Quando estive no primeiro ano da faculdade, fiquei encantado com uma das tantas aulas maravilhosas de Literatura Portuguesa da Professora Moema. Em uma dessas aulas, ela comentou sobre D. Sebastião e sobre o quanto o comportamento suicida do rei foi terrível para a História de Portugal, que seria tomado pelos espanhóis. O país desceria do pedestal e entraria numa era sombria que duraria décadas. Nessa época, o chamado Barroco português, apareceria uma obra um tanto estranha, composta apenas de cinco cartas intensamente apaixonadas de uma freira rejeitada por um oficial do exército, as Cartas Portuguesas, de Sóror Mariana Alcoforado. Segundo a professora, trata-se da melhor produção literária portuguesa desse momento sombrio do país.
E eis que, no Brasil, também temos algo incomum na história de nossa literatura: os escritos em um diário de Alice Dayrell Caldeira, quando adolescente, do final do século XIX, que foram publicados sob o pseudônimo Helena Morley, quando a autora já tinha 62 anos de idade, em 1942. A obra depois de lançada fez sucesso e chegou a ser cobrada em vestibular em algumas universidades. Ou seja, é um exemplo de arte feita sem a intenção de ser arte. O diário de Alice/Helena, de nome Minha Vida de Menina, é também um documento fantástico de uma época, ainda que seja muito rico em tratar de questões afetivas da menina com sua família (sua avó, seu pai, sua mãe, sua irmãzinha etc.).
VIDA DE MENINA (2004), por sua vez, é a incrível adaptação feita por uma outra Helena, a cineasta Helena Solberg, que na história do cinema brasileiro hoje costuma ser colocada como uma das representantes do Cinema Novo. Seu curta A ENTREVISTA (1966) ficou em 9º lugar no ranking de melhores curtas-metragens em votação recente pela Abraccine. É inegável a força de seu trabalho, mas é também inegável o quanto sua filmografia acaba sendo, muito provavelmente por causa de um machismo entranhado na sociedade, apagada ou tornada quase invisível para um público maior.
O caso de VIDA DE MENINA é admirável, já que eu, que me autodenomino cinéfilo, só conheci a obra neste ano. Mais exatamente ontem. Mesmo sendo um filme ganhador de vários Kikitos em Gramado, que eu me lembre, não chegou a estrear em minha cidade. Fiquei encantado com o grau de sensibilidade que o filme possui, o quanto é capaz de nos emocionar. Apesar de ser uma produção modesta, como geralmente são as produções brasileiras, mesmo as "de época", há aqui todo um cuidado artesanal no modo como é feita a reconstituição daquele período. O filme nos leva para as Minas Gerais do final do século XIX, um outro mundo, ainda que com muitas semelhanças com o Brasil de hoje, um Brasil que tenta disfarçar seu racismo, por exemplo.
Como um filme cuja voz é de uma menina/mulher, é importante ter uma cineasta mulher e também uma roteirista mulher (Elena Soarez) para contar essa história. Uma história composta quase que por "esquetes", já que o que vemos são situações marcantes retiradas do diário, que conseguem, no filme, encontrar uma coesão admirável, mesmo quando a menina Helena começa a costurar a sua história também com lembranças de quando era mais nova.
Trata-se de um filme que valoriza o amor pela leitura e pela escrita, que surgiu de um incentivo de um professor. Curiosamente, eu vi o filme no mesmo dia em que li, pela primeira vez, o conto "Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector, que é uma ode ao prazer da leitura. VIDA DE MENINA é, entre outras coisas, uma ode à escrita, e isso também muito me encanta.
A atriz Ludmila Dayer, a jovem que interpreta Helena, já tinha cerca de 20 anos quando fez esse papel tão desafiador. Ela vinha basicamente de trabalhos para a televisão. Muitos lembram dela de vários episódios de MALHAÇÃO, a série juvenil da Rede Globo. O trabalho de penteado e figurino, e também sua interpretação, são bons o suficiente para o convencimento do papel. Além do mais, a personagem é fascinante, no quanto é questionadora. Helena faz questionamentos sobre o papel do homem na Terra, a vida após a morte, o porquê de Deus permitir haver tanta desigualdade social, e até o darwinismo.
E o filme ainda tem o mérito de nos levar ao bucolismo dos riachos, às ruas cheias de subidas e descidas de Diamantina, às casinhas humildes, aos animais (cabras, galinhas, bois), às famílias de brancos convivendo com negros recém-saídos da escravidão, pelo menos oficialmente. E principalmente de ter um olhar estritamente feminino. Os homens têm menor tempo na história, ainda que alguns deles (o pai, o tio, o primo, o professor, o padre) desempenhem papéis de importância. Nota-se uma sociedade ainda muito dividida entre os dois sexos no cotidiano.
Acima de tudo, porém, o filme lida com sentimentos. E foi nisso que ele me pegou de jeito. Principalmente com a relação de Helena com a avó, por quem nutre um profundo amor. Ela é a neta preferida da avó também, mesmo sendo uma menina tida como mal-criada. Também emociona o modo como sua família, bem mais pobre e de vida mais difícil do que a de seus primos, abastados, tenta sobreviver às dificuldades. Uma coisa aparentemente simples, como o tecido para a farda da escola, então, se torna motivo de briga em casa. E o filme conseguiu, meio que sem querer, me deixar enredado nessa teia de afetos, a ponto de, em certo momento da trama, eu não conseguir segurar o choro. E é tudo feito com muito cuidado, sem arroubos melodramáticos, sem pesar a mão, nada disso. Por isso merece ser visto, revisto e descoberto como uma das obras mais importantes de nossa cinematografia.
Agradecimentos à amiga Paula, que viu o filme comigo, simultaneamente, em uma outra cidade. Por ser de família mineira, ela sentiu bastante familiaridade com os costumes, com a geografia etc. E também recomendo a leitura da entrevista que o amigo Adilson Marcelino fez com a diretora Helena Solberg para o seu incrível site Mulheres do Cinema Brasileiro.
+ TRÊS FILMES
LUA EM SAGITÁRIO
O filme até começa bem, quando mostra a relação entre o casal e o dono de um estabelecimento fã devotado do rock. O rock banha o filme com a sua força enquanto pode, mas aí quando tentam criar um road movie, a coisa desanda. Direção: Marcia Paraíso. Ano: 2016.
JONAS
Nem imaginei que veria este filme no cinema, mas o amigo Luiz comentou que ia passar em uma pequena mostra lá no São Luiz. Como não devia estrear em circuito comercial, era a chance de ver mesmo. É um bom filme, com alguns problemas, mas que me agradou, principalmente pelo casal Jesuíta Barbosa e Laura Neiva. Jesuíta estava lá e discursou brevemente sobre o apoio às ocupações nas escolas e sobre o momento delicado que o país está vivendo. Direção: Lô Politi. Ano: 2015.
EXILADOS DO VULCÃO
A gente até se esforça pra gostar do filme e entrar na viagem sensorial, principalmente quando desistimos de tentar ligar os pontos de uma história, mas na maioria das vezes é tudo muito aborrecido e arrastado. Mas há, sem dúvida, momentos bem bonitos, plasticamente. Direção: Paula Gaitán. Ano: 2013.
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