domingo, dezembro 03, 2023

EU MATEI JESSE JAMES (I Shot Jesse James)



Aproveitemos a animação do dia para dar início oficialmente à minha peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller. Vou fazer o possível para não me demorar muito desta vez, como fiz (tenho feito) com a filmografia do Brian De Palma – ainda faltam três filmes para eu ver/rever e comentar aqui no blog e até o fim deste ano pretendo fazer o encerramento. Mas não resisti à vontade que me deu de rever EU MATEI JESSE JAMES (1949), a estreia na direção de Fuller, um dos cineastas mais queridos de Carlos Reichenbach e Jean-Luc Godard. Não à toa, os dois mestres o homenageiam em ALMA CORSÁRIA e O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS, respectivamente. Não ter me aprofundado na obra de Fuller nesses anos todos está mais próximo de falta de vergonha na cara de minha parte. Mas ninguém é perfeito, certo?

Falando em ser imperfeito, o protagonista de EU MATEI JESSE JAMES é um sujeito que comete um ato espúrio, abominável, de difícil adjetivação. Mas é pela ótica desse homem confuso que acompanhamos o filme. Se Nicholas Ray era um cineasta que abraçava os marginalizados com humanidade e Alfred Hitchcock nos aproximava dos culpados, Fuller vai mais fundo e nos carrega para as profundezas infernais da consciência de Bob Ford (John Ireland), o braço direito do lendário fora-da-lei Jesse James, que o mata pelas costas, quando sabe que há uma recompensa para quem o capturar. Ele também sonha em se casar e transitar tranquilamente pelas ruas sem ser preso – a vida de foragido estava cansativa. Cynthy (Barbara Britton), a atriz por quem ele se apaixona, porém, fica horrorizada com o ato do pretendente e tem por ele repulsa. 

Já havia visto o filme em DVD há 15 anos (há texto meu no blog) e a revisão o tornou ainda maior, já que pude perceber mais detalhes, como opções de enquadramento (destaque para os close-ups para acentuar as tensões), iluminação, diálogos. Acho incríveis, por exemplo, as imagens finais de Bob Ford (John Ireland) aparecendo na escuridão, como se, pela primeira vez, o filme mostrasse de fato onde está sua alma: numa noite densa. Na cena, o xerife John Kelley (Preston Foster) está pronto para prendê-lo e impedi-lo de se casar com Cynthy, até porque a jovem não queria se casar com ele. Sentia por ele um terrível medo.

O filme é de um amargor admirável e em nenhum momento odiamos o personagem, mas lamentamos sua condição de homem caído e, no entanto, ainda à procura de algo que traga "um inferno mais tranquilo" (como cantou Lobão) para sua vida, como fazer a sorte nas minas do oeste para poder se casar rico e cuidar de uma fazenda com sua esposa. No entanto, desde que ele aceita participar de uma dramatização no teatro de como foi matar Jesse James e não conseguir repetir o ato em cena, e depois ainda de ouvir uma canção narrando seu ato da mais pura covardia, Ford passa a buscar algum ripo de redenção, inclusive chegando a dizer, durante um tiroteio num saloon, que odeia as pessoas que atiram nas outras pelas costas. Ou seja, estava admitindo que odiava a si mesmo.

Há vários artigos que comentam sobre questões homoeróticas no filme, graças principalmente a cena em que Jesse James estã na banheira e pede a Ford que traga a toalha e use a escova para escovar suas costas. Isso, logo após presentear Ford com uma arma nova. A arma que seria usada para matá-lo. Ford estaria trocando um amor por outro ao matar James. Sob esse aspecto, ele teria cometido também um ato de violência contra seu próprio desejo, ainda que reprimido. Quando se vê numa situação de não ser amado pela mulher e de ter matado seu objeto de desejo, a aceitação da morte no final, com suas últimas palavras no ouvido de Cynthy, surge como um presente para o personagem.

