quinta-feira, fevereiro 17, 2022

CHANGEMENT D’ADRESSE



Passei por maus bocados nesses últimos dias. Começou com dores no corpo no domingo, depois uma mistura de dor com ardor na região lombar, sem falar na disposição física, próxima do zero. Como já estou sendo medicado, hoje me sinto melhor. Estou aguardando o resultado do teste de COVID, por via das dúvidas (o médico achou os sintomas muito a cara de COVID). O ruim desses dias em casa doente é que até o prazer de ver filmes fica bastante prejudicado. O máximo que consegui foi ver um filme do Arnaldo Jabor, “parcelado”. Acredito que teria gostado mais em outras circunstâncias, embora tenha conseguido perceber suas qualidades de forma racional, apesar das dores. 

No sábado, como estava melhor, a apreciação de um Emmanuel Mouret inédito para mim foi muito saborosa. E eu não poderia deixar de falar de CHANGEMENT D’ADRESSE (2006) de maneira um pouquinho mais elaborada e não apenas nesses pequenos textos que funcionam como notas de rodapé, que estou fazendo no blog apenas por não conseguir tempo e energia para dar conta de escrever com calma sobre todos os filmes que vejo. Principalmente nesse último mês de janeiro, quando vi bem mais títulos do que a média dos outros meses.

Este é o terceiro longa-metragem de Mouret e já apresenta com muita leveza aquilo que o cineasta-ator-roteirista mostraria em suas obras posteriores, inclusive quando passaria a fazer também histórias dramáticas. Neste filme da primeira fase, temos novamente Mouret como uma espécie de Woody Allen francês, no jeito desajeitado com que aborda as mulheres e de como tenta compensar a timidez com a conversa. Em filmes posteriores, notar-se-ia uma maior influência de Éric Rohmer, mas em uma comédia mais física, como FAÇA-ME FELIZ (2009), por exemplo, vi traços tanto de Jacques Tati quanto das screwball comedies dos anos 1930, como LEVADA DA BRECA, de Howard Hawks, por exemplo.

Na trama de CHANGEMENT D’ADRESSE (que eu saiba, o filme nunca chegou a ser lançado no Brasil e por isso não há um título brasileiro – me avisem se a informação estiver incorreta), Mouret é David, um músico que passa a dividir o apartamento com Anne, vivida por Frédérique Bel, parceira de Mouret nos saborosos SÓ UM BEIJO POR FAVOR (2007), o já citado FAÇA-ME FELIZ e A ARTE DE AMAR (2011). Ela acaba se tornando a melhor amiga do protagonista, embora um sentimento amoroso esteja no ar o tempo todo, nem que seja apenas sentido de forma consciente apenas pelo espectador. Assim, ficamos numa posição de privilegiados ao saber que eles dois foram feitos um para o outro, pelo menos dentro das opções disponíveis na trama. Até porque é com Anne que David se sente mais à vontade – eles até chegam a conversar numa boa enquanto Anne está tomando banho nua na banheira.

Como Anne tem um namorado (que nunca aparece no filme, está sempre viajando) e David se apaixona pela jovem Julia (Fanny Valette, de A PEQUENA JERUSALÉM), sua aluna de trompa, a relação dos dois segue sendo de cumplicidade. Aliás, é curioso o abismo existente nas personalidades de Anne e Julia. Enquanto Anne é muito tagarela e fala tão rápido quanto um personagem de desenho animado, Julia é tão silenciosa e calada que chega a acentuar o constrangimento de David em suas abordagens tímidas. Há uma cena que denota uma situação de perdedor passivo do personagem: quando ele viaja com Julia e eles acabam conhecendo um cara na viagem e ela se apaixona pelo tal sujeito.

É interessante perceber que tanto CHANGEMENT D’ADRESSE quanto SÓ UM BEIJO POR FAVOR partem de perguntas do tipo “o que aconteceria se...?”. Se em SÓ UM BEIJO POR FAVOR, ele parte da pergunta “e se eu beijasse a minha melhor amiga, será que isso prejudicaria nossa amizade?”, em CHANGEMENT D’ADRESSE a pergunta que vem é “e se eu compartilhasse o mesmo apartamento com uma mulher atraente, um apartamento especificamente sem muitas portas ou muita privacidade, será que seria complicado estabelecer uma relação de amizade pura e simples?”. Outra coisa que também se percebe nos filmes do realizador é uma preferência pelo chamado quadrado amoroso (ou até um quinteto, quando entra uma outra pessoa na equação). De todo modo, seja no registro da comédia ou do drama, o que eu tenho notado é que essas perguntas têm resultado em filmes que trazem um prazer de assistir de dar gosto.

CHANGEMENT D’ADRESSE foi exibido no Festival de Cannes, na Quinzena dos Realizadores, e foi muito bem recebido, aplaudido de pé. Mesmo levando em consideração a duração curta (85 min), é impressionante como o filme passa voando. Mérito da direção, da montagem e da graça de todos os envolvidos. Um viva para Mouret e sua trupe!

Agradecimentos a Paula, entusiasta de Mouret, pela companhia durante a sessão, e a William Salgado, que fez a gentileza de sincronizar as legendas em português, que até então não estavam casando com a versão que eu dispunha.

+ DOIS FILMES

A MULHER QUE FUGIU (Domangchin Yeoja)

Ver A MULHER QUE FUGIU (2020), de Hong Sang-soo me passou uma impressão que Sang-soo talvez esteja precisando efetuar mudanças em seu estilo, de modo a trazer mais energia e paixão, coisa que havia de sobra em obras como FILHA DE NINGUÉM (2013) e CERTO AGORA, ERRADO ANTES (2015). Mas quem sou eu para questionar um autor como ele? Até porque este filme talvez cresça com uma revisão, já que eu gosto bem mais do terceiro segmento, quando passo a compreender um pouco mais – só um pouco – o drama pessoal da personagem de Kim Min-hee. Também gosto do primeiro segmento (acredito que a separação em segmentos seja um tanto óbvia, ainda que não explícita). É no primeiro segmento que há aquele diálogo bem engraçado envolvendo um gato no condomínio.

A WORLD WITHOUT WOMEN (Un Monde sans Femmes)

Acho que estou me tornando um fã de Guillaume Brac, tendo visto apenas um curta, um média (este filme tem pouco menos de uma hora) e um longa dele, ALL HANDS ON DECK (2020). Me encanta o tom agridoce de suas comédias dramáticas habitadas em ambientes de lazer e de encontros e despedidas. Em A WORLD WITHOUT WOMEN (2011), o personagem Sylvain (Vincent Macaigne), do curta LE NAUFRAGÉ (2009), está de volta. Ele é um sujeito tímido, mas que se esforça em tentar diminuir sua solidão na cidadezinha litorânea onde mora. Aqui ele se interessa por Patricia (Laure Calamy), que chega com a filha Juliette (Constance Rosseau) para passarem uns dias de descanso na praia. Sentimentos surgem, o desenrolar da relação breve é imprevisível e o filme termina com um misto de quentinho no coração com algum aperto. Lindo, lindo.

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