Dezembro de 2022 começou como um mês especial para mim, com essa possibilidade incrível que foi o Fest Aruanda, e que ainda deve render pelo menos mais uma ou duas postagens por aqui. O problema foi que, ao chegar de volta ao lar, estava tão cheio de pendências na escola, que nesses dias até suspeitei de pressão alta. Nem sei se é, mas talvez seja o caso de dar uma passada num especialista em breve. Enquanto isso, vou aproveitando esta brecha para falar de um dos melhores filmes exibidos no Fest Aruanda, FAUSTO FAWCETT NA CABEÇA (2022), de Victor Lopes, que teve sua première brasileira no Festival do Rio e agora tem passado por alguns outros festivais ou mostras.
A obra máxima, ou pelo menos o clássico maior do cantor, compositor, romancista e pensador Fausto Fawcett, talvez ainda seja “Kátia Flávia, Godiva do Irajá”, lançada em 1987 e que fez um sucesso tremendo nas rádios. O som do baixo é contagiante, assim como é fascinante o estilo falado (rap) de Fausto, ao contar a história dessa ex-Miss Febem casada com um figurão da contravenção e que ficou famosa por andar toda nua num cavalo branco pelas noites do Rio de Janeiro. A letra parece delirante no modo como une as informações para construir uma espécie de mito de uma mulher provocante e misteriosa. E loira, talvez a primeira de outras loiras fatais de canções de Fawcett.
Vendo o filme de Lopes somos apresentados ao incrível processo de trabalho de Fausto, que, para minha surpresa, roubou o sobrenome artístico da atriz americana Farrah Fawcett. Para mim foi uma surpresa, e uma prova de que eu tenho muito a aprender sobre o artista. Não só eu, aliás. O filme está aí para tornar o artista, hoje injustamente pouco lembrado, como um dos mais inventivos e originais dos anos 1980/90. Ou melhor, da contemporaneidade, pois Fausto segue escrevendo romances e fazendo suas performances.
Um dos aspectos mais brilhantes de FAUSTO FAWCETT NA CABEÇA é o modo como Victor Lopes incorpora a estética do artista biografado e foge com frequência de uma cinebiografia tradicional. Há o fato de o biografado estar vivo e ajudar a compor com o cineasta a obra, a partir de novas performances e de reencontros com colegas para criar no calor do momento novas composições. Como não sorrir na hora que Fausto e Carlos Laufer compõem uma canção de improviso com base numa espécie de visão de Fausto sobre uma fotografia recente de Brooke Shields? Destaque também para o modo como o cineasta capta esse momento, com uma distorção da imagem dos artistas, com recursos visuais muito interessantes. Aliás, as intervenções visuais de Lopes no filme são de encher os olhos, chegando até mesmo a mudar a paisagem de Copacabana.
Outro ápice visual do filme é o momento em que a câmera se aproxima para captar a imagem de Fausto no que parece ser um terraço (o edifício do MIS) e está chovendo na cidade. O tom de melancolia que de vez em quando invade o filme, até por ter sido gravado durante a pandemia de COVID-19, parece encontrar um momento muito feliz (no sentido “artístico” do termo) nessa imagem. Mas encontramos também a melancolia quando o filme abre espaço para que conheçamos um pouco de Fausto Borel Cardoso, o homem, e um pouco menos o artista, o verdadeiro foco. Há algumas frases de Fausto que ajudam a enfatizar essa melancolia e essa solidão, como “O amor é predador” ou “Confesso que não sou muito bom com sentimento, não.” Não podemos deixar de mencionar a própria residência de Fausto, um apartamento bem pequeno (a “cela 1107”, como ele a apresenta) em Copacabana, que fica mais pequeno ainda na maravilhosa cena final, com uma fala tão brilhante que me fez lembrar o prólogo de EROS – O DEUS DO AMOR, de Walter Hugo Khouri. A diferença é que saímos de São Paulo e entramos no Rio; trocamos Marcelo por Fausto, por acaso (ou não?) duas personas essencialmente masculinas com ares mitológicos.
O documentário é um reflexo do próprio espírito singular do artista. Fausto, ao mostrar um de seus métodos de composição, fazendo associações com imagens na parede, como um mural, imagens que aparentemente não têm muita ligação uma com a outra, nos deixa ainda mais impressionados com seu trabalho. O cantor e compositor de “Kátia Flávia...”, “Rio 40 Graus” (gravada por Fernanda Abreu) e “Básico Instinto”, entre outras, foi o primeiro artista a colocar um rap nas rádios e que trouxe um estilo muito particular e original de composição e de apresentação, usando recursos multimídia, como dançarinas, DJs, vídeos, samplers etc.
Essas várias facetas do artista são vistas no documentário, que se conjuga com a inventividade do artista a partir do uso de imagens, efeitos, colagens, ruídos, tudo isso enquanto somos arremessados ao passado e ao presente de Fausto e a seu local-fetiche, o bairro de Copacabana. Ou seja, não se trata apenas de um documentário que mexe com nossa nostalgia e traz novas informações sobre o objeto de estudo, mas também encanta como cinema de experimentação e de invenção.
+ DOIS FILMES
MANGUEBIT
Quem viveu a juventude nos anos 1990 certamente sentiu a alegria de ver e ouvir Chico Science & Nação Zumbi, uma banda tão grande e tão importante que se percebe um esforço por parte do diretor deste filme de dar um espaço em pé de igualdade não apenas a eles e ao mundo livro s/a, mas também a outras bandas e outros artistas pernambucanos surgidos nesse boom ocorrido nessa década tão particular. Há também em MANGUEBIT (2022), de Jura Capela, um espaço para falar um pouco de um filme que surgiu na esteira do sucesso dessas bandas, BAILE PERFUMADO, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Ótimo trabalho de montagem e muito emocionante ver e ouvir tanta música boa. A gente sai da sessão querendo ouvir guitarra e tambores no talo.
LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR
Além de LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR (2022), de Alfredo Manevy, ser um convite a adentrarmos a vida e a obra de Lupicínio Rodrigues, saí da sessão com a certeza de que o Brasil possui uma das melhores músicas do mundo. Isso porque Lupicínio, em determinado momento, comenta sobre as mudanças que ele vê a música brasileira passar, com o advento da bossa nova, do iê-iê-iê e do tropicalismo, enquanto seu estilo vai ficando “ultrapassado” pelas novas gerações. E além de aprendermos, inclusive com áudio do próprio cantor e compositor, de sua história, ainda percebemos o quanto sua música segue viva, tendo sido gravada por vários artistas contemporâneos. Aquela versão de Gal Costa de “Volta” é de fazer chorar.
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