Fuller, por ser uma pessoa que teve experiência na guerra, talvez tenha trazido para seus filmes esse mal-estar, um mal-estar que também era, de certa forma, característico daquela década sombria que estava se encerrando. Havia também a experiência de Fuller como jornalista, tendo trabalhado em redações de jornal desde a adolescência, e depois passando a ser roteirista em Hollywood, o que lhe deu muita frustração, já que ele pensava o filme de uma maneira muito diferente daquilo que via concretizado na tela. Eis o motivo de ele ter se tornado diretor de seus próprios roteiros, em produções baratas, mas com uma elegância que se misturava com uma espécie de brutalidade e de amor.

Não à toa, o escritor Phil Hardy, em seu livro Samuel Fuller (1970), ao optar por dividir as obras do diretor em subtemas, coloca EU MATEI JESSE JAMES dentro do subtema “The Violence of Love”, onde inclui também as obras O BARÃO AVENTUREIRO (1950), DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957) e O BEIJO AMARGO (1964). Enfim, ainda não estou íntimo da obra de Fuller, mas a intenção é estar, à medida que vou entrando em contato com seus filmes.

Filme visto no box Cinema Faroeste - Faroeste Noir.

+ DOIS FILMES

A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO (La Corta Notte delle Bambole di Vetro)

O filme escolhido por mim para homenagear Aldo Lado, falecido no último dia 25, foi sua estreia como diretor, talvez seu título mais famoso, junto com outro giallo, QUEM A VIU MORRER? (1972). A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO (1971) tem uma narrativa confusa, kafkiana, apoiada na beleza das cores da fotografia que destaca bastante o verde, mas também na angústia do protagonista, um homem que começa o filme em estado de catalepsia, vivido por Jean Sorel. O problema é que, apesar da falta de um rigor mortis, ele é considerado morto pelos médicos legistas. Enquanto isso, ele busca recordações de como chegou até aquele momento de horror. A trama envolve, a princípio, o desaparecimento de uma moça (Barbara Bach) e uma organização secreta de ricos idosos de um país do leste europeu, lugar que fornece uma ambientação interessante e que é valorizada em suas pontes, igrejas com gárgulas e ruas estreitas. Belo filme, que ainda por cima conta com uma trilha memorável de Ennio Morricone. Filme presente no box Giallo Vol. 2.

A FILHA DO NILO (Ni Luo He Nu Er)

Em outubro, soube da aposentadoria de Hou Hsiao-Hsien, ocasionada pela demência. E fiquei triste. Com o empurrãozinho do livro da Versátil sobre novos cinemas, peguei para ver A FILHA DO NILO (1987), que nem é um dos filmes mais celebrados do realizador. Posso até não ter ficado feliz da vida com a experiência, mas tinha certeza de que estava vendo grande cinema, feito por alguém que se importa tanto com os enquadramentos, que cada imagem, com frequência, se situa dentro de um outro quadro, e muitas vezes um quadro recortado, como nas cenas dentro da casa, com uso de câmera estática, que ajudam a educar o nosso olhar e nos mantém mais atentos. Até diria que essas cenas dentro da casa, em que a gente vai percebendo a construção do quadro e daquilo que se movimenta dentro dele, são as que mais me interessaram. Eu tive que voltar o filme cerca de meia dúzia de vezes por me perder na narrativa ou nos personagens, mas sempre que retornava percebia algo especial. A opção por mostrar mais as ações "menos importantes" e esconder especialmente o que acontece com o irmão envolvido com (ou incomodando) o crime organizado da cidade me fez lembrar Yasujiro Ozu. A FILHA DO NILO é também um belo retrato de uma época, a década de 1980, com Taiwan sendo muito marcada pela cultura norte-americana, presente nas roupas, no corte de cabelo, na música. O filme demora um pouco para nos situar na família da protagonista e até gosto dessa coisa de não ter uma narrativa que nos segure pelo braço e seja tão didática. Visto no box Nouvelle Vague Taiwanesa.

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