Uma das coisas que eu temo um dia acontecer é o fim das salas de cinema como as conhecemos. Antes mesmo da pandemia já vinha ocorrendo uma migração forte de muitos cinéfilos para os streamings, da experiência da sagrada sala escura para o conforto de seus lares. Os streamings também funcionaram como um elemento amplificador da preguiça para muitos que buscavam os filmes por meios alternativos ou para a compra de mídia física. Quem tem o streaming x é só ligar a TV, dar um search pelo filme (se necessário) e apertar play no controle remoto. E se há preguiça de procurar o filme para ver em casa, que dirá de ir à sala de cinema.
Voltei a pensar nesse suposto fim das salas de cinema quando frequentei as tantas sessões maravilhosas da Mostra Retrospectativa do Cinema do Dragão e fui um dos sortudos a estar presente. Acredito que, além de BENEDETTA, de Paul Verhoeven, que já era um filme que vinha em caráter de pré-estreia e com um hype considerável, a única sessão bastante animada da mostra foi a de MEMORIA, de Apichatpong Weerasethakul, talvez por ser sessão única. Mas que também é um exemplo de que não há como comparar a experiência de ver em casa este filme em específico com vê-lo na tela grande e com apropriado. Pretendo voltar a falar desse título em breve, quando estiver com tempo, disposição e um pouco de inspiração.
Por ora, falemos do último inédito que vi na mostra, o impressionante filme-ensaio IRRADIATED (2020), de Rithy Panh, mais conhecido como o diretor de A IMAGEM QUE FALTA (2013), indicado ao Oscar de filme estrangeiro, mas que possui uma carreira de mais de 20 títulos, todos, se não me engano, abordando o tema do horror da guerra. E não é para menos: Panh teve sua família assassinada de modo extremamente cruel pelo Khmer Vermelho. Seu pai, sua mãe, suas irmãs e sobrinhos morreram de fome e exaustão em um campo de trabalhos forçados na zona rural do Camboja. Isso já é motivo mais do que suficiente para que um artista dedique sua carreira a tratar desse assunto, seja especificamente dos horrores de seu país natal, seja dos horrores das guerras em outras partes do mundo.
IRRADIATED tem essa proposta mais abrangente e por isso mesmo mais impactante no modo como nos deixa em estado de desesperança com a raça humana. Confesso que não é um filme que eu anseio rever tão cedo, pois o impacto emocional que ele provoca é deveras pesado. Senti algo semelhante a uma náusea, tanto pelas imagens fortes (em alguns momentos quis virar o rosto), quanto pelo sentimento de maior conscientização do mal perpetrado pelo homem em diversas guerras e também em atos inadjetiváveis, como fazer experiências com seres humanos e filmar o ato ou o resultado.
E há um detalhe que não é exatamente um detalhe: Rithy Panh usa uma tela tripla aproveitando o formato scope para compor suas imagens e intensificar a força delas. Como se diz na narração, é essa a intenção. IRRADIATED usa um tipo de lirismo narrativo semelhante ao de HIROSHIMA, MEU AMOR, de Alain Resnais, mas de maneira muito mais seca, muito mais cruel para o espectador, talvez mais próximo de NOITE E NEBLINA, do mesmo Resnais, ambos citados em imagens. Essas duas obras-primas de Resnais lidam com dois dos maiores crimes da raça humana: o holocausto nazista e as bombas de Hiroshima e Nagazaki enviadas pelos Estados Unidos.
Ao ver este oratório audiovisual, as lágrimas não vêm. O que vem é um nó na garganta e uma tristeza imensa. A proposta de Panh de fazer uma reflexão sobre o mal é extremamente bem sucedida. Às vezes, em vez da narração e música temos apenas o silêncio e as imagens, muitas delas já vistas, mas nem por isso menos dolorosas. Corpos humanos tratados como lixo nos campos de concentração, pilhas de corpos jogados em valas, arrastados pelos próprios prisioneiros com rostos já despidos de esperança e talvez até da própria noção de realidade. E há a bomba de Hiroshima, vista inúmeras vezes na tela tripla ou na tela ampliada, além dos efeitos nas cidades vizinhas.
Talvez a única coisa que eu tenha achado desnecessário no filme tenha sido as imagens das figuras vestidas de fantasmas do imaginário japonês, que parece mais apropriado para uma peça teatral e acaba interferindo um pouco no fluxo poderoso das imagens de arquivo. Mas respeito as intenções do cineasta. Além do mais, esses elementos são menores em comparação com o tanto que IRRADIATED nos deixa em um estado próximo à depressão nesse choque de realidade. Talvez por isso não seja recomendado a audiências extremamente sensíveis.
+ DOIS FILMES
POUR DON CARLOS
Tenho um pouco de dificuldade em me concentrar, de não me dispersar em filmes silenciosos, principalmente esses que possuem muitos personagens e tramas mais intrincadas. Comecei a tomar gosto por POUR DON CARLOS (1920), de Musidora e Jacques Lasseyene, a partir da simplificação de sua história, que acontece quando dois homens vão para uma guerra civil ocorrida no século XIX na Espanha e viram alvo de preocupação de certas pessoas, entre eles uma mulher interpretada por Musidora, uma das figuras mais interessantes do cinema mudo francês. O rosto expressivo da atriz (e aqui também diretora) é bem marcante. E há algumas cenas visualmente marcantes, como o enterro de um corpo, ou a tensa cena em que a personagem tenta seduzir um homem para conseguir a soltura de um amigo.
FABIAN - O MUNDO ESTÁ ACABANDO (Fabian oder der Gang vor die Hunde)
Como desconheço a poética de Dominik Graf talvez não tenha penetrado da maneira mais adequada neste seu trabalho ambicioso - pela duração, mas também por ousar documentar a Alemanha do início dos anos 1930, quando o nazismo estava se estabelecendo e impondo sua força de maneira mais agressiva. Era um momento de depressão gritante no país, que sofria ainda com as consequências da Primeira Guerra e a taxa de desemprego era altíssima. O Fabian do título (Tom Schilling) é um rapaz que trabalha em uma empresa de cigarros, mas que na verdade intenciona seguir a carreira de escritor. Durante uma de suas noites pela grande metrópole decadente, ele conhece e se apaixona por uma atriz de cinema (Saskia Rosendahl) e o amor é correspondido. O curioso da estrutura narrativa de FABIAN - O MUNDO ESTÁ ACABANDO (2021) é que ele começa de maneira bem agitada e por vezes de difícil compreensão, mas que, após a cena do encontro dos amantes, ocorre um outro tipo de andamento, mais lento e mais convencional também. Gosto muito de como o diretor inclui imagens reais (assim acredito) da Berlim da época, trazendo mais verdade para sua obra. O final me deixou mais decepcionado do que triste, e talvez eu veja isso como um problema. Ainda assim, para uma obra de cerca de três horas de duração e com algumas ousadias formais, é bastante envolvente.
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