domingo, junho 02, 2024

LADY BLUE SHANGHAI



Uma das grandes vantagens de ter David Lynch como um dos cineastas mais queridos é que sua obra é quase inesgotável. Isso porque, mesmo que você já tenha visto todos os seus filmes e séries, o que é difícil, pois ele fez muita coisa, há uma série de enigmas e mistérios que ainda seguem assombrando e encantando a cada nova revisão de suas obras. Sem falar no senso de humor e no amor que transborda de seu trabalho. Sua última grande obra foi TWIN PEAKS – O RETORNO (2017) e mesmo que ele não lance mais nenhum filme ou série, é sempre possível voltar a TWIN PEAKS. Sem falar que há uma série de novos cineastas que se inspiram em Lynch para construir obras quase lynchianas e há também a descoberta de filmes antigos que trazem relações surpreendentes com o cinema de Lynch, como, por exemplo, A MORTE NUM BEIJO, de Robert Aldrich, ANJO OU DEMÔNIO?, de Otto Preminger, ou ESCRAVAS DO MEDO, de Blake Edwards. E há também curtas-metragens em caráter promocional para algumas marcas, como um suposto filme publicitário, mas que ele embebe de sua poética.

É o caso de LADY BLUE SHANGHAI (2010), que eu só fui descobrir a existência um dia desses. Trata-se de um curta de 16 minutos que o cineasta fez para a empresa de moda Dior, estrelado por Marion Cotillard. Imagina só: existe um filme de Lynch estrelado por Cotillard! O filme ficou disponível inicialmente no site da Dior até outubro de 2010 e hoje é possível encontrar no YouTube e em alguns sites de compartilhamento. O visual lembra muito aquele digital um pouco borrado de IMPÉRIO DOS SONHOS (2006) e contém inúmeras referências a obsessões do cineasta, como o mistério da cor azul. Inclusive, há uma rosa azul dentro da bolsa também azul; lembremos que a rosa azul aparece em TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER (1992) como algo que vai além das interpretações, como algo quase proibido de ser interpretado. E isso é dito por um dos personagens, como uma espécie de brincadeira metalinguística de Lynch. Quanto à cor azul, ela aparece como destaque pelo menos desde VELUDO AZUL (1986) na filmografia do diretor, mas sei que se formos procurar direitinho, ela já aparece nos primeiros curtas. 

Na trama de LADY BLUE SHANGHAI, Cotillard adentra os corredores de um hotel, enquanto o som de um velho tango parece aumentar à medida que ela se aproxima de seu apartamento. Ao chegar ao apartamento, o som está quase ensurdecedor a ponto de distorcer as caixas de som. Ela tira a agulha da vitrola e imediatamente vê luzes surgirem como relâmpagos no quarto. E uma fumaça atravessa a bolsa azul que está no meio da sala. Ela sabe, de alguma maneira, que há algo dentro daquela bolsa. E quando os funcionários do hotel chegam ela conta que já esteve ali antes, como numa sensação de déjà vu. Aos poucos, ela lembra de algo importante, de um homem chinês que ela conhecera. 

É quando o filme consegue se tornar ainda mais onírico do que já estava e ganha mais cores, com efeitos de luzes coloridas que borram e pintam a noite dos amantes que correm pelas ruas de Shanghai. Uma das coisas mais bonitas é quando o homem diz que não deveria estar ali. Que ama aquela mulher, mas não deveria estar ali. Como se, de alguma maneira, ele tivesse entrado num sonho proibido. No final, quando Cotillard agarra com carinho a bolsa contendo a rosa azul, é como se estivesse abraçado aquele homem com quem trocou juras de amor. 

Lynch, quando fala de amor é também incrível, com uma carga dramática que é capaz de causar sentimentos que nenhum outro cineasta é capaz. Basta lembrar o drama trágico das amantes de CIDADE DOS SONHOS (2001) ou os anos de espera para ficarem juntos Big Ed e Norma em TWIN PEAKS – O RETORNO. 

Para a produção de LADY BLUE SHANGHAI, a Dior deu total liberdade criativa para Lynch, com a condição de que ele mostrasse a bolsa Lady Dior, a Torre Pérola Oriental e as antigas ruas de Shanghai. Condições bem fáceis para Lynch criar uma belezura que infelizmente está quase invisibilizada até para quem tem o costume de ver seus filmes.

+ TRÊS FILMES

A PAIXÃO SEGUNDO G.H.

Ao saber que Luiz Fernando Carvalho adaptaria o livro de Clarice Lispector, comprei-o há algumas semanas (ou meses, nem sei), e de cara percebi que a leitura não seria das mais fáceis logo nas primeiras páginas. O tom nem sempre doce da prosa de Lispector se apresenta nesta obra, especificamente, ainda mais desafiador. E adaptar um livro como esse é duplamente desafiador. Não sei se fiquei incomodado com a interpretação de Maria Fernanda Cândido ou se a quase impenetrabilidade do texto acaba fazendo com que as mais de duas horas de projeção sejam difíceis, talvez para que nos cansemos tanto quanto a narradora/personagem G.H., que se multiplica em várias em sua via crúcis. Em alguns momentos, A PAIXÃO SEGUNDO G.H. (2023) só não vira teatro pois LFC é um homem de cinema, mas o texto é excessivo e fiquei me perguntando se ele chegou a cortar algo do texto original ou fez apenas recortes. Não me entendam mal: o texto é genial, mas é algo que eu leria devagarinho, ao longo de vários dias, como boa prosa poética que é, e não da maneira que ficou. Quem sabe um dia eu retorne ao filme e passe a gostar mais.

A MATÉRIA NOTURNA

Há um filme excelente dentro deste A MATÉRIA NOTURNA (2021), de Bernard Lessa. Trata-se da primeira meia-hora, ou primeira parte, antes do personagem de Welket Bungué entrar na trama. Antes disso, havia uma espécie de mistério quase lynchiano e uma personagem fascinante em sua tristeza, vivida com talento por Shirlene Paixão. O diretor sabe captar momentos em que um simples vento ou a movimentação de uma câmera para o lado fazem a diferença. Ou mesmo a captação do anoitecer quando a moça precisa passar por um portão fechado para voltar para a casa da amiga. Nos momentos com Bungué, destaco algumas cenas de intimidade dos dois, em que eles se agigantam como pessoas lindas no meio das dificuldades econômicas e um certo ar de incerteza e hostilidade que começa sutilmente a se manifestar. Uma pena que o filme tenha optado por essa mudança de rumo. Não sei o quanto isso foi deli

BIZARROS PEIXES DAS FOSSAS ABISSAIS

Divertida e inventiva, ainda que irregular, animação. A trama de BIZARROS PEIXES DAS FOSSAS ABISSAIS (2023), de Marão, é tão cheia de coisas fantasiosas que o meio é o ideal para se contar essa história sobre uma mulher em busca de algo. Para isso, essa mulher, que tem superpoderes bem estranhos (tipo, sua bunda vira um gorila gigante!) conta com a ajuda de uma pequena nuvem com incontinência pluviométrica e uma tartaruga com TOC. A tartaruga é o personagem mais legal e o diretor e roteirista soube muito bem criar trejeitos divertidos para ela, como o fato de ela passar a mão pela cabeça com frequência, especialmente quando está irritada. Há um momento em que a narrativa cansa um pouco, mas há outro momento de seriedade muito bonito. Gosto dos traços simples e das escolhas das cores, e também quando o mundo em preto e branco se torna predominante.

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