Estava cogitando não rever VÍCIO FRENÉTICO (1992) por causa da distância temporal que o vi. Mas 11 anos já é um tempo considerável e a intenção agora é me tornar mais íntimo do cinema do diretor. Talvez tenha me impactado menos desta vez. Me deixou mais desconcertado do que exatamente angustiado com a descida aos infernos do mau policial do que na primeira experiência. Talvez porque a performance de Keitel é, por exemplo, mais intensa, mais catártica e mais explícita no modo como ele grita de dor e vazio existencial. Mas ao menos ele consegue chorar e gritar. É diferente de outros personagens ferrarianos, que engolem o choro e se fecham na posição de vampiros. Como bem diz a junkie vivida por Zoë Lund, em determinado momento do filme: "os vampiros têm sorte, eles podem alimentar-se dos outros."
Porém, o filme cresce à medida que penso mais nele, e que também leio mais a respeito dele e a respeito da sua importância na iconografia da obra de Abel Ferrara. Quando geralmente se fala no trabalho do cineasta este é um dos filmes que primeiro vem à memória, tanto por ser marcante quanto por estar cheio de elementos que sintetizam a mitologia do diretor.
VÍCIO FRENÉTICO lembra um pouco DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA, de Robert Bresson, mas é mais pela forma como o protagonista se aproxima de um estado de busca da morte através de ações pecaminosas, como o excesso de álcool (como em Bresson), das mais diversas drogas, das orgias, das apostas perigosas e crescentes, da irresponsabilidade profissional, de uma ação próxima a de um estuprador, ao abordar duas jovens em um carro e pedir que elas façam "coisas" para ele, em troca de não levarem uma multa.
Mas, diferente de Bresson, um grande niilista, Ferrara carrega traços de otimismo, até por acreditar na religião, no embate entre as forças do bem e do mal. Há a crença em um deus, em forças do bem que possam agir na transformação da vida das pessoas. O problema é que essas pessoas são suicidas, os heróis ferrarianos não chegam a se jogar no precipício imediatamente, parecem acreditar que merecem cada dor e cada tortura infligida ao próprio corpo. As drogas, por mais que tragam prazer, servem ainda mais para aproximar esses personagens de seu fim, de distanciá-los da graça, de promoverem a angústia e o vazio existencial.
Na trama, Harvey Keitel é o mau policial, um personagem cujo nome nunca é pronunciado e nem aparece nos créditos. Ele está mais interessado nas apostas em jogos de beisebol do que em seu ofício; está mais interessado em cheirar cocaína e consumir álcool e outras drogas do que em se importar com sua família. Assim, o principal caso investigado pela polícia no filme, que é o de uma freira estuprada por dois homens no altar, é mais investigada por seus colegas do que por ele, que está mais preocupado em estuprar com os olhos todas as mulheres atraentes que passam em sua frente.
Como estamos diante de um filme de Ferrara, também estamos diante de personagens que têm uma visão de mundo totalmente distinta e buscam, de alguma maneira, uma espécie de perdão ou redenção, mesmo que de forma torta. Como o poderoso gângster de O REI DE NOVA YORK (1990), que pretende construir um hospital para crianças, ou a jovem muda que se transforma em justiceira depois de passar pela experiência de estupro em SEDUÇÃO E VINGANÇA (1981).
Aqui, o mau policial até passa por uma espécie de encontro com Jesus na igreja, até pede perdão, urrando e chorando no chão. Ao colocar os jovens estupradores em um ônibus ao final do filme em vez de matá-los, ele estaria procurando um tipo de redenção, acreditando que estaria fazendo uma boa ação para alcançar um tipo de perdão, influenciado pela fala da freira, que diz ter perdoado os dois homens pelo ato abominável.
VÍCIO FRENÉTICO é o primeiro trabalho de Ferrara que foge do rótulo "filme de gênero". Há uma preferência pelas imagens escuras, por uma fotografia mais dura, menos bonita, pela imagem dos becos e dos lugares mais decadentes de Nova York, ao invés das imagens que servem como cartão-postal. Isso combina com a miséria do personagem e do clima noturno do filme. Mesmo a cena final, que se passa durante um dia (chuvoso), é uma cena que é vista à distância. Isso pode ter uma série de significados, mas talvez um deles seja o distanciamento do protagonista dos olhos do espectador, o seu completo abandono e aniquilamento, algo que já havia sido preparado com a cena imediatamente anterior, dele se distanciando da câmera, ao som de "Pledging my love", de Johnny Ace.
+ TRÊS FILMES
TRINTA ANOS ESTA NOITE (Le Feu Follet)
Não sei se ver um filme sobre depressão e desejo de tirar a própria vida nestes tempos sombrios é a melhor pedida. De todo modo, me interessou bastante por se tratar de outro clássico de Louis Malle (adorei o ASCENSOR PARA O CADAFALSO, 1958). Este aqui também tem algo que podemos ver transbordar nos filmes de Khouri. Não o jazz, nem a excitação da noite, mas a melancolia, a extrema melancolia. No caso, a música ao piano de Erik Satie acentua um tipo de sentimentalismo que em alguns momentos me irritou bastante. De todo modo, como o protagonista é uma pessoa que se julga incapaz de trazer alegria para a vida das pessoas, talvez seja acertado retratá-lo como alguém um tanto irritante. Isso se mostra presente em especial nas conversas que ele tem com duas personagens femininas, no começo e no fim do filme. Ano: 1963.
UM ELEFANTE SENTADO QUIETO (Da Xiang Xi Di Er Zuo)
Acredito que as quase quatro horas de duração do filme funcionam muito bem para que tenhamos tempo de nos afeiçoarmos aos personagens e seus dramas. Como o filme lida também com suicídio, é difícil não fazer uma reflexão sobre o próprio suicídio de seu jovem diretor, aos 29 anos. Desse modo, aquilo que o filme apresenta, sua desesperança, seria um reflexo dos sentimentos de seu autor. Gosto particularmente dos dois personagens adolescentes (a menina e o garoto), mas os dramas dos homens mais velhos também são sentidos. A questão de ser útil ou inútil no mundo é posto em cheque algumas vezes. Até eu fiquei pensando no que eu sou útil nesta vida. Direção: Bo Hu. Ano: 2018.
NO PORTAL DA ETERNIDADE (At Eternity's Gate)
Interessante essa obsessão do cinema por Van Gogh. Talvez pela questão da loucura, da orelha, de sua morte, da expressividade particular de seus quadros. O interessante aqui é ver o pintor ter sua história de vida contada por um artista plástico também. Há várias passagens inventivas e que funcionam bem para causar algum mal estar na forma como o pintor sente e vê o mundo, mas no fim eu senti falta de mais impacto dramático. Direção: Julian Schnabel. Ano: 2018.
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