quarta-feira, setembro 07, 2022

MARIA – NINGUÉM SABE QUEM SOU EU



Maria Bethânia é uma das artistas mais fascinantes da música brasileira. E desde seus primeiros anos de carreira o cinema tratou de reverenciá-la. Há um documentário em curta-metragem dirigido por Júlio Bressane e Eduardo Escorel chamado BETHÂNIA BEM DE PERTO – A PROPÓSITO DE UM SHOW (1966) que já apontava o fascínio pela cantora. A partir dos anos 2000, ela passou a ser vista com certa frequência em documentários que a homenageavam ou a traziam aos holofotes, como MARIA BETHÂNIA – MÚSICA É PERFUME (2005), de Georges Gachot; MARIA BETHÂNIA – PEDRINHA DE ARUANDA (2007), de Andrucha Waddington; (O VENTO LÁ FORA) (2014) e FEVEREIROS (2017), ambos de Marcio Debellian; sem falar em outros tantos documentários sobre outros artistas em que ela comparece, ou até em longas-metragens dos anos 1960 e 80 em que ela é creditada como atriz.

Essa atração do cinema por Bethânia talvez seja explicada em MARIA – NINGUÉM SABE QUEM SOU EU (2022), de Carlos Jardim, quando ela conta o momento em que percebeu que suas apresentações deveriam ser vistas em teatros e não em casas noturnas. Afinal, o que ela apresentava se aproximava bastante do ambiente das peças, já que a dramatização é parte essencial de sua arte. Nada melhor, então, do que usar os recursos do teatro, como a iluminação e a direção de arte, para enriquecer seus shows. O cinema não é citado em nenhum momento, mas acho muito fácil estabelecer um elo entre e cinema e teatro, assim como é fácil para a cantora fazer uma ligação muito estreita entre música e literatura. Bethânia trafega por essas artes com muito prazer e muita naturalidade. Tão natural quanto seu cantar.

Mas uma das coisas que mais me encantou neste documentário de formato bastante simples, com o revezamento contínuo de depoimento e imagens de arquivo, é o quanto o filme destaca, mesmo que de maneira inconsciente, a figura de mulheres fortes. Orbitam Maria Bethânia as figuras de Nossa Senhora, sua mãe Dona Canô, Mãe Menininha do Gantois e Fernanda Montenegro, que com sua voz poderosa recita textos imensos sobre a cantora. O modo como Bethânia justifica sua preferência por Nossa Senhora (no lugar do todo poderoso Deus) faz conexão com o momento mais emocionante do filme, quando Bethânia é perguntada sobre sua mãe. E o filme ainda nos brinda com uma imagem linda das duas cantando. Eu, canceriano fã de mães que sou, chorei bastante nesse segmento. A mãe, como a figura cuidadora e amorosa, parece muito mais atraente para um contato de proximidade com a santidade do que um pai. E eu digo isso sendo alguém que não cresceu em lar católico.

E assim como uma mãe carinhosa, uma das forças de Bethânia está em cantar cada palavra como se a acariciasse, mesmo quando canta a dor, a ferida exposta. Aliás, por isso as composições do Gonzaguinha são tão poderosas quando cantadas por ela. E essa força da palavra a aproxima da poesia e da prosa poética – no filme, vemos a cantora recitar Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Mia Couto em diferentes momentos. O respeito, o interesse e o amor que Bethânia tem pela literatura ficam bem explícitos na entrevista, que procura, de alguma maneira, decifrar essa mulher misteriosa que tem uma alegria de viver tão contagiante que o choro pode vir em momentos inesperados ao longo de suas declarações.

Assisti ao filme ao lado das minhas amigas Valéria e Bárbara e de vez em quando Valéria brincava: “não pode pausar?”. Tudo a ver, levando em consideração o quanto cada momento, seja das imagens de arquivo, seja da entrevista, tem de valioso e de convite à reflexão (ou à pausa para recuperação emocional), a ponto de misturarmos nossa compreensão do filme com nossas experiências de vida. As associações são praticamente inevitáveis.

