sábado, fevereiro 08, 2020

SYNONYMES

Um dos filmes mais marcantes do ano passado e o grande vencedor do Festival de Berlim, SYNONYMES (2019), de Nadav Lapid, é uma dessas obras que provocam reações distintas na audiência, muitas vezes reações de dúvida sobre o que acabaram de ver, ou sobre o quanto gostaram ou não gostaram do filme. Trata-se do terceiro longa-metragem de Lapid, que se inspirou em sua própria experiência de israelense morando em Paris, para construir uma história sobre negação da pátria para reconstrução da própria identidade, ou de uma nova identidade.

Já chama a atenção o modo como começa SYNONYMES, ao apresentar o protagonista, o jovem Yoav (o estreante Tom Mercier), nu em um grande apartamento, e tendo suas roupas roubadas. É como se Yoav tivesse sido jogado em uma pátria totalmente estranha de para-quedas, e sem roupas. Ele corre nu pelo prédio, com frio, desesperado, tentando se aquecer depois na banheira, e quase morrendo de frio. Um detalhe: essa cena foi a primeira gravada por Tom Mercier, e deixou Lapid e sua equipe impressionados com a performance do ator.

Para Lapid, seu cinema e sua crítica à Israel vão além de questões relacionados ao exército israelense e ao tratamento dado aos palestinos. Em entrevista à revista Cinema Scope, ele diz declarar guerra à própria essência da alma israelense. Daí ele trazer um personagem que quer esquecer todo o seu passado, mas também apresenta um outro judeu que vive em Paris e que provoca passageiros no metrô cantando o hino de Israel, acreditando que todos os europeus são antissemitas.

Um dado curioso e que aproxima o filme e Israel do Brasil e do nosso atual momento político: Israel atualmente conta com uma ministra da cultura extremamente repressiva e de extrema direita, que naturalmente não apoiou o filme e que ficou sem entender se se tratava ou não de uma peça anti-israelense. Por outro lado, quando foi noticiado que o filme ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, todos os jornais do país pararam sua programação e noticiaram o fato, o que muito alegrou Lapid.

SYNONYMES tem uma estrutura que muito lembra uma sucessão de grandes cenas sem uma coesão muito visível, quase como se fosse uma excelente coleção de esquetes. Nesse sentido, é como se fosse possível você selecionar de maneira aleatória uma ou outra cena de modo a apreciá-la separadamente. Algumas são muito empolgantes, como a cena da danceteria, tocando "Pump up the jam", do Technotronic. Ver esta cena no cinema, com o som no talo, é uma experiência singular. Além do mais, é uma cena muito divertida. Ao contrário de outras tantas, que adentram de maneira intensa a mente confusa de Yoav, mesmo sem uso de voice-over ou nada do tipo, o que só aumenta nossa admiração com o trabalho essencialmente de cinema do cineasta.

Sua tentativa do personagem de se livrar do passado é inútil, já que várias memórias costumam assombrá-lo. Mesmo quando ele tenta falar apenas em francês, há quem queira que ele diga algo em hebraico (vide a cena do "bico"). A propósito, a cena de Yoav declamando a letra da Marselhesa é outro momento de intensidade, de destaque dessa dicotomia agressividade/sensibilidade do protagonista. Assim, por mais que ele tente se tornar menos israelense, mais ele percebe que é israelense. E aí chegamos àquela cena final fantástica, da porta. Que bom que o Festival de Berlim resolveu premiar este filme para chamar a atenção do mundo para o trabalho de seu diretor.

+ TRÊS FILMES

ATLANTIQUE

Aproveitei a oportunidade de ver no cinema um filme que muitos já viram na Netflix. É um belo filme, embora, dentre os premiados vistos até o momento da safra Cannes-2019 foi o que menos me impactou. O que mais eu gostei foi do visual, que equilibra tanto o aspecto fantástico do filme quanto seu realismo social. A fotografia é de Claire Mathon, a mesma do maravilhoso RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS. A textura que essa diretora de fotografia dá às suas obras é impressionante. Aqui quase sentimos o sal do mar, lugar tão presente e tão importante para a trama. Como história de amor talvez não seja tão bom, mas como filme fantástico é interessante e bonito. Mas, assim como vários filmes de 2019, é também um retrato da divisão de classes no mundo. O Senegal tem um abismo social gigante, pelo que podemos ver pelo filme. Direção: Mati Diop. Ano: 2019.

E ENTÃO NÓS DANÇAMOS (And Then We Danced)

Um filme envolvente e que trata com carinho das angústias de seu protagonista, um rapaz que faz parte de uma importante escola de balé e que se apaixona por um colega recém-chegado. Isso numa Geórgia ainda muito preconceituosa e antiquada. O que me faltou foi uma maior identificação com o personagem e também um maior interesse/conhecimento em dança, para saber valorizar as coreografias. Também achei que o filme perde um pouco o foco, ou parece não encontrar o que deseja. Mas talvez isso seja coerente com o estado um tanto perdido do protagonista. Direção: Levan Akin. Ano: 2019.

A ÁRVORE DOS FRUTOS SELVAGENS (Ahlat Ağacı)

É sempre bom ir preparado para um filme do Nuri Bilge Ceylan. Em WINTER SLEEP (2014) já se falava bastante. Neste aqui o diretor também não economiza nos diálogos. Em alguns momentos até parece excessivo, mas isso depende muito do grau de interesse no assunto. Há profundidade neles. A minha cena preferida é a do encontro do protagonista com uma garota da juventude, a cena da árvore, com o vento e tal. Aquilo é lindo demais. Uma das melhores cenas do ano. O registro das estações do ano através das imagens também é lindo. Há uma delicadeza comovente no modo como se dá o relacionamento do rapaz com seu pai e com sua mãe. O que incomoda é que o filme se arrisca em trazer um protagonista tão cheio de erros e um tanto arrogante e nada simpático. Ano: 2018.

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