Estou em uma fase de imensa gratidão ao cinema. Sou grato também aos amigos, poucos, mas fiéis, e às canções e aos livros/HQs, mas acho que o cinema tem se situado em um espaço superior neste momento. Hoje, na semivazia sala do Cinema do Dragão (o que é até bom em tempos de pandemia), durante a sessão de PARTIDA (2019), de Caco Ciocler, este sentimento veio com força. No filme, não esquecemos de nossa condição como um país muito mal tratado e entregue aos fascistas, mas nem por isso o prazer de ver um ótimo filme se dissipa. Na verdade, o sentimento de identificação é também bem-vindo.
Esta estreia na direção de Caco Ciocler parte de uma ideia em que tudo poderia dar errado (o que é normal em se tratando de documentários sem marcações rígidas). Vamos nos envolvendo cada vez mais com aquelas pessoas discutindo política dentro do ônibus a caminho do Uruguai. Há jogos de cena (pra usar um termo do Coutinho), limites entre a atuação e a simples observação e gravação das conversas, e no meio disso, ouvimos verdades duras sobre o Brasil dos dois lados do espectro político.
A narrativa se inicia momentos antes da vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018 e na vontade de um grupo de sair do país por uns dias e encontrar o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica. Momentos tensos, de reflexão, mas também divertidos, se unem a um final lindíssimo. Em algum momento a protagonista diz: só fizemos um filme. É apenas um filme? Não creio.
Afinal, passar por essa uma hora e meia de discussão e reflexão sobre a situação do país, sobre a polarização, sobre o quanto podemos estar errados mesmo quando defendemos as pautas corretas. E há o fechamento com um encontro lindo, com palavras comoventes, que trazem um gostoso calor para o coração.
A protagonista de PARTIDA é Georgette Fadel. Militante de esquerda, ela sofre muito com a derrota de Fernando Haddad nas eleições. O filme já começa com ela contando para a câmera de quando foi agredida com uma cadeirada na rua e ficou sem entender se o motivo foi por ela ser gay, usar vermelho ou qualquer outro. Então, ela tem a ideia de se candidatar a presidente da república para 2022. E surge a ideia de se fazer um filme sobre sua trajetória até o Uruguai em um ônibus com um grupo de amigos, que passa, inclusive, pela vigília Lula Livre.
Para fazer o contraponto das opiniões de Georgette, o diretor (também muito atuante na frente das câmeras nessa brincadeira de gente grande) convida Leo Steinbruch, alguém que tem uma opinião muito mais próxima de um eleitor de Aécio Neves, e que tem por hábito colocar a culpa de todos os males no PT, com discursos já conhecidos.
A discussão funciona, menos por Leo e mais por Georgette, uma personagem tão forte e tão segura de suas convicções que chega a eclipsar a todos. Ela mesma em determinado momento pede para uma das pessoas se expor mais, dizer mais suas opiniões. Caco Ciocler, que não deixa claro seu posicionamento político, sugere que o filme seja uma construção coletiva, algo feito e pensado por todos presentes naquele ônibus.
O resultado tão positivo me fez lembrar de outra estreia de um ator famoso, O BEIJO NO ASFALTO, de Murilo Benício, que por ser um ator, como Ciocler, destaca em seu filme o desempenho de seus colegas em cena de forma bem marcante. Por mais distintos que sejam os filmes, há esse forte elemento em comum.
+ TRÊS FILMES
A JANGADA DE WELLES
Com a minha enorme lacuna no cinema de Orson Welles e também nos filmes de Rogério Sganzerla que lidam com Welles, senti que me faltava pré-requisitos para ver este documentário realizado pela mesma dupla que já havia feito o curta CIDADÃO JACARÉ (2005), Petrus Cariry e Firmino Holanda, sobre o jangadeiro cearense que morreu durante as filmagens do inacabado e mítico IT'S ALL TRUE. Foi muito bom ver L.G. de Miranda Leão falando sobre sua paixão por esse episódio em sua vida, ver Helena Ignez citando o marido entusiasta de Welles, entre outros depoimentos. A JANGADA DE WELLES (2019) parece seguir uma linha de fluxo de consciência: fala de Welles e suas confusões com os produtores, sua vinda para o Rio e depois para Fortaleza, Getúlio Vargas e os pescadores, e depois fala da situação triste dos morados do Mucuripe, que foram sendo enxotados da área da praia para que os ricos construíssem seus grandes edifícios. Uma série de histórias tristes e lamentáveis, mas com uma história memorável da vinda de um ser mitológico como Welles.
MUSSUM - UM FILME DO CACILDIS
Um filme que me interessou mais pela figura super-carismática que era o Mussum. Uma impressão que fica no final de MUSSUM - UM FILME DO CACILDIS (2019), de Susanna Lira, é de que ele parecia muito mais feliz no samba. É muito legal vê-lo, com aquele sorrisão bonito, no programa Ensaio da TV Cultura, falando e cantando. Mas claro que sua entrada nos Trapalhões foi fundamental para que ele se tornasse uma das pessoas negras mais famosas do Brasil, possivelmente a mais bem-paga da televisão brasileira. Gosto de quando o doc toca no assunto do racismo no programa humorístico e que hoje é percebido com mais clareza. Mas não gostei da ideia chupada explicitamente de ILHA DAS FLORES, de Jorge Furtado, usado em dois momentos. Dos depoimentos, o mais emocionante é o do filho que menos recebeu atenção do pai, talvez por ser o mais jovem.
EMICIDA: AMARELO - É TUDO PRA ONTEM
Creio que estamos vendo sinais de que uma nova era pode estar de fato surgindo. Afinal, nos últimos anos, pudemos ver pessoas desfavorecidas se levantando e tomando para si o que merecem de direito, por mais que isso ainda esteja se apresentando mais no plano simbólico, espiritual. O trabalho de destaque de pessoas negras essenciais feito neste documentário pensado pelo Emicida é brilhante. EMICIDA: AMARELO - É TUDO PRA ONTEM (2020), dirigido por Fred Ouro Preto, costura essa história de grandes homens e grandes mulheres com cenas de sua apresentação no Theatro Municipal, uma apresentação feita com todo o luxo e toda a pompa merecida, já que o som que ele faz é sofisticado o bastante, com banda, naipe de metais etc. A associação com o samba vai se tornando mais forte. Eu, infelizmente, só tive a ideia de colocar as legendas para entender melhor as letras de rap lá pela metade do filme. Assim, já recomendo que façam o mesmo. E pensar que já são dez anos de quando eu viajei para Recife e vi o show de Emicida sem nem saber quem ele era... Muito feliz que ele tenha se tornado esse gigante, essa referência cultural, intelectual e de luta.
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