sábado, agosto 21, 2021
CARRIE, A ESTRANHA (Carrie)
Ah, nada como as revisões! Associadas ao passar do tempo, às nossas experiências de vida e de compreensão da obra e da poética dos cineastas, elas contribuem e muito para que certos filmes anteriormente vistos como obras pouco atraentes se transformem, em nossa memória afetiva, em obras-primas. Foi o caso de CARRIE, A ESTRANHA (1976), que, confesso, estava um pouco com má vontade de rever, já que, da primeira vez que vi, dublado, em um Corujão da Rede Globo, não me impressionou muito. Ao contrário, tudo parecia meio óbvio, como se eu já tivesse visto antes. Depois revi em um DVD importado – tem comentário rápido aqui no blog, em 2005, mas tive raiva quando li o que escrevi na época.
Acontece que, no caso de CARRIE, estamos falando de um clássico. Não um clássico no sentido formal, já que se trata de uma obra pós-moderna, mas um clássico no sentido de obra que já ingressou no inconsciente coletivo; mesmo pessoas que nunca o viram integralmente sabem do que se trata. É mais ou menos o que acontece com filmes como PSICOSE, de Hitchcock, ou E.T. – O ESTRATERRESTRE, de Spielberg, ou 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO, de Kubrick. Ou seja, todo mundo, de uma maneira ou de outra, já entrou em contato com essas obras, que são filmes-referência, mesmo que através de homenagens ou sátiras.
Pois bem, agora chegou a minha chance de rever CARRIE, dessa vez em alta definição, através da minha vontade de ver e rever toda a filmografia de Brian De Palma. Talvez o mais famoso filme do cineasta, este foi também seu primeiro grande hit. Custou apenas 1,8 milhão de dólares e rendeu mais de 33 milhões, só nos Estados Unidos. E olha que o lançamento não foi o ideal. Lançaram o filme em sessões duplas como um filme B, quando ele merecia estar no circuito de filmes A. Os executivos devem ter percebido a falha depois que viram o filme recebendo duas indicações ao Oscar, algo raro para produções de horror. As indicações foram para melhor atriz (Sissy Spacek) e melhor atriz coadjuvante (Piper Laurie). Até eu fiquei surpreso com essa informação.
A primeira cena do filme é a das garotas da escola jogando vôlei e já vermos, de cara, Carrie (Spacek) sendo alvo de bullying das outras meninas. Mas essa cena é meio que esquecida, pois logo depois entra a cena dos créditos iniciais, extremamente bonita e ousada, ao mostrar, em câmera lenta, as meninas nuas ou seminuas no vestiário. A beleza da cena é exponenciada pela trilha sonora absolutamente tocante de Pino Donaggio, em sua primeira colaboração com De Palma. Os dois trabalhariam juntos em mais outros sete filmes do realizador. A música de Donaggio é de um romantismo tão lindo e triste que um suposto erotismo dessa sequência de nudez e voyeurismo fica de lado. Aliás, essa cena foi uma dor de cabeça para o diretor, pois a maioria das atrizes estava muito incomodada com o fato de aparecerem nuas. Quem acabou dando um empurrão para elas foi a própria Sissy Spacek.
Ainda sobre a falta de aviso de spoilers do filme, o próprio cartaz já entrega o momento em que a protagonista tomará um banho de sangue, e o trailer também entrega todas as cenas mais importantes. Muito diferente de Alfred Hitchcock, que na época do lançamento de PSICOSE, pedia para que todo mundo que visse o filme não revelasse nada para ninguém, além de criar um trailer totalmente fora do comum, mostrando apenas o motel onde se passaria a cena-chave de seu filme.
