domingo, junho 20, 2021
CÉLINE
Enquanto via CÉLINE (1992), de Jean-Claude Brisseau, fiquei pensando no quanto são fascinantes os trabalhos desses cineastas mais independentes, que não lidam com orçamentos grandes ou com um elenco de grandes estrelas, e que, no entanto, conseguem chegar a uma excelência dentro de suas limitações orçamentárias. Porém, lendo uma entrevista do diretor para o site IndieWire, vi que isso não era necessariamente uma opção do diretor, que ele gostaria sim de fazer filmes "maiores", que ele já havia tentado fazer um sobre a guerra na Indochina e um outro passado na Idade Média, mas que não deu certo.
De todo modo, o que importa é que o legado de Brisseau, seus filmes "pequenos", é um legado a ser celebrado, visto e revisto com muito prazer, saboreando tanto as imagens e sons quanto o que ele nos ensina a partir do vasto conhecimento de vida e de estudos que ele teve. E é importante destacar que Brisseau já foi um professor comprometido de alunos problemáticos da classe trabalhadora. Esse elemento de acolhimento e amor se apresenta de maneira muito forte em CÉLINE, mas pode ser visto também em outros de seus filmes, como os mais recentes A GAROTA DE LUGAR NENHUM (2012) e QUE LE DIABLE NOUS EMPORTE (2018).
Em CÉLINE, María Luisa García (ou Lisa Hérédia, como é creditada em alguns filmes, tanto do Brisseau quanto de Éric Rohmer) é Geneviève, uma enfermeira dedicada que dá atenção a uma jovem que está chorando na chuva. Ela imediatamente tenta ajudá-la, leva-a até a casa dela, um lugar grande e espaçoso, descobre que a garota, de nome Céline (Isabelle Pasco), está atravessando um período de depressão severa, ocasionada, principalmente, pela descoberta de que não é filha biológica de seu pai. A jovem de 22 anos tenta o suicídio por pílulas e afogamento, mas é salva por Geneviève, que se torna, formalmente, a cuidadora da jovem.
O primeiro ato nos apresenta então essa dedicação e amor de uma mentora que já passou por situação similar à daquela garota em sua juventude, de não ver razão para viver e de sentir muito as dores da alma. Ela ensina o que aprendeu à jovem, a partir de uma rotina de trabalho, yoga e dieta. Isso faz com que, de alguma maneira, Céline passe a entrar em contato com o desconhecido, o mundo sutil, e a também se surpreender perpetrando alguns milagres de maneira não deliberada. Ou seja, o que antes parecia ser um filme mais realista e amoroso sobre mentor e aprendiz ganha outros contornos a partir de uma visão mais mística da vida.
Uma das coisas mais belas de CÉLINE é o trabalho de luz do fotógrafo Romain Winding, que já havia trabalhado com Brisseau em seus dois filmes anteriores, DE BARULHO E DE FÚRIA (1988) e BODA BRANCA (1989). Além das cenas exteriores que são de um grau de elevação espiritual que muito combina com a temática do filme, há uma cena em especial que eu destacaria: o momento em que Céline, enquanto dorme, tem seu corpo descoberto pelo que seria seu namorado. A luz forte que é jogada para o corpo nu de Céline é um dos momentos mais plasticamente belos do filme.
O trabalho de iluminação de interiores é também especial para que as cenas mais místicas ganhem contornos mais misteriosos, como as aparições da morte ou a cena da levitação, vista com pouca luz. Há quem veja uma natureza ambígua dessas aparições: no caso do namorado, seria um sonho?, no caso da salvação de Geneviève seria um genuíno espírito a visitando? Talvez a resposta seja "sim" para as ambas as perguntas, mas o fato de não entrarmos em contato de fato com esse mundo desconhecido pode nos trazer de volta para o ceticismo.
Muito da força do filme também está na trilha musical de Georges Delerue, que Brisseau reciclou de um trabalho que o músico fez para um programa de televisão. A trilha comparece principalmente em momentos da rotina das personagens, mas ajuda a trazer um pouco da metafísica para essas situações do mundo terreno. Adoro as cenas em que Céline está meditando debaixo de uma árvore e o vento sopra forte nas folhas, acentuando tanto a beleza da natureza quanto uma intervenção de cunho espiritual. Há outra cena magnífica, quando a câmera deixa a imagem de Geneviève na cama e se dirige à janela de seu quarto.
Ao ver essas árvores e essa paisagem bonita se apresentando como uma celebração da existência, lembrei-me dos poemas de Alberto Caeiro, um dos melhores heterônimos de Fernando Pessoa, que dizia que já havia metafísica o bastante na natureza. Por outro lado, Brisseau não é adepto do materialismo; ele se mostra genuinamente interessado nos aspectos do desconhecido, das outras dimensões.
CÉLINE é um dos filmes mais místicos do realizador, se não o mais, levando em consideração que, aqui, os prazeres carnais são apenas sutilmente explorados como um elemento de equilíbrio. O mundo sutil é que é o espaço de atração maior para a jovem Céline, que depois de vencer a depressão passa a entrar em contato com esse mundo. O fato de ela sofrer dores físicas e espirituais ao voltar ao nosso mundo mais denso só acentua esse contraste. E nos traz um tipo de consciência do mundo terreno e do que há por trás dele que poucos cinemas promovem.
Agradecimentos especiais à Paula pela companhia durante a sessão.
+ DOIS FILMES
L'ANGE ET LA FEMME - LE CINÉMA DE JEAN-CLAUDE BRISSEAU
Documentário de menos de uma hora que trata do processo de realização dos filmes de Brisseau, L'ANGE ET LA FEMME - LE CINÉMA DE JEAN-CLAUDE BRISSEAU (2008), de Olivier L. Brunet, inclui depoimentos dele, mas principalmente de seu fotógrafo, Romain Winding, e de como a luz é um aspecto decisivo em seus filmes. A cena da luz sobre o corpo nu da personagem Céline no filme homônimo, por exemplo, é comentada e apresentada como belo modelo. Há também a presença de algumas atrizes que trabalharam com o diretor, como Lisa Heredia, Raphaële Godin e Sylvie Vartan. E há uma história interessante sobre a escalação de Sylvie para o papel em ANJO NEGRO (1994). Enfim, doc um pouco quadrado, muito provavelmente feito como extra para algum DVD.
QUANDO A MULHER ERRA (Stazione Termini)
Curioso como os títulos já entregam o grau de machismo de uma sociedade em determinada época. O título brasileiro, QUANDO A MULHER ERRA (1953), já põe toda uma carga de culpa na mulher (Jennifer Jones), como se a personagem já não carregasse todo o peso da culpa, além do sentimento de não saber o que fazer naquele momento: ficar com o italiano por quem está apaixonada (Montgomery Clift) ou voltar para o marido e a filha e não causar dano à família. Nos Estados Unidos, uma sociedade ainda bem acusadora no que se refere a crises em casamentos. o título também não pega leve com a mulher: "Indiscretion of an American Wife". O filme de Vittorio De Sica tem uma excelente ambientação, totalmente em uma estação ferroviária, enquanto uma atormentada mulher tenta saber o que fazer da sua vida.
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