domingo, março 24, 2024
DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS
Na noite de ontem, fomos, eu e a Giselle, (re)ver DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS (1976) no Cineteatro São Luiz. E foi muito bom irmos até lá, desde a chegada ao local, apesar de vermos a tristeza que está a Praça do Ferreira como um espaço de explicitação de nossa miséria socioeconômica atual. O tempo estava nublado e ameaçando chover, e talvez por isso a organização do espaço tenha deixado as pessoas que estavam dispostas a assistir ao filme naquela sessão especial gratuita (incrivelmente um público pequeno) entrarem meia hora antes do início da projeção.
Lá dentro, tiramos umas fotos e fomos entrevistados por uma moça para uma pesquisa de satisfação do equipamento do Estado. Eu falei a ela do que não gostava, mas, logo que entrei, mesmo as coisas de que reclamei ficaram pequenas diante de minha satisfação de estar ali naquele lugar lindo. Os produtores Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto não puderam comparecer à homenagem que receberiam por um problema de indisposição do hoje lendário produtor. O filme começa e já começamos a ver com muito interesse e deleite.
DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS é um dos maiores sucessos do cinema brasileiro. Não me refiro apenas ao público – por décadas foi a nossa maior bilheteria de todos os tempos –, mas também ao fato de que a crítica o tem como uma obra muito querida. A Abraccine, em votação para o livro 100 Melhores Filmes Brasileiros, o colocou na 39ª posição. Já no mais recente livro Cinema Fantástico Brasileiro – 100 Filmes Essenciais, o filme de Bruno Barreto aparece na 13ª posição. Além do mais, Jorge Amado, autor do romance de 1966 que deu origem a esta adaptação, adorou o filme do jovem realizador – Barreto tinha apenas 21 anos quando lançou DONA FLOR e o mais incrível é que já era o seu terceiro longa-metragem.
Sônia Braga está incrível como a doce Flor, a mulher que é um tanto dependente do amor que sente pelo marido Vadinho, um homem irresponsável, que não trabalha, gasta o dinheiro da mulher em jogo, e até bate nela para conseguir dinheiro, numa cena desconfortável, mas não tanto quanto a mostrada na versão dirigida por Pedro Vasconcelos em 2017. Tanto que nem me lembrava dessa cena de agressão. No filme de Barreto, o Vadinho interpretado brilhantemente por José Wilker é visto de maneira mais simpática e moleque, ainda que ganhe dimensões mais sombrias e ambíguas especialmente quando aparece como um espírito ainda louco para satisfazer seu apetite sexual pelo corpo de Flor, que o teria chamado.
Sônia, a intérprete maior das personagens femininas de Jorge Amado no cinema (faria ainda GABRIELA, de 1983, também de Barreto, e TIETA DO AGRESTE, de Cacá Diegues), lida com esse desejo intenso por sexo com a frustração, seja quando tem que aturar as irresponsabilidades do marido boêmio, seja quando se casa com um homem que não corresponde às suas vontades na cama, ainda que a trate com muito respeito, o farmacêutico Teodoro, vivido por Mauro Mendonça. A direção sabe aproveitar muito bem todos esses aspectos de Flor, de maneira muito elegante. Uma cena de que gosto muito é uma que a flagra nua, sozinha, deitada na cama; com a janela da casa aberta, a câmera a larga lá, em estado de luto, mas cheia daquela falta que lhe queima por dentro. Além do mais, a última cena do flashback de Vadinho é cheia desse calor intenso e a fotografia (de Murilo Salles) usa tons avermelhados para enfatizar algo de natureza infernal (no bom sentido, talvez?) na intensidade do desejo do casal.
DONA FLOR é um dos casos raros de filme que deixa muitas lembranças, mesmo passados muitos anos – eu devo ter visto pela última vez nos anos 1990. Ainda assim, fiquei surpreso ao ver coisas que haviam caído no arquivo morto de minha memória, como a visita de Flor a uma mulher que ela acredita ter tido um filho de seu marido. O prólogo, com a morte de Vadinho no carnaval, seguido dos créditos iniciais ao som de Simone cantando "O Que Será?", composta por Chico Buarque exclusivamente para a trilha, já esse início arrepiante é o suficiente para deixar uma grande expectativa para o que virá. Além do mais, Francis Hime faz uma orquestração magnífica a partir da canção, elevando o filme com muita sensibilidade.
Caso perfeito de clássico, o filme de Barreto é tão lembrado que até quem nunca o viu sabe do que se trata, ou lembra de alguma cena ou imagem; é uma obra que ingressou no inconsciente coletivo.
O aspecto fantástico ganha ainda mais força nos dias de hoje, já que não é mais tão eclipsado pelo erotismo (na minha memória, as cenas de sexo eram mais tórridas, mas as vi pela primeira vez muito jovem). Ainda assim, é bem ousado para os padrões da época e para um cinema produzido fora da Boca do Lixo e com um elenco de astros de primeira grandeza (até o elenco de apoio é incrível). Adoro o final, com a decisão de Flor de se sentir finalmente completa com os dois maridos. Talvez seja sobre isso o filme: a busca de completude.
+ DOIS FILMES
NOSSO LAR 2 – OS MENSAGEIROS
Esta sequência de NOSSO LAR (2010) usa o que foi apresentado no primeiro filme a fim de introduzir o ponto de vista dos mensageiros na história de aprendizado, queda e superação de espíritos que descem novamente à Terra. NOSSO LAR 2 – OS MENSAGEIROS (2024), de Wagner de Assis, tem até uma narração que dá um ar mais doutrinador, em comparação com o primeiro, que parecia mais um filme de ficção científica, e por isso era divertido até para não seguidores da doutrina espírita. Incomodou-me um pouco a música que acompanha algumas cenas, especialmente as que mostram o aspecto de perfeição da cidade celestial. Por outro lado, é interessante como às vezes o filme se apropria de elementos do cinema de horror para apresentar a decadência dos espíritos. A própria cena de um dos homens que assiste ao próprio funeral poderia assustar a espectadores da década de 1960, por exemplo. Minha cena favorita é uma em que os mensageiros lutam contra as forças sombrias pelo espírito de um homem.
MINHA IRMÃ E EU
Este filme foi me ganhando aos poucos. Se, no início, eu demorei a embarcar no humor de Ingrid Guimarães e Tatá Werneck, quando se transforma num road movie, o novo trabalho de Susana Garcia (MINHA MÃE É UMA PEÇA 3 - O FILME, 2019) é só alegria, com a química entre as duas atrizes funcionando perfeitamente. Na trama, duas irmãs, depois de terem deixado claro que não queriam cuidar da mãe (Arlete Salles), saem numa viagem em busca da genitora magoada. No meio disso tudo, há a brincadeira com as mentiras da personagem de Werneck, cheia de trambiques, e isso acaba gerando boas situações, como o encontro com o caubói do touro. MINHA IRMÃ E EU (2023) é um tipo de comédia que poderia render um bom público se as pessoas voltassem a frequentar os cinemas. A experiência coletiva na sala foi muito boa, com o público rindo e gargalhando a valer. Ou seja, se temos tradição com a comédia, um bom boca a boca pode ajudar a reconquistar a audiência perdida, nesses tempos em que, até no cinema, vemos propaganda de filmes que estão em cartaz na Netlfix. No mais, parabéns a Tatá Werneck, verdadeira craque do humor físico e rápido.
Sua postagem é um farol de brilho! Esclarecedora, bem elaborada e totalmente envolvente. Obrigado por compartilhar sua perspectiva conosco. Aventure-se por guias detalhados sobre o Aviador em nosso blog.
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