domingo, fevereiro 06, 2022

A VIAGEM DE PEDRO



Quinto longa-metragem de ficção de Laís Bodanzky, A VIAGEM DE PEDRO (2021) é a primeira incursão da cineasta no território dos filmes de época e isso já demanda um esquema de produção muito bem cuidado. Aliás, é bom perceber que a finalização das filmagens ocorreu em 2018, quando ainda havia um Ministério da Cultura, ao menos. Então, percebemos que esses filmes brasileiros de produção mais ambiciosa (são bem poucos, na verdade) são herança de outros governos. 

Se A VIAGEM DE PEDRO é o primeiro filme histórico, por assim dizer, de Bodanzky, é também um mergulho admirável no horror psicológico, que permeia a ida aos infernos de Pedro I, quando de sua viagem a Portugal, a fim de lutar contra o meio-irmão e conseguir o trono do seu país-natal, colocando sua filha mais velha como imperadora. Se olharmos para a filmografia da diretora, que se mostra de uma versatilidade impressionante, talvez só encontremos esse tipo de situação de horror psicológico em seu longa de ficção de estreia, BICHO DE SETE CABEÇAS (2000), por abordar a situação perturbadora de alguém que se vê preso contra sua vontade em um hospital psiquiátrico que ainda adotava aquela “técnica” terrível do eletrochoque.

A maior parte da ação de A VIAGEM DE PEDRO se passa no navio inglês que carrega pessoas de diversas nacionalidades e culturas. Entre brasileiros, europeus e africanos livres da escravidão, o Pedro vivido por Cauã Reymond procura compreender o que lhe aflige e que lhe tira até sua potência sexual. “Como é que eu vou ganhar uma guerra de pau mole?”, se pergunta ele, frustrado, a seu médico particular. Fragilizado, mas ainda procurando manter sua fama de mulherengo, em certos momentos ele se compara a Napoleão, que para ele é o exemplo de alguém que chegou a uma situação de conquista insuperável.

No navio, essa situação frente à esposa Amélia (Victoria Guerra, a bela atriz portuguesa de O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS) o deixa frustrado. Apesar de tudo, ou talvez por isso, o sexo não lhe sai da mente, tanto que ele chega a encenar um sexo oral com um polvo (!) e a também se aproximar de uma mulher negra do navio (Isabel Zuaa, de AS BOAS MANEIRAS). Laís Bodansky foge, assim, do que seria um filme histórico convencional. O que temos aqui é uma história que acontece, principalmente, dentro da mente de Pedro, do que ele vê no navio e do que ele lembra, através de flashbacks, de sua infância, quando chegou de Portugal em 1808, e de suas relações com sua primeira esposa Leopoldina (Luise Heyer) e com sua amante Maria da Glória (Luisa Gattai). Essas memórias ajudam um pouco a esclarecer a presente situação aflitiva do protagonista.

Bodanzky explora lindamente a dignidade dos personagens negros, suas culturas, suas dores, suas religiões e crenças. Há um personagem negro, inclusive, que se mostra muito poderoso frente àquele imperador pós-abdicação. Sérgio Laurentino é o chefe de cozinha do navio que desperta a atenção de Pedro, ao mesmo tempo que se apresenta como uma possível salvação para a doença que lhe aprisiona e lhe perturba. A cena do ritual é bastante poderosa e visualmente rica; assim como é linda a cena de Pedro caindo no mar, de um simbolismo que resume sua trajetória no filme e talvez na vida, como a narração dá a entender no final.

Posso estar errado, mas talvez a janela "clássica" (1,37:1) atrapalhe um pouco uma repercussão mais popular do filme quando for lançado em circuito, mas acho muito bonito a diretora não fazer concessões e entregar a obra como deseja. Além do mais, A VIAGEM DE PEDRO é mais um trabalho que atesta a habilidade da diretora em lidar com múltiplos personagens. Ela que já apresentou um elenco múltiplo lindo em CHEGA DE SAUDADE (2007) e em AS MELHORES COISAS DO MUNDO (2010), mais uma vez consegue dar conta da complexidade dos tripulantes do navio e dos habitantes da memória de seu herói pouco honrado e, por isso mesmo, muito humano.

+ DOIS FILMES

TÔ RYCA! 2

Achei o primeiro TÔ RYCA! (2016) bem divertido e por isso resolvi dar uma olhada nesta sequência, que tem os seus momentos, graças a gente muito boa como a própria Samantha Schmütz, o Rafael Portugal (que sempre rouba a cena) e a Evelyn Castro, que faz a mulher que afirma ter o mesmo nome e sobrenome de Selminha (Schmütz) e aparece para reivindicar a fortuna que a outra ganhou do nada. Assim como o primeiro filme, há em TÔ RYCA! 2 (2022), de Pedro Antônio, bons momentos de crítica social. Aliás, há, inclusive, uma indireta muito bem dada à classe média que se acha rica no Brasil. A cena da chuva talvez seja a melhor do filme, mas seria capaz de enumerar outras tantas. Só não chega a ser exatamente bom pois nem sempre as gags funcionam.

KEVIN

Linda a habilidade da diretora Joana Oliveira de fazer um documentário com tanta cara de ficção, a partir da viagem que ela faz a Uganda para visitar a amiga Kevin. As duas se conheceram 20 anos atrás quando estudaram na Alemanha e nunca perderam o contato. Agora que Joana está passando por um momento difícil de sua vida, ela sente necessidade de fazer essa viagem e encontrar apoio no carinho e na sabedoria de vida da amiga. Por mais que haja, imagino, cenas previamente performadas, combinadas, KEVIN (2021) passa uma verdade e flui de maneira tão tranquila, que parece se tratar de algo realizado facilmente, o que acredito que não seja o caso.

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