler a entrevista dos Safdie foi quando eles mencionaram o aspecto anticapitalista da filmografia de Sandler, e como isso casou como uma luva para o filme. Como sou pouco conhecedor da filmografia do ator/comediante, lembrei logo de filmes como CLICK, A HERANÇA DE MR. DEEDS e COMO SE FOSSE A PRIMEIRA VEZ, títulos que trazem uma espécie de lição moral sobre o que realmente importa na vida, muito além do materialismo. Os irmãos Safdie, porém, estão longe de tratar o assunto com sentimentalismo.

Enfim, há muito o que falar e o que lembrar do filme, mas acho importante deixar uma menção à ótima participação da estreante Julia Fox, que interpreta Julia, a amante de Howard. Algumas das melhores cenas são com Julia, especialmente uma em que eles brigam na rua e a câmera passa a segui-la e não ele. Por um momento passamos a acreditar que o filme mudaria de ponto de vista. Mas isso dura pouco.

Podemos ainda lembrar das dez pragas do Egito na reunião da família judaica tradicional, do cunhado mafioso vivido por Eric Bogosian, da participação do cantor The Weeknd como ele mesmo, inclusive em um show seu, e em mais uma série de cenas. Por isso, por mais que a nossa relação com o filme, enquanto o vemos, não seja uma relação prazerosa, depois percebemos o quanto se trata de uma obra digna de respeito.

+ TRÊS FILMES

INOCÊNCIA ROUBADA (Les Chatouilles)

Segundo filme do festival que trata do assunto "pedofilia", este aqui é mais eficiente do que o do Ozon (GRAÇAS A DEUS), embora a comparação não seja muito justa, já que são bem diferentes. Aqui vemos uma jovem mulher que enfrenta os fantasmas do passado, envolvendo um homem, amigo de sua família, que a violou inúmeras vezes. O trabalho da atriz, diretora e bailarina Andrea Bescond é ótimo e o filme entra num crescendo de emoções que comove, sem ter que apelar para uma trilha sonora onipresente. O final é lindo. Direção: Andrea Bescond e Eric Metayer. Ano: 2018.

O TRADUTOR (Un Traductor)

É um bom filme para assistir, mas fica a impressão de que os diretores superestimaram a história. Não que não seja importante alguém ser impactado por sua passagem pela ala infantil de câncer, mas, do jeito que o filme mostra, a emoção é minimizada por pura incompetência de seus realizadores. Rodrigo Santoro até que se esforça e o seu personagem é bastante simpático. Outra curiosidade é ver o estrago que o fim da União Soviética causou de imediato na ilha de Fidel. Direção: Rodrigo Barriuso e Sebastián Barriuso. Ano: 2018.

A NOITE DO JOGO (Game Night)

Talvez seja mesmo a comédia do ano de 2018, mas acredito que GRINGO seja mais eficiente em provocar mais risos. Este, porém, é mais inteligente em sua proposta, nos diálogos afiados, em ter uma Rachel McAdams encantadora demais e na direção de tirar o chapéu. Fora a direção de arte, foda também. Talvez o problema seja umas gorduras, problema de montagem. Tem hora que o filme parece se exceder e perde um pouco o ritmo. Direção: John Francis Daley e Jonathan Goldstein. Ano: 2018.

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