sexta-feira, março 27, 2020

SEDUÇÃO E VINGANÇA (Ms .45)

Encontrei em SEDUÇÃO E VINGANÇA (1981) o cineasta cuja obra mais me deu vontade de peregrinar, até por ter muitas lacunas em sua relativamente longa filmografia e por ele ser um cineasta um tanto complexo e mais digno de ser visto com atenção e estudo. A leitura ajuda muito a complementar a experiência do filme, e por enquanto estou utilizando o ótimo catálogo Abel Ferrara - A Religião da Intensidade, organizado por Ruy Gardnier em 2012. Este segundo (ou terceiro, se considerarmos o pornô de Ferrara como a sua estreia) longa-metragem do diretor ganha, inclusive, bastante destaque no catálogo.

O filme impressiona por ser um dos primeiros do subgênero rape and revenge e ainda assim se antecipar aos que viriam, transgredindo as normas vindouras. E por mais que um filme como DESEJO DE MATAR, de Michael Winner, já tivesse sido feito anos antes, aqui a transformação da heroína numa máquina de matar depois que ela sofre dois estupros num mesmo dia é muito diferente. Ferrara procura torná-la menos vítima possível. Inclusive dando a ela o poder de matar um de seus estupradores, esquartejando seu corpo na banheira e guardando os pedaços na geladeira para, friamente, ir deixando aos poucos em diversos locais de Nova York.

É interessante notar o quanto a cidade é mostrada suja e violenta, como devia ser mesmo na época, mas também é enfatizado a hoje tão comentada cultura do estupro. Já no começo do filme vemos uma série de homens tentando abordar de maneira bem pouco educada as mulheres na rua. E depois dos dois estupros e da atitude de certos homens que se tornariam vítimas da misteriosa assassina da .45, podemos perceber o quanto a categoria estava mesmo precisando mudar.

Mas uma coisa começa a confundir o espectador quando Thana (Zoë Tamerlis) passa a matar homens aparentemente inocentes, ou que cometem pequenas falhas com as namoradas, para depois passar a escolher homens de modo puramente aleatório. Na cena da festa de halloween, quando ela está lindamente vestida de freira, basta ser homem para se tornar alvo.

Seria então um filme sobre uma mulher que fica perturbada depois do trauma do estupro (e que sua mudez é provavelmente também advinda de um outro trauma) e se torna uma assassina? Também, mas o barato do trabalho de Ferrara é como ele torna tudo complexo, não precisando ser isso ou aquilo. Pode ser isso e aquilo também. Toda discussão é bem-vinda, portanto.

Visualmente falando, uma das coisas que dá prazer de acompanhar no filme é a mudança de roupa de Thana a cada novo assassinato. Ela passa a se vestir de maneira cada vez mais ousada, deixando de lado o estilo de doce garota de convento até a se vestir como prostituta de luxo, dominatrix e, ao final, uma freira sexy com uma arma amarrada à coxa.

Do ponto de vista psicológico, é interessante também notar a evolução da personagem a partir do momento em que ela mata o segundo estuprador em seu apartamento e parece estar chegando ao êxtase quando esquarteja seu corpo. O sadismo é percebido também nas preliminares da aproximação das vítimas. Mas é importante lembrar que estamos vendo um filme de Ferrara, onde o prazer transforma-se em dor ou mistura-se à dor com frequência. Talvez o exemplo mais representativo seja o de VÍCIO FRENÉTICO (1992).

Assim, há um momento em que a sexualidade parece lhe ser recusada: a aparição do primeiro estuprador após o esquartejamento acontece quando Thana tenta se ver nua no espelho, ensaiando uma espécie de sentimento erótico após o ocorrido. Porém, aos poucos ela vai ganhando uma espécie de empoderamento ao estar de posse do objeto fálico.

Outra coisa que dá prazer ao ver o filme está no quanto ele é imprevisível. Só o fato de não sermos apresentados à personagem, de não sabermos nada sobre seu passado, de não ouvirmos sequer alguma coisa de sua boca (por ela ser muda e por não haver uma voice-over), de darmos de cara com a invisibilidade de Thana no início, tudo isso contribui para que cada cena que se segue seja algo surpreendentemente novo.

Fiquei tão animado com o filme, que já estou pegando o longa-metragem seguinte do diretor e quero ver os demais. Qualquer coisa para trazer um pouco de alegria para esse momento já está valendo. E não estamos falando de qualquer coisa, mas de obras de arte.

+ TRÊS FILMES

AS DIABÓLICAS (Les Diaboliques)

O fato de eu já conhecer a história e as surpresas da trama atrapalhou um pouco a completa apreciação do filme. Aí fiquei pensando se ele é tão resistente a revisões quanto certas obras (lembrei, por razões óbvias, de PSICOSE, de Hitchcock). Mas claro que é uma beleza visualmente falando também, com imagens que ficam guardadas de maneira forte em nossa memória. A trama de duas mulheres planejando a morte de um homem que é marido e amante das duas não deixa de ainda manter o seu fascínio. Até por ser gostoso de ver. Direção: Henri-Georges Clouzot. Ano: 1955.

SONATA DE OUTONO (Höstsonaten)

Um privilégio poder ver um Bergman tão intenso e em restauração tão perfeita na telona. Minha primeira vez com SONATA DE OUTONO e fiquei impressionado. Aliás, quase sempre fico impressionado com Bergman. Como o maior cineasta canceriano, vejo neste filme a essência disso: a questão de guardar. No caso, a filha que guarda as mágoas do mal causado pela mãe durante muitos anos. Direção: Ingmar Bergman. Ano: 1978.

REVANCHE REBELDE (Roadracers)

Melhor filme de Robert Rodriguez, ao lado de PLANETA TERROR (2007). O diretor se sai muito bem quando homenageia os gêneros de que gosta. Este aqui é uma beleza, brincando com os filmes de jovens rebeldes dos anos 50 e com um veneno forte na violência e na personalidade dos personagens. Foi uma produção para a televisão, junto com a de outros diretores, projeto Rebel Highway. Não vi os outros filmes. Melhores cenas: o cabelo pegando fogo, o rinque de patinação e o sexo à beira do lago. Ano: 1994.

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