A lembrança constante de PSICOSE vem tanto das referências e homenagens óbvias que De Palma usa em seu filme, como também do fato de que o filme de Hitchcock é considerado o primeiro filme de horror moderno por muitos estudiosos, enquanto CARRIE seria o primeiro horror pós-moderno. Muito provavelmente esse tipo de afirmação não deve ser uma unanimidade, mas é possível traçar um paralelo entre a cena do chuveiro de PSICOSE e a cena do balde de sangue de CARRIE, como cenas absolutamente icônicas. A cena de PSICOSE seria um “motivo magistral”, como li em um texto escrito por Luiz Carlos Oliveira Jr., em seu livro A Mise em Scène no Cinema, ao tratar do maneirismo:
“A imagem maneirista, segundo Delorme, é aquela que se propõe não exatamente ao remake de uma obra clássica (reapropriar-se de seu conteúdo narrativo, com suas situações de base e personagens) nem à sua reprise (submetê-la a um novo tratamento figurativo), mas à anamorfose, isto é, ao estudo visual sistemático e obsessivo de um “motivo magistral” (a cena do chuveiro de Psicose), talvez a mais refilmada da história do cinema, é o melhor exemplo do que seria um “motivo magistral”). O papel do maneirista é fazer trabalhar à exaustão as energias figurativas de uma imagem, esgarçando, alongando ou distorcendo seus elementos até que eles resultem em outra coisa – que pode ser o surgimento ou a explicação de tudo aquilo que havia ficado recalcado na imagem anterior (ver o modo como o sexo, a nudez e a potência destrutiva do par olhar/desejo se intensificam e vêm à tona nos filmes hitchcockianos de Brian De Palma..” (2013, p. 124, 125).
CARRIE caiu nas mãos de Brian De Palma quase como por sorte. Os produtores não acreditavam muito na força do cineasta, que na época ainda era mais lembrado por suas comédias godardianas do que propriamente por IRMÃS DIABÓLICAS (1972), suspense hitchcockiano feito de maneira independente. A adaptação do primeiro romance de Stephen King caiu como uma luva na poética do cineasta e em suas obsessões. Se temos o cuidado de ver CARRIE pela perspectiva da protagonista, uma garota que sofre bullying constante, que é rejeitada e humilhada pelas colegas, e ainda sofre um terror cotidiano com a mãe, uma fanática religiosa, é possível fazer uma conexão rápida com o sofrimento do protagonista de O FANTASMA DO PARAÍSO (1974). Ou seja, De Palma estaria mais uma vez tratando de pessoas vistas como monstros ou aberrações.
Algo que impressiona em CARRIE também é o quanto De Palma sabe estender o momento, criar o suspense na cena imediatamente anterior ao balde de sangue sendo despejado na garota, na cena da festa de formatura, e depois explodir tudo numa catarse tão intensa que ganha identificação total com o cinema de horror do período. O tom que o diretor adota para seu filme é um misto de comédia com melodrama, que parece bem estranho. Tanto que Piper Laurie, ao receber o roteiro para o filme, só percebe que teria que adotar um tom mais carregado de cores cômicas para a personagem da mãe depois de saber do passado do diretor em comédias.
As outras atrizes importantes de CARRIE também lidaram de maneira curiosa com o filme: Amy Irving queria o papel principal, mas acabou recebendo um papel coadjuvante. Sue, sua personagem, em determinado momento, tem uma dubiedade que parece vir de um ciúme ou inveja. Já Nancy Allen, a garota malvada, não percebia que sua personagem era tão má assim. Só percebeu isso depois que viu o filme montado. Até então, ela achava que estava apenas se divertindo, como de fato estava, especialmente nas cenas com John Travolta. Por outro lado, deve ter sido um tanto doloroso para ela receber tapas de verdade da professora de educação física. De Palma fazia questão que o tapa fosse doloroso e que repercutisse em uma reação forte de Allen.
A ideia da culpa, que se manifesta bem presente e forte em TRÁGICA OBSESSÃO (1976), reaparece aqui tanto em Carrie e sua relação complicada com a mãe, quanto em Sue, que no final acaba sendo uma das poucas sobreviventes ao massacre ocorrido na festa de formatura e fica muito traumatizada com os eventos. O próprio De Palma disse em entrevista que aquilo era a ideia da culpa, que estaria sempre com ela, por mais que ela tenha tido uma boa intenção ao “emprestar” o namorado para Carrie, de modo a fazê-la feliz na festa.
Quanto ao uso do split-screen na cena-chave, o diretor diz se arrepender de ter usado, pois isso pode ter dificultado um pouco a atenção da audiência. Mas eu não tenho do que reclamar. Acho maravilhoso o modo como a personagem aparece, ora do lado esquerdo, ora do lado direito da tela, ora como vítima, ora como vingadora. Além de todo o efeito da luz vermelha que combina com o sangue que banha seu corpo e a transforma em uma espécie de anjo de vingança, culminando na cena em que ela vai embora para casa para abraçar a mãe opressora, mas também vítima de sua própria opressão. Não à toa, a morte da mãe é mostrada como uma espécie de grande orgasmo final.
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