quarta-feira, novembro 20, 2019

O IRLANDÊS (The Irishman)

Cineastas católicos costumam lidar com a culpa de maneira muito intensa. Alfred Hitchcock, Abel Ferrara, Clint Eastwood, Robert Bresson, Éric Rohmer são alguns desses exemplos. Basta citar seus nomes para lembrar da temática da culpa em alguns de seus trabalhos mais marcantes. Mas Martin Scorsese, que vem tratando do peso dos próprios atos de seus personagens, e possivelmente dele mesmo, como espelho desses alter-egos, conseguiu chegar a um desses exemplares definitivos em que o remorso acompanha também o espectador, até pela duração e pelo andamento mais pausado e de certa forma pesado de O IRLANDÊS (2019).

Se em alguns filmes de máfia do diretor havia alguns momentos de euforia e alegria dentro daquele universo em que havia também muitas mortes, Scorsese também era mestre em nos mostrar o fundo do poço, a descida aos infernos de seus personagens. Isso acontece tanto em OS BONS COMPANHEIROS (1990) quanto em O LOBO DE WALL STREET (2013), uma espécie de atualização dos filmes de máfia. Porém, o que temos em O IRLANDÊS é algo de natureza distinta, feita com carta branca da Netflix, que investiu os 159 milhões de dólares necessários para a realização deste projeto de mais de dez anos.

O projeto nasceu quando Robert De Niro leu o livro de Charles Brandt, I Heard You Paint Houses, e ficou fascinado. Comentou com Scorsese, que percebeu o entusiasmo do amigo. Isso aconteceu na época em que De Niro dirigiu O BOM PASTOR (2006). Importante lembrar que Scorsese não se reunia com De Niro e Joe Pesci desde CASSINO (1995). Logo, a expectativa de ver a reunião dos três e mais Al Pacino era grande.

O livro de Brandt conta a história de Frank Sheeran, um hitman da máfia que foi guarda-costas do líder sindical Jimmy Hoffa, e que contou sua própria versão dos fatos envolvendo a misteriosa morte do sindicalista, desaparecido em 30 de julho de 1975, e declarado morto 10 anos depois. É importante não saber detalhes disso para não estragar as surpresas e principalmente o impacto que o filme provoca.

Para viver os personagens na fase mais jovem da vida, agora que todos estão na casa dos 70 anos, Scorsese recorreu a uma tecnologia de rejuvenescimento digital. Até o momento, trata-se do mais bem-sucedido uso dessa tecnologia, embora algumas pessoas reclamem que os rostos ficam jovens, mas o corpo continua se movimentando como o de um velho. No entanto, uma vez que você aceita a brincadeira, é fácil ficar não apenas envolvido, mas também muito impressionado com a interpretação daquelas versões mais jovens de De Niro, Pesci e Pacino.

Especialmente De Niro e Pesci estão sublimes. E pensar que Pesci só aceitou sair da aposentadoria depois de muita insistência de Scorsese e De Niro... Aqui ele faz um papel distinto do que estamos acostumados a vê-lo fazer, geralmente muito elétrico. Em O IRLANDÊS ele é um chefão da máfia gentil, doce até. E com uma fala mais mansa e pacificadora, mesmo lidando com situações em que matar uma pessoa é só parte do jogo.

A narrativa atravessa seis décadas, e isso era um problema difícil de contornar para Scorsese. Ele acreditava que colocar atores jovens para interpretar De Niro e Pesci seria algo inconcebível, levando em consideração o fato de esses atores conhecerem a Nova York da época como a palma da mão e este fato ser importantíssimo para seu filme. E a utilização de próteses e maquiagem nem sempre funciona muito bem. O próprio De Niro fez isso em ERA UMA VEZ NA AMÉRICA, de Sergio Leone, quando teve que envelhecer na base da maquiagem.

Interessante notar que estamos em um ano em que dois cineastas veteranos estão trazendo filmes que denotam um estado de espírito mais reflexivo em torno da velhice. Por isso alguns críticos têm feito comparações de O IRLANDÊS com DOR E GLÓRIA, de Pedro Almodóvar. Ambos os filmes são trabalhos que lidam com o envelhecer, com a dor, com os arrependimentos, com as mudanças provocadas pelo tempo em seu modo de ver a vida.

Outra coisa que não deixa de ser impressionante no filme de Scorsese é o quanto o diretor tinha em mãos atores do porte de Harvey Keitel e Bobby Cannavale e se dá ao luxo de utilizá-los tão pouco. O mesmo poderia ser dito da personagem de Anna Paquim, que vive um das filhas de Frank Sheeran, mas sua interpretação com uma ausência de falas bem explícita é compensada com o olhar e com uma espécie de confronto que ela faz com o pai. Aquilo é forte o suficiente para magoar o coração de um homem velho cheio de pesos do passado nos ombros.

Um peso que o personagem leva como uma cruz. Velhinho, ele precisa de muletas, cai em uma cena. O filme mostra sua decadência física, seu desaparecimento. Como se ele precisasse daquela trajetória toda para que compensasse, de algum modo, o mal que fez no passado. Saímos do cinema diferentes de quando entramos. E não apenas por termos acabado de ver uma obra-prima.

+ TRÊS FILMES

ALMA EM SOMBRAS (The Clay Pigeon)

Um dos primeiros longas de Richard Fleischer foi um film noir curtinho, de 63 minutos, e bem movimentado. Conta a história de um ex-soldado da marinha que acorda de um coma desmemoriado e descobre que está prestes a ir à corte marcial por ter matado um colega. Ele foge do hospital em busca de provar a própria inocência e acaba encontrando uma série de obstáculos. Interessante que há várias cenas diurnas. A mais movimentada, a da perseguição dos capangas ao protagonista acontece à luz do dia, o que foge um pouco ao que geralmente se vê nos filmes desse período. Ano: 1949.

AMOR ATÉ AS CINZAS (Jiang Hu Er Nü)

Provavelmente é o filme que menos gostei do Jia Zhangke, mas ainda assim é admirável em muitos aspectos. Gosto especialmente quando ele foca na solidão da personagem feminina, e menos quando está em cena a sua contraparte. É sempre bom viajar no tempo e espaço para uma cultura tão diferente com a chinesa e é assim que nos sentimos a maior parte do tempo, embora eu ache que tenha faltado mais força na maneira como nós nos importamos com os personagens. Ano: 2018.

MONSIEUR & MADAME ADELMAN

Gosto muito da primeira metade do filme, quando os personagens estão jovens. A coisa vai ficando meio chata com a velhice. Se a intenção for mostrar que a velhice é chata para um casal, deu certo. Mas não creio que foi isso. Adorei o sorriso lindo de Doria Tillier. Na trama, no funeral do marido, após uma união de 45 anos, a esposa passa a contar a um jornalista a história de sua relação com o renomado escritor que foi seu marido incluindo segredos bastante íntimos e capazes de destruir a memória do morto. Direção: Nicolas Beldos. Ano: 2017.

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