sexta-feira, outubro 01, 2021
NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (Stagecoach)
Grandes filmes costumam nos colocar como pessoas mais humildes. E é preciso que tenhamos mesmo mais humildade, principalmente quando lidamos com cineastas de tão alto gabarito como John Ford. Confesso que sempre fui de preferir Howard Hawks a John Ford, mas estou começando a perceber que o que estava me faltando era rever os filmes do “diretor dos diretores” e ir percebendo melhor seus detalhes, sua força visual e também a riqueza da construção de seus personagens.
Além do mais, acho importante não apenas ver e rever os filmes, mas também ler a respeito, ver e ouvir o que estudiosos têm a dizer sobre eles, de modo que aprendamos mais e mais. Isso tem me ajudado bastante a perceber melhor a grandeza de Ford e a importância e a beleza de um filme como NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (1939), visto por mim em diferentes mídias ao longo dos anos: VHS, DVD e agora em BluRay. E cada vez ficando melhor. Não pelo melhor tratamento da imagem, da tecnologia etc., mas pela percepção mesmo.
À medida que vamos revendo, detalhes importantes de fotografia e de composição, que remetem a F.W. Murnau, vão se tornando mais nítidos; e cenas noturnas, por exemplo, são de uma beleza impressionante. Destaco duas cenas de John Wayne com Claire Trevor, as duas acontecendo à noite: aquela em que ele fala com ela sobre casamento; e uma perto do final, com os dois andando lentamente pela rua da cidade-destino. Sobre a composição, inclusive, é muito enriquecedor ver os extras que vêm no box Ford Essencial, tanto as sábias palavras de Peter Bogdanovich, quanto a aula de Tag Gallagher.
Muito bom ver Ford, que costuma ter a fama de sujeito de direita, se mostrando bastante progressista, ao apresentar personagens marginalizados e humilhados. Sobre isso, tomo emprestadas as palavras de André Bazin, retirado de um de seus ensaios mais famosos:
NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, de John Ford, nos mostra que uma prostituta pode ser mais respeitável do que os beatos que a expulsaram da cidade e do que a mulher de um oficial; que um jogador debochado pode saber morrer com dignidade de aristocrata, que um médico bêbado pode praticar sua profissão com competência e abnegação; um fora da lei perseguido, por algum ajuste de contas passado e provavelmente futuro, dar provas de lealdade, de generosidade, de coragem e de delicadeza, enquanto um banqueiro considerável e considerado foge com o cofre.” (O Que É o Cinema?, p. 265)
Aliás, ainda destacaria o momento em que a prostituta aparece com o bebê nos braços, cercado pelos homens da carruagem. Fica parecendo uma imagem da Virgem Maria iluminada pelo nascimento de Jesus, tal o grau de sacralidade que Ford traz. Aliás, não à toa o próprio diretor enfatizaria esse tema mais católico em O CÉU MANDOU ALGUÉM (1948), também estrelado por John Wayne. No filme de 1939, me pareceu algo até bastante transgressor, por mais que a imagem seja sutil.
Mesmo assim, o olhar de Ford é bastante gentil para com todos os seus personagens. Não há exatamente um julgamento. Todos eles são resultados de causalidades, de situações que os fizeram agir daquele jeito. O que não quer dizer que Ford não possa fazer suas críticas bem claras, principalmente ao banqueiro, mas também um pouco às “senhoras de bem”.
Para quem vê hoje pode se incomodar um pouco com a quantidade de clichês próprias do western, mas a maior parte ali era Ford reinventando. Por isso, é preciso contextualizá-lo para entender sua importância imensa na história não só do gênero, mas do cinema em si.
Aliás, na época da produção de NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, Hollywood não queria mais fazer westerns, por causa principalmente de duas grandes produções que resultaram em fracassos imensos de bilheteria, A GRANDE JORNADA, de Raoul Walsh, e CIMARRON, de Wesley Ruggles. Os westerns que eram feitos eram produções de baixo orçamento e muito longe do prestígio das produções A ou mesmo B.
“Mas isso é um western! Ninguém mais faz westerns!”, gritou o produtor Walter Wanger, da United Artists, aquele que toparia bancar o projeto. Ford havia recebido alguns nãos de um par de estúdios, e foi Fore quem insistiu em trazer John Wayne, que há anos esperava ser chamado para uma produção do amigo. Valeu a pena esperar, pois foi neste filme que ele alcançou seu estrelato. Porém, vale lembrar que o primeiro nome nos créditos é de Claire Trevor, não de Wayne, ainda um ator de filmes pequenos, enquanto ela já era uma estrela da Fox.
NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS é um marco em muitos sentidos. Foi o western que definiu o gênero que resistiu por muitas décadas em Hollywood. Foi o filme de estreia de John Wayne como um grande astro. Foi o primeiro Ford no Monument Valley (ele faria outra série de filmes nessa locação que fica na fronteira entre os estados de Utah e Arizona). Estabeleceu um estilo visual que influenciou CIDADÃO KANE (as imagens dos tetos se destacam). E traça um panorama muito interessante da sociedade americana, uma sociedade dividida, marcada pela hipocrisia. Enfim, há tanto a se contar e a se falar sobre o filme e ainda não me sinto suficientemente íntimo da poética do diretor para falar de maneira mais apropriada. Quem sabe em breve.
+ DOIS FILMES
SUA ÚNICA SAÍDA (Pursued)
Este belo western de Raoul Walsh (diretor sempre brilhante, pelo que pude ver de seu trabalho até hoje) tem um quê de O Morro dos Ventos Uivantes, já que temos aqui dois irmãos (um deles adotivo) que se apaixonam perdidamente em um cenário sombrio. A trama de SUA ÚNICA SAÍDA (1947) acontece em um longo flashback, em que o personagem de Robert Mitchum, acuado, tenta lembrar o que aconteceu com ele desde a infância, quando foi adotado por uma mulher que tinha dois filhos, um menino e uma menina. Gosto de como o filme tem uma preferência por cenas noturnas, acentuando seu espírito noir/gótico e aproveitando tanto as tintas melodramáticas quanto as de suspense. O mistério em torno dos motivos de o protagonista ser tão perseguido só aparece lá pelo final do filme. Teresa Wright está muito bem como a "irmã" apaixonada, mas que também, a certa altura, fica consumida pelo ódio.
A ÚLTIMA FLORESTA
Esse negócio de criar expectativa é prejudicial. Gosto muito de EX-PAJÉ (2018). Considero um dos melhores filmes do ano de sua exibição. Em A ÚLTIMA FLORESTA (2021), Luiz Bolognesi aposta mais no deslumbramento visual e na mitologia dos povos yanomamis para construir um tipo de documentário que vai muito além do documentário, como já é característico de seu trabalho. Gosto de como ele transgride as regras em momentos de intimidade dos personagens, inclusive com usos interessantes de close-ups. Por outro lado, o filme parece que ficou a dever um fio de história. No mais, fiquei feliz de ver que a sessão tinha mais público do que o habitual no Cinema do Dragão. Sinal de que esse tipo de filme, ligado às causas indígenas, está cada vez mais sendo objeto de interesse por um público que vai além da cinefilia.
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