segunda-feira, agosto 05, 2019

NO CORAÇÃO DO MUNDO

No cinema brasileiro contemporâneo é possível dizer que, se há uma cidadezinha que se tornou presente com bastante frequência em muitos filmes, é a cidade de Contagem, localizada próximo a Belo Horizonte, tendo aparecido em filmes diversos, especialmente os de André Novais Oliveira. Junto com André, Gabriel Martins, Maurílio Martins e Thiago Macêdo Correia, eles encabeçam a produtora Filmes de Plástico, que rendeu obras importantes como ELA VOLTA NA QUINTA (2015), TEMPORADA (2018) e vários curtas de sucesso de crítica e com participação em festivais nacionais e internacionais. Neste ano, a produtora está comemorando 10 anos de existência.

E o filme de comemoração desses 10 anos é um dos melhores da safra dessa turma de Contagem. NO CORAÇÃO DO MUNDO (2019), da dupla Gabriel Martins e Maurílio Martins, parece um trabalho de dois cineastas veteranos, tal a segurança narrativa. E não é fácil ter que dar conta de tantos personagens, lhes dar dimensões suficientemente profundas, trabalhando tanto com atores experientes quanto com iniciantes.

Mas NO CORAÇÃO DO MUNDO vai além de ser apenas um filme bem-feito. O que temos aqui é um trabalho que lida com questões sociais, econômicas e existenciais dos moradores de uma pequena cidade, feito por gente com intimidade na geografia humana do local. Até temos alguns momentos em que o sotaque e o jeito naturalista com que os atores/personagens dialogam soam um pouco difícil para ouvidos não-mineiros, mas aos poucos nos acostumamos.

A trama básica de golpe lembra um pouco a de COMO É CRUEL VIVER ASSIM, de Julia Rezende, mas o golpe em si, ainda que um dos pontos bem altos da trama, não é o mais importante. O filme constrói bases firmes para que nos importemos com personagens, mesmo sabendo que estão fazendo uma burrada atrás da outra. Um personagem como Marcos (Leo Pyrata), por exemplo, é incrivelmente interessante, mesmo sendo tão questionável do ponto de vista do caráter.

O filme começa com a comemoração do aniversário de Marcos. Sua noiva, a trocadora de ônibus Ana (Kelly Crifer), o surpreende com uma daquelas declarações de amor constrangedoras com carros de som. Isso já dá o tom do ambiente de periferia, que se explicita ainda mais quando adentramos as casas e os estabelecimentos comerciais daquelas pessoas. Todos os personagens vivem em função de trabalhos que rendem muito pouco para sua subsistência; outros tentam uma saída através de golpes, como é o caso do já citado Marcos.

O grande golpe, no entanto, terá como mentor intelectual Selma (Grace Passô), que, consciente de sua condição de negra, acredita que, para o melhor sucesso de seu plano, será necessária a presença ativa de Ana, a namorada de Marcos, que até então nunca havia participado das tretas dele. As cenas de suspense da tal cena do golpe são de prender a respiração.

No mais, como não destacar as cenas da cantora e ativista MC Carol, em suas conversas com Marcos? E as participações afetivas de dois atores já consagrados? E a presença de personagens tão carismáticos como Beto (Renato Novaes), Miro (Robert Frank) e Rose (Bárbara Colen)? Não é todo dia que vemos um filme como este. Não é sempre que vemos o cinema brasileiro tão pulsante, surgindo em um momento de tanto desmanche cultural. Sigamos em frente, que o futuro pode ser ainda mais brilhante.

+ TRÊS FILMES

PRAÇA PARIS

O filme inicialmente traz um interessante contraste entre o estilo de vida burguês da terapeuta vivida pela portuguesa Joana de Verona e da mulher (Grace Passô) que sofre na pele as dores da desigualdade social brasileira. Pena que depois o filme vai se transformando em outra coisa, acentuando os medos da portuguesa do Brasil. Isso chega a incomodar bastante, especialmente quando o filme se aproxima de sua conclusão. Aí o fado que inicia o filme e nos anima a ver a obra não tem o mesmo sabor quando encerra a história nos créditos finais. Melhor filme que eu vi da Lúcia Murat até agora foi o doc EM TRÊS ATOS (2015), mas não cheguei a ver muito de seu trabalho. Ano: 2017.

DESTERRO

Gosto de como o filme tem liberdades que não se vê em tantas obras. É uma obra intimista, feminina, com um pé no passado (a máquina de escrever) e outra no presente. Fiquei sem entender as cenas com os animais em ampliação do mundo micro em macro, mas talvez seja para ampliar os sentidos e sensações. As cenas retiradas de imagens de arquivo da família da diretora são ótimas e funcionam bem na colagem com as cenas novas, que se passam no Rio, no Ceará e na Paraíba. Só fiquei querendo me conectar mais com o sentimento da protagonista, mas não consegui. Mas isso vai de cada um. Direção: Caroline D'Ávila e Sandro Langer. Ano: 2019.

COMO É CRUEL VIVER ASSIM

Talvez o filme mais plasticamente bonito da Julia Rezende. E o que tem um compromisso menor com o comercial. A história é de um grupo de cabeças de vento que planejam um sequestro como forma de sair da merda. E o filme tem um ar de comédia misturado com tristeza que o torna bem único. Acredito que se visto no cinema eu teria me envolvido mais, tanto no aspecto cômico quanto no dramático. Excelente o elenco. Já conhecia bem a Fabiula Nascimento, mas fiquei impressionado com o Marcelo Valle. Não lembro dele de outro filme. Outro ponto positivo do filme é o quanto ele transgride o filão dos filmes de sequestro. Ano: 2018.

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