Temos muita sorte de viver na mesma época de Bethânia, Caetano Veloso (que aparece como uma espécie de guia para a irmã desde a infância), Gilberto Gil, Chico Buarque, Roberto Carlos, enfim toda essa turma que segue viva e que surgiu principalmente nos férteis anos 1960.

Ao final da sessão e depois dos abraços cheios de saudade, voltei para casa ouvindo pela primeira vez, integralmente, Álibi (1978), um dos discos mais fantásticos da música brasileira. E a noite escura do caminho de volta me parecia mágica. E minha vida parecia mais feliz. Certas coisas não têm preço. 

+ DOIS FILMES

AMIGO SECRETO

É triste constatar o processo de piora no cenário político, econômico e social brasileiro desde 2013. Tanto que quando Maria Augusta Ramos lançou O PROCESSO em 2018 lamentávamos muito o absurdo que foi retirar uma mulher inocente da cadeira da presidência da república para iniciar o golpe. E eis que de lá pra cá tivemos prisão do Lula, eleição do Bolsonaro, entrada de Moro como ministro da Justiça e defesa, pandemia, escândalo das vacinas, ameaça ao estado democrático, mais de 600 mil pessoas morrendo de Covid e outras milhões passando fome... Ou seja, em 2018 não sabíamos que tudo poderia piorar tanto. E ainda não sabemos o que virá, claro. Mas se o próprio documentário novo de Ramos termina com imagens tristes, também termina com um cenário atual que aparentemente traz um pouco de esperança para os próximos anos. Em AMIGO SECRETO (2022), os personagens principais são jornalistas do The Intercept Brasil, que cobriram e lançaram as bombas vindas de um vazamento de mensagens entre o então juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato. AMIGO SECRETO não deixa de ser uma desforra em relação aos eventos de O PROCESSO, mas ainda é muito cedo para celebrar. O filme tem seus problemas de ritmo e a sensação de que muito foi cortado na edição final. Afinal, há tanta coisa que acontece dentro desse pesadelo que é o governo Bolsonaro que um filme só não daria mesmo conta. Mas temos uma vantagem deste documentário em relação ao anterior, que é uma maior facilidade de ser compreendido por uma audiência estrangeira. Isso é algo positivo para uma visualização maior no mundo e não apenas para ser apreciado por pessoas de linha mais progressista.

8 PRESIDENTES, 1 JURAMENTO - A HISTÓRIA DE UM TEMPO PRESENTE

Mais um documentário que vem se juntar aos vários que vêm sendo feitos para registrar ou fazer refletir sobre o nosso tempo. Na verdade, este aqui tem a tarefa inglória e ousada de tentar fazer um resumão da história do Brasil a partir dos movimentos para as eleições diretas. Então, cobre desde a eleição indireta que elegeu Tancredo Neves e José Sarney até um pouco deste momento ensandecido, desgovernado por Jair Bolsonaro. Como documentário de montagem, 8 PRESIDENTES, 1 JURAMENTO - A HISTÓRIA DE UM TEMPO PRESENTE (2021), de Carla Camurati, acaba optando por mostrar certas coisas e toma seu partido, que é puxar os melhores momentos para Fernando Henrique Cardoso, e comete até o desrespeito de apresentar aqueles memes sem graça para desmerecer Dilma Rousseff. Ainda assim, sobram momentos emocionantes, que é justamente o tom mais emocional de Lula e Dilma em certos momentos de suas carreiras. Lula, quando toma posse; Dilma, quando fala sobre as torturas na época da ditadura. Como é um documentário bem filiado à Globo, incomoda bastante ver a atenção dada ao pessoal da Lava Jato sem depois não apresentá-los como farsantes. Sem falar que é daqueles filmes que nos deixam bem tristes com a nossa história política e econômica. 

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