domingo, janeiro 02, 2022
A VIRGEM DE AGOSTO (La Virgen de Agosto)
"Todavía tengo tiempo, todavía estoy aquí"
Soleá Morente
Quem pelo menos algum dia na vida já se sentiu muito feliz em estar passeando sozinho pela própria cidade (ou por alguma cidade que não a sua, quem sabe) pode se identificar com Eva, a personagem de A VIRGEM DE AGOSTO (2019). Durante boa parte da metragem do filme, o diretor Jonás Trueba parece não ter a menor preocupação em contar uma história com uma trama propriamente dita. E isso é muito gostoso e muito atraente de se aceitar, já que os passeios de Eva (Itsaso Arana, também corroteirista) são deliciosos, e ela parece estar tão à vontade e feliz consigo mesma que faz parecer um convite a se aceitar a vida como uma dádiva, como algo que independe exclusivamente de outros.
Eva resolve ficar em Madri em agosto, justamente no período do ano que praticamente todas as demais pessoas da cidade resolvem aproveitar o verão para viajar para outras cidades ou outros países. Mal comparando, é como ficar em sua própria cidade durante o carnaval, mas é de fato uma comparação ruim. Por que ela estaria fazendo isso, o filme a princípio não explica.
Como A VIRGEM DE AGOSTO não é adepto de um tipo de narrativa com voice-over (a não ser em um momento muito pontual), temos a liberdade de nos colocarmos um pouco como Eva, de emprestarmos um pouco de nós mesmos à personagem. E isso ajuda muito a nos aproximarmos do filme. Observar o outro é prazeroso, embora também o seja encontrar pessoas conhecidas (quando descobrimos retalhos de sua vida) ou conversar ou encontrar desconhecidos e estabelecer novos vínculos. Afinal, não se trata de um filme sobre solidão.
Até porque os momentos de Eva sozinha duram pouco. Ela é uma jovem de 33 anos muito disposta a ouvir, a estar presente em festas, a reestabelecer um contato com uma velha amiga (quando descobrimos um pouco mais de sua vida pregressa) e a fazer uma reunião com pessoas à beira de um rio para um dia de sol agradável. A cena de Eva flutuando no rio é simbólico de outro momento de apreciação do estado presente. Naquele momento especificamente, a crise pessoal e profissional que ela está vivendo parecem ter lhe dado férias.
É muito fácil ver A VIRGEM DE AGOSTO e lembrar dos filmes de verão de Éric Rohmer. A influência que esse cineasta trouxe para o cinema de tantos outros diretores importantes é gigante. Mas lá pelo final do filme, quando começa uma trama mais misteriosa e de natureza feminina e mística, o Rohmer que mais salta à memória é o de O RAIO VERDE – principalmente após a cena da sala de cinema. Ou talvez um pouco o de CONTO DE INVERNO, se encararmos o filme de um ponto de vista mais romântico, a partir de seu terço final, que é quando Eva conhece um rapaz por quem se interessa particularmente.
Acredito que, mesmo se o filme não tivesse essa conclusão mais mística, eu teria ficado muito satisfeito apenas com os passeios de Eva por Madri, seus encontros fortuitos, suas conversas com as pessoas. Mas quiseram Trueba e Arana que o filme se encaminhasse para uma conclusão. E não sou eu quem vai reclamar. Afinal, A VIRGEM DE AGOSTO é dessas experiências tão fascinantes, gostosas e memoráveis que só temos a agradecer. O que dizer de cenas como a de Eva vendo a chuva de meteoros com um sorriso, ou de assistir extasiada à apresentação de Soleá Morente e depois sair cantarolando os trechos “Quién dirige el universo?, quién me escucha a mí?”, como se buscando um sentido maior para a existência terrena. Ou talvez já começando a compreender.
+ DOIS CURTAS
AUSÊNCIAS
Tive um pouco de dificuldade de “entrar” em AUSÊNCIAS (2021), de Antônio Fargoni, logo de início, por conta, talvez do áudio baixo. Não sei se foi por causa da acústica da sala ou se algum problema no próprio arquivo. De todo modo, gosto quando a história adentra as memórias da protagonista e a leva para um momento particularmente doloroso de sua vida, um momento de perda. E é uma cena que impressiona pela dramaticidade e pela mudança na fotografia que faz a diferença. Nesse momento, lembrei-me de PROCURANDO ELLY, um dos meus filmes preferidos de Asghar Farhadi.
ATO
Depois do prestigiado documentário sobre seu falecido companheiro Hector Babenco em 2019, Bárbara Paz tem a audácia de fazer uma obra bem pouco acessível do ponto de vista narrativo. Confesso que precisaria rever para tentar compreender ATO (2021), mas posso deixar registrada a experiência, que foi mais de estranhamento e algumas vezes de incômodo (muito por causa do som). Interessante que a atriz principal (Alessandra Maestrini) possui uma semelhança física com a diretora e um quê de androginia. Trata-se de um filme sobre solidão e morte e uma mulher que oferece a um homem auxílio e um pouco de conforto para que ele atravesse para o outro lado